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Uma feminista que fez carreira no reino do marialvismo

Uma feminista que fez carreira no reino do marialvismo

Elza Chambel, presidente do Conselho Nacional para a Promoção do Voluntariado, fez grande parte do percurso profissional no Ribatejo

Nasceu no Rio de Janeiro, passou por Trás-os-Montes e por Coimbra e, já lá vão mais de quatro décadas, assentou arraiais em Santarém, onde fez carreira na Segurança Social. Entretanto aposentou-se, mas Elza Chambel não é mulher de ficar parada. Actualmente é presidente do Conselho Nacional para a Promoção do Voluntariado. Aos 72 anos, continua a viver em alta rotação. Foi autarca, lutou contra a discriminação das mulheres na administração pública, fez teatro na universidade e diz que enquanto gostar do que faz não vai parar.

Os valores da partilha e da solidariedade estiveram sempre presentes na sua vida?Acho que sim. Nasci no Rio de Janeiro, mais precisamente em Ipanema. Os meus pais eram portugueses. O meu pai faleceu de repente, quando eu tinha 9 anos. A minha mãe veio para Portugal fazer o inventário de algumas pequenas propriedades que tinha herdado no concelho de Vinhais. Saí de Copacabana onde morava, do colégio onde andava, para um concelho onde não havia água canalizada nem luz eléctrica.Foi um choque profundo.Foi um início de aprendizagem. Tive de fazer um exame de admissão ao liceu e fiz o liceu em Bragança logo de seguida.Nessa altura não era muito habitual uma mulher seguir os estudos até tão tarde.No norte era mais normal que no sul. Talvez porque as pessoas tivessem dificuldades, acreditavam mais que valia a pena estudar. Fui para o liceu em 1947. A minha mãe pensava ficar cá dois ou três anos e depois voltar para o Rio de Janeiro. Mas eu fui para o liceu, depois foi a minha irmã e o meu irmão, depois fui para a faculdade e acabámos por ficar.Em que faculdade andou?Licenciei-me em Direito em 1960, em Coimbra. Quando eram muito poucas as mulheres que andavam na Faculdade de Direito. Como se sentia num meio tão marcadamente masculino?Sentia-me bem. Pensava que era preciso ir para a frente, que os seres humanos são todos iguais. Como tinha do liceu um bom background, como fui sempre muito boa aluna, se calhar, embora fosse tímida, tinha uma certa confiança em mim. Sentia que era uma privilegiada por poder seguir os estudos num país onde muita gente era analfabeta?Tinha a noção que a minha mãe, que tinha ficado viúva aos 39 anos, estava a fazer um grande esforço, pegando nas propriedades que tinha no concelho de Vinhais e trabalhando-as com os caseiros. Fazia uma vivência de economia muito controlada, pensando que o melhor para os seus filhos era terem uma boa ferramenta que lhes permitisse um futuro melhor.O trabalho da terra nunca a seduziu?Nunca me seduziu mas tive que o fazer de vez em quando. Os caseiros trabalhavam as terras que nós tínhamos mas não havia, como existia no Ribatejo quando vim para cá viver, aquela décalage entre o latifundiário e o trabalhador. Éramos todos pequenos proprietários, porque os caseiros também tinham as suas terras. Eu não gostava muito, mas no Natal a minha mãe mandava-nos calçar luvas e ir ajudar a apanhar castanhas. Como veio parar ao Ribatejo?Nunca esteve na minha ideia. A minha primeira colocação como notária foi em Aljezur. Tinha três funcionários e o mais novo não achava piada nenhuma ser mandado por uma mulher, ainda por cima mais nova que ele. Estive lá oito meses e concorri ao primeiro lugar interino que havia, que era Barrancos. E fui 14 meses para Barrancos como conservadora notária. Foi lá que aprendi a gostar de touros de morte. Depois concorri para um lugar como efectiva em Marvão. Era notária aí quando conheci o meu marido, que era director da Escola Industrial e Comercial em Santarém, no dia primeiro de Janeiro de 1966. Foi o amor que a trouxe até Santarém.Casámos em Setembro desse ano e resolvi que era mais fácil ser eu a aproximar-me. Concorri para o lugar de conservadora notária no Entroncamento e fiquei. Vivia em Santarém e ia todos os dias de comboio. Saía muito cedo e chegava tarde a casa, praticamente só via a minha filha a dormir. Entretanto convidaram-me para ir montar o contencioso da Caixa de Previdência e Abono de Família de Santarém, o que aceitei.E acabou por ficar em Santarém até hoje…Acabei por ficar por ser, entre aspas, feminista. Passados quatro meses de estar na Caixa houve uma reunião do sindicato, isto em 1970. Estudava-se o estatuto dos funcionários da Previdência. E havia, na então Caixa de Previdência, um regulamento de 1963 que proibia as mulheres de irem além de chefe de secção porque não tinham capacidade para isso. Lembro-me de dizer que não concordava com essa discriminação sexual e acabei por integrar uma comissão que trabalhava para o sindicato.Ajudou a abrir algumas portas.Ajudei, ajudei. Fui a primeira mulher deste país a ser chefe de divisão. Mas isso não impediu que quando se deu o 25 de Abril algumas pessoas entendessem que…Devia ser saneada?Ah pois! Com certeza. Recebi algumas cartas anónimas muito simpáticas. Porque continuava a dizer que era preciso trabalhar e era preciso cumprir os horários.Sempre foi um espírito livre e independente?Fui e sou. Sou do Partido Socialista desde a primeira hora e dos primeiros militantes de Santarém. Desde Novembro de 1974, creio eu. Tive uma boa escola de democracia que se chama Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra. Tenho amigos de todo o espectro político e continuo com os mesmos amigos.O que significou para si o 25 de Abril?Foi um respirar, mas deu origem a que houvesse quem pensasse que a partir dali tudo era permitido. E, principalmente, fazer cumprir regras era conotado com ditadura.Confundiu-se liberdade com libertinagem?Não diria libertinagem. Mas diria, muito mais à portuguesa, que se confundiu liberdade com rebaldaria. A nossa cultura política era muito frágil.“Santarém era um reino do marialvismo”Qual foi a primeira impressão quando chegou a Santarém?Conhecia mal a cidade. Acho que as pessoas trataram-me bem. Mas senti-me no reino do marialvismo. Ia com o meu marido ao clube e havia um certo tipo de conversas que me fazia impressão. Porque não eram as conversas a que estava habituada. Era um ambiente social muito estratificado.O que pensa da cidade hoje?Ando pelo país todo, agora como presidente do Conselho Nacional para a Promoção do Voluntariado. Antes andei como comissária do Programa de Luta Contra a Pobreza. Santarém é uma cidade bonita, mas, talvez por estar demasiado perto de Lisboa, não tem uma identidade muito própria. Não acarinha as coisas que aqui se fazem. Teve também experiências autárquicas em Santarém. Fui a primeira presidente da Junta de Freguesia de São Salvador eleita democraticamente, em 1977. Não havia um tostão, não havia nada. Gostei muito dessa experiência. Cheguei também a fazer parte da assembleia municipal, mas aquilo não me dizia o mesmo e desisti. Também porque não sou suficientemente inteligente para fazer tudo ao mesmo tempo. Há pessoas que são. Eu não sou. Acha que a mudança de cor política na câmara e a entrada de um presidente mediático como Moita Flores pode dar uma lufada de ar fresco à cidade?Pelo menos muitas obras e muitos buracos há. Espero que vá ficar tudo melhor. Mas conheço mais o actual presidente da câmara da televisão, como comentador, do que como autarca. Portanto não posso falar.Ficou desiludida com a perda da câmara por parte do PS em 2005?Não sou fiteira. Votei PS e gostaria mais que o Partido Socialista continuasse a liderar a câmara. Mas isso é a minha posição pessoal.Quem gostava de ver à frente da lista do PS nas próximas eleições autárquicas?Não sei, mas mesmo que soubesse não lhe respondia.Está um pouco fora da actividade partidária?A minha actividade, neste momento, é de cidadania. Não tenho tempo para ir às reuniões partidárias porque tenho uma pessoa com 103 anos em casa. Estou a par das coisas, mas o meu tempo de política partidária activa já passou. Gostava muito de ver Santarém qualificada, requalificada e como uma boa cidade de nível médio onde fosse bom viver.Gosta de viver em Santarém?Tenho a sorte de viver em São Bento há 40 anos. De ter bons vizinhos. Há gente nova, do tempo da minha filha, que comprou lá casas e há crianças outra vez. Acho que moro num sítio em que vale a pena viver. Embora a minha rua não esteja varrida muitas vezes, embora haja muitas ervas…De Copacabana para o coração do RibatejoA figura frágil engana à primeira vista. Elza Chambel irradia energia e continua a viver em alta rotação aos 72 anos de idade. Nascida no Rio de Janeiro e com o carácter temperado pela infância e juventude que viveu em Trás-os-Montes, a actual presidente do Conselho Nacional para a Promoção do Voluntariado fez grande parte da carreira ligada à Segurança Social em Santarém e Lisboa, depois de ter desempenhado funções como notária em Aljezur, Barrancos, Marvão e Entroncamento.Formada em Direito pela Universidade de Coimbra em 1960, numa altura em que poucas eram as mulheres no curso, afirma-se como uma “feminista entre aspas” para ilustrar as batalhas onde se envolveu e que ajudaram à afirmação do sexo feminino na administração pública. Foi a primeira chefe de divisão em Portugal e chegou a lugares de topo na estrutura da Segurança Social, como directora distrital de Santarém e da Região de Lisboa e Vale do Tejo.Hoje dedica-se a fazer o marketing do voluntariado, a agitar consciências e a dar visibilidade à causa. Os seus serviços de consultora ligada ao desenvolvimento social são regularmente requisitados. Já em Janeiro parte para Cabo Verde para mais uma missão, tal como fez antes em Angola. Emociona-se quando recorda o marido, Eugénio Chambel, falecido há um ano. Foi graças a ele que veio parar a Santarém, na década de sessenta. O marido era director da Escola Industrial e figura conhecida e respeitada na cidade onde Elza Chambel se deparou pela primeira vez com o marialvismo no seu estado puro e com uma sociedade ainda bem estratificada.Militante do Partido Socialista desde 1974, foi a primeira presidente da Junta de Freguesia de São Salvador eleita democraticamente. Hoje está desligada da política activa, embora acompanhe o que se vai passando. Gosta de viver em Santarém, no sossegado bairro de São Bento, onde tem como companhia a mãe, que fez domingo 103 anos. A mãe é um dos extremos das quatro gerações de mulheres em linha directa daquela família. Elza Chambel tem uma filha, arquitecta paisagista, e é avó de duas meninas, de 12 e oito anos. O marketing do voluntariado segundo Elza ChambelContinua a percorrer o país como presidente do Conselho Nacional para a Promoção do Voluntariado. Onde vai buscar essas energias? As competências que adquirimos ao longo da vida não se esgotam porque atingimos a idade de reforma. É o que ando a pregar por esse país fora. Não se esgotam e temos obrigação de as pôr a render. Enquanto puder ser útil, gostar daquilo que faço e sentir que posso, ao pôr uma pedrinha, estar a ajudar que a minha rua fique um bocadinho melhor eu faço. Gosto do que faço e acho que sou uma pessoa feliz. O que a atraiu nesse projecto?Este desafio surgiu em Junho de 2006 e estava longe das minhas ideias. Tinha-me aposentado em Agosto de 2002 e o Programa Nacional de Luta Contra a Pobreza tinha acabado. Mas continuei a trabalhar em consultoria, em Angola por exemplo, na área da solidariedade e desenvolvimento social. E em Janeiro irei para Cabo Verde.Qual foi a sua primeira experiência de voluntariado?Fiz o liceu em Bragança e tinha, quando andava no terceiro ano, uma jovem professora de Física que nos convidava a ir com ela às visitas da Conferência de São Vicente de Paula. Que eram feitas a pessoas que viviam bastante mal. Foi o seu primeiro contacto com a realidade crua da pobreza e da miséria?Mais da miséria, porque em Trás-os-Montes as pessoas são pobres mas existe solidariedade e reciprocidade.O paradigma da pobreza alterou-se. Hoje é mais difícil identificar os pobres?Não. Em Portugal temos um número muito elevado de população que vive no limiar de pobreza. Principalmente população idosa, mulheres, famílias monoparentais que vivem em situação de pobreza. Mas a pobreza também é estrutural e vivemos uma crise económica e financeira.Não há também agregados que se habituam ao rendimento que lhes é proporcionado pelo Estado e que se acomodam?Quando começou o Rendimento Mínimo Garantido essa campanha aconteceu. E é recorrente. Não vou dizer que não haja casos em que as pessoas poderiam ter um emprego e não estarem tão dependentes do actual Rendimento Social de Inserção. Mas sem competências para terem um emprego, muitas vezes tendo sido realojadas em bairros em que estão mais longe do emprego e sem condições de transporte, como é que é? Tem de haver políticas sociais globais mas também empenho muito grande da parte das autarquias, associações e outras instituições. E o voluntariado pode ser uma resposta.E está a ser? Ou está aquém daquilo que gostava que fosse?O voluntariado sempre existiu. Neste momento o que é preciso é que o voluntariado seja comprometido, qualificado, formado, arrisco-me mesmo a dizer profissionalizado. No sentido de ser tão competente como as profissões, só que gratuito. O voluntariado às vezes é um golpe de entusiasmo. Mas depois, e isto acontece muito ainda, as pessoas não fazem aquilo que se comprometeram a fazer. E isso não pode ser. Acho que ainda não compreenderam bem qual é o cerne do voluntariado.Que é…O voluntariado é um percurso de cidadania em que não penso só nos meus direitos de cidadão mas também nos meus deveres para com os outros, para que os outros possam exercer os seus direitos de cidadania. Pode parecer um jogo de palavras, mas não é. E o voluntariado já não é só de cariz social. Há voluntariado cultural, no campo do ambiente, voluntariado jovem, mais sazonal, na luta contra os incêndios. Há voluntariado de proximidade para lutar contra a solidão.O voluntariado é uma forma de combate à solidão?Absolutamente. E o que estamos a tentar fazer é criar os bancos locais de voluntariado, que são estruturas muito leves, a maior parte delas ligada a câmaras municipais. Santarém já tem…Mação também.Mação funciona muito bem. O de Santarém ainda está um bocadinho incipiente. Mas vai funcionar bem. Os bancos não impõem voluntários às organizações que os requerem, mas encaminham-nos. Neste momento temos 75 bancos locais de voluntariado no terreno.Quantos bancos existem no distrito de Santarém?Há dois um bocadinho adormecidos, que são os de Torres Novas e Tomar, está o Entroncamento a funcionar, está Mação, Santarém, e Sardoal está bem encaminhado. E esperemos que haja mais. O campeão este ano foi o distrito de Viseu. Penso que houve ali uma certa contaminação positiva. Espera que essa contaminação positiva também possa acontecer no Ribatejo?Espero que aconteça. O norte tem avançado um bocado mais do que o sul, para onde vamos apontar baterias. É preciso dar visibilidade ao voluntariado, uma área que o grande público ainda desconhece. Daí que tente fazer um bocado o marketing do voluntariado. Que mensagem é que deixa nesse sentido?A característica principal do voluntariado é a gratuitidade e a generosidade, mas quem faz voluntariado tem uma retribuição que nem imagina quando começa. Por outro lado, hoje há um voluntariado com muitas competências, com muita gente na vida activa, com muita gente nova. Quem tem muito que fazer arranja sempre tempo para fazer as coisas. Quem tem pouco que fazer vai deslizando e não tem tempo para nada.
Uma feminista que fez carreira no reino do marialvismo

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