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Uma revolução não muda mentalidades de um dia para o outro

“O regresso à Chamusca na qualidade de retornados foi traumático. Diziam que tínhamos andado a explorar os pretos. De cada vez que eu saía à rua vinham ver e comentar. Porque pintava as unhas dos pés. Porque usava roupa diferente. O meu pai pedia-me para não usar calções”.

O conjunto “Melodia Ribatejana” acabou após o 25 de Abril de 1974, ao fim de uma década em Angola. Nos últimos tempos antes do regresso a Portugal, a música em Luanda era outra. “Depois dos partidos – MPLA, UNITA e FNLA – entrarem na cidade tudo mudou. A esta distância consigo falar nisto com alguma descontracção mas na altura não foi fácil. Cheguei a ter uma metralhadora instalada no meu quintal. Tinha que pedir licença para passar. De vez em quando havia tiroteio de prédio para prédio.”, conta Silvina de Sá. A guerra começou naquela altura. Antes o casal percorreu grande parte do território sem praticamente ouvir um tiro. “Só ouvimos um tiro uma vez. Íamos numa coluna escoltados por soldados e um mais inexperiente disparou contra um macaco pensando que se tratava de um inimigo”, diz a sorrir João de Sá. A aposta do patriarca da família em Angola foi ganha. Depois de acompanhar o circo o conjunto começou a ter contratos para todo o lado. Festas de bairro, esplanadas, cinemas, boites, associações, clubes. “O meu sogro começou a verificar que havia ali um mercado por explorar. Quando chegámos a Luanda não havia muitos grupos a tocar música portuguesa. As pessoas sentiam falta disso”, explica Silvina. Moçâmades, Benguela, Sá da Bandeira, Negage…é longa a lista de locais onde actuaram. Chegaram mesmo a actuar para as tropas portuguesas num ou noutro aquartelamento.Com o passar do tempo Silvina de Sá cimentava uma carreira como cantora. O casal estava bem. Tinha uma escola de música. A família também ía diversificando as fontes de rendimento. Trabalhando durante o dia noutras actividades, explorando pequenos negócios. “Nós tínhamos a vantagem de tocar pela pauta. Qualquer artista que fosse a Angola não precisava de levar músicos. Bastava levar as partituras. Acompanhámos quase todos os grandes artistas da altura. Tony de Matos, Luís Piçarra, Tonicha, Simone de Oliveira, Fernanda Baptista. Noutras alturas fazíamos as primeiras partes de espectáculos. Nos primeiros tempos a Silvina quando não cantava tocava bateria. Depois começou a ter convites para programas de rádio, serões para trabalhadores, cantava com outras orquestras. Grandes orquestras da altura. Chegou a fazer espectáculos de revista. Praticamente só não actuávamos às segundas-feiras”, explica João de Sá.Ao fim de dez anos foi o trauma do regresso. Silvina de Sá recorda as incompreensões, os insultos, a coscuvilhice. “Viemos para casa dos meus pais aqui na Chamusca. A minha filha tinha meses. Foi um choque a todos os níveis. O meu pai pedia-me para eu não me pintar. Para não usar calções na rua. Fechava o portão para as pessoas não me verem. Eu tinha 28 anos. A revolução não tinha chegado à cabeça dos nossos pais nem das pessoas daqui. Quando saía à rua toda a gente me vinha espreitar. “Olha, pinta as unhas dos pés. Chegaram a insultar-nos. Andavam a explorar os pretos, diziam.”As canções que cantava deixaram de estar na moda. A rádio só passava música revolucionária. Os espectáculos eram com cantores revolucionários. Silvina e João de Sá começaram a refazer a vida. “Eu fui para a escola como contínua. Tive sorte porque fui lidar com pessoas diferentes. Com professores que me trataram como gente. Pessoas com estudos. Luanda na altura em que lá estivemos era uma cidade evoluída. Sentíamo-nos livres. Não havia qualquer pressão. Aqui as coisas mudaram muito mas demorou o seu tempo”.A pouco e pouco João e Silvina de Sá voltaram à música. Ele foi para o Rancho Folclórico da Azinhaga. Ela começou a participar em espectáculos, noites de fados. Os dois juntos voltaram a animar algumas festas. “Havia cá um grupo chamado Nova Experiência. Íamos com eles e a meio dos bailes actuávamos”, conta Silvina. A filha do casal, Mónica, não aprendeu solfejo. Começou mas não concluiu. Os pais dizem que ela canta muito bem e que até chegou a substituir a mãe numa altura em que ela foi sujeita a uma cirurgia. “O empresário que nos tinha contratado não estava perto do palco, quando a ouviu cantar perguntou a alguém que estava com ele: Então a Silvina não foi operada?”. No ano em que Silvina de Sá apresentou o seu CD “Os Sons do Tejo” num espectáculo da Ascensão teve uma prenda inesperada. “Antes de começar a cantar ‘Vem de longe o teu sorriso’ dediquei a canção à minha filha. A meio percebi que ela tinha vindo do sítio onde estava, subira ao palco e estava a cantar ao meu lado. Tenho ali a fotografia. Foi um momento muito feliz”.

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