Especial 25 de Abril | 23-04-2009 11:38

“Não se atreviam a beber copos na taberna do pai de uma criança que tinha visto Nossa Senhora”

“Não se atreviam a beber copos na taberna do pai de uma criança que tinha visto Nossa Senhora”

Defende que os leitores não são obrigados a aturar os dramas existenciais dos escritores e diz que o maior mistério do 25 de Abril é o facto de a PIDE não ter antecipado o acontecimento.

“Ficcionista é um nome simpático que foi inventado para descrever um aldrabão autorizado a contar histórias e a inventar a verdade”. A definição foi dada pelo escritor Carlos Vale Ferraz - pseudónimo literário do militar de Abril, coronel na reserva, Carlos Matos Gomes – no decorrer do espectáculo/tertúlia Fatias de Cá Bar É, que decorreu em Constância na noite de 16 de Abril. O convidado do grupo de Teatro Fatias de Cá, nascido “acidentalmente” na Barquinha – “o meu pai era da Beira Baixa e a minha mãe tinha nascido na Califórnia” - foi alternando as suas duas identidades ao longo da conversa conduzida pela professora Paula Junqueira e pelo encenador do grupo, Carlos Carvalheiro. “Para os judeus, os escritores, os contadores de histórias, são inimputáveis. Esta coisa de os artistas usarem pseudónimos tem a ver com isso. Com as personagens que vamos representado ao longo da vida”, explicou. “Eu fui militar no tempo da guerra em África, numa altura em que íamos para a guerra sem seguro ou subsídio, como se vai hoje. Mas o comandante tinha que representar. E representava o papel do corajoso e, fundamentalmente, daquele que nunca hesitava nas decisões. Aquele que sabia sempre o caminho. Claro que não sabíamos sempre o caminho, mas inventávamos”. A propósito de caminhos, Carlos Vale Ferraz lembrou uma passagem de uma das suas obras “O Livro das Maravilhas”. “Baseio-me numa peregrinação que eu fiz de Tomar a Fátima com o Fernando, o Francisco e a Isabel Corte-Real. Nós éramos escuteiros e fomos procurando o caminho uma vez que não o conhecíamos. Eu representei essa história da peregrinação dos adolescentes como a de uns peregrinos que vão seguindo o caminho e encontram a casa do pai da irmã Lúcia que tinha uma taberna e era alcoólico. O problema é que o homem tinha perdido freguesia com a transformação da filha em vidente, porque já ninguém se atrevia a ir comprar copos de três ao pai de uma criança que tinha visto Nossa Senhora”. O escritor explicou que para ele escrever um romance é andar à procura do melhor caminho para contar uma história e que contar histórias é o seu objectivo. “Eu tenho que encantar. Não tenho que colocar aos meus leitores os meus problemas existenciais. Os leitores não têm que saber se enquanto eu escrevo me dói a cabeça; me doem os dentes ou me cai o cabelo.” Explicou ainda que Vale Ferraz é o nome de uma quinta que pertenceu a um tio de seu pai, Guilherme de Matos Conde, que era um excelente contador de histórias e que costumava filosofar com um cavalo de que gostava muito “Ele era regedor da freguesia em Cernache do Bonjardim. Falava com o cavalo sobre filosofia e contava-lhe histórias e estava convencido que o cavalo também lhe contava histórias, que ele reproduzia”. Na qualidade de capitão de Abril e na pele de Carlos Matos Gomes, coronel na reserva, que cumpriu missões em Moçambique, Angola e Guiné (ver entrevista nesta edição), tentou explicar porque é que a PIDE/DGS (Polícia Internacional de Defesa do Estado/Direcção Geral de Segurança), não antecipou o 25 de Abril. “Havia coisas que os militares não faziam. Recolha e tratamento de informações, por exemplo. O serviço de informações militares baseava-se muito nas informações que a PIDE conseguia. Ninguém consegue fazer a guerra sem informações. A grande questão da PIDE relativamente ao 25 de Abril é perguntar se um serviço de informações daquele não estava informado sobre o que iria acontecer. Esse é um dos grandes mistérios que ainda hoje se coloca. A resposta que eu tenho para isso é que não havia uma PIDE, havia várias. Havia a PIDE do Spínola, a do Costa Gomes, umas duas ou três PIDEs em Portugal e todos esses grupos se entretinham a desinformar e a enganarem-se uns aos outros, acoitados atrás de determinados militares, na esperança que o seu fosse o cavalo certo. Aquele que iria ganhar.” O “Fatias de Cá Bar É” abriu com uma “leitura/ensaio” de uma parte da peça Ricardo III de Shakespeare que o grupo de teatro Fatias de Cá irá apresentar no edifício da antiga destilaria, na Brogueira, concelho de Torres Novas.

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