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“A PIDE tinha os olhos postos em Vila Franca de Xira”

Augusto Ribeiro, guarda-livros e militante comunista, escapou à clandestinidade e à prisão

Nasceu na Rua das Pedras, em Vila Franca de Xira, abraçou a luta contra o antigo regime, mas escapou à clandestinidade e à prisão ao contrário de outros camaradas, como Carlos Pato, que morreu em Caxias. Apesar de tudo “os comunistas não se arrumam em casa. Não ficam tristes. Continuam a lutar”, diz Augusto Ribeiro.

É tarde de sábado. Augusto Ribeiro pede um café ao balcão do Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, com a frescura dos 92 anos. Boné riscado e casaco verde no mesmo tom dos olhos. Os mesmos olhos que se enchem de água quando lembra os camaradas comunistas que padeceram na prisão pela liberdade. Carlos Pato, companheiro de todos os dias, foi um deles. “Acho que posso falar disto agora”, confidencia já sobre a mesa depois de olhar para os dois lados, tique de um tempo em que as conversas sobre política eram secretas.A memória solta-se para relembrar o dia em que o presidente da Câmara de Vila Franca de Xira mandou chamar o então secretário do Ateneu Artístico Vilafranquense para que a banda saísse à rua.Augusto Ribeiro, guarda-livros do Grémio da Lavoura, em Vila Franca de Xira, deixou por instantes o local de trabalho e foi ouvir o autarca. Corria o ano de 1948 e tinha sido adjudicada a obra de construção da ponte Marechal Carmona, que liga Vila Franca de Xira a Porto Alto, a maior e mais cara empreitada até à altura adjudicada pelo Estado.O então presidente da câmara queria assinalar o dia com a saída da banda à rua, mas Augusto Ribeiro pressentiu logo ali problemas. “Tinha chegado um maestro novo para tomar conta da banda que estava ainda desorganizada. Havia falta de fardamentos e de instrumentos. Ele era muito meticuloso e não saía para a rua de qualquer maneira”. Augusto Ribeiro ficou de apresentar o assunto na reunião de direcção dessa noite, mas a resposta já era esperada. “A banda não sai”, decidiu o maestro. “Calculámos logo que aquilo ia dar um pé de vento, como deu”, explica Augusto Ribeiro.Um dos elementos da direcção ficou de avisar o presidente da câmara, instalado na esplanada do largo da câmara. “Com instrumentos ou sem instrumentos a banda tem que sair”, ordenou o presidente que entrou no carro com o motorista e foi a Alhandra contactar a filarmónica da terra. “Eles vieram. Não queira saber o que aquilo deu”. O presidente da câmara foi assistir à assembleia-geral seguinte do ateneu e levou dois polícias. Não ficou até ao fim, mas os dois elementos trataram de contar o que lá se passou. “Levaram mais tarde o Carlos Pato, que era funcionário do Banco Ultramarino, para Caxias. Ele morreu lá”. A voz turva-se. “Até os sapatos lhe rebentaram. Impressionou-me muito”.Augusto Ribeiro foi mandado para a rua. “Um dia no Grémio recebem uma carta: ‘demita o funcionário tal, por ordens superiores’. A mim não me fez qualquer diferença. No outro dia estava a trabalhar”, conta. O ateneu seguiu com uma direcção fantoche. Augusto Ribeiro não mais lá voltou, mas continuou no associativismo. “Devo dizer que corri quase todas as colectividades de Vila Franca, como a União Desportiva Vilafranquense e os bombeiros”.Acabou por regressar ao Grémio seis meses depois. Chegou a informação de que poderia ser reintegrado. Augusto Ribeiro deixou para trás a oportunidade de participar num concurso público para se tornar funcionário da empresa de gás e electricidade e ainda hoje não se perdoou a si próprio. “O coração muitas vezes é mau conselheiro e eu usei o coração. Eu, orgulhoso, quis fazer ver às pessoas que não estava metido em nada”. Aos vinte anos já era militante do partido. Influência de uma terra de comunistas. Fala com orgulho em Dias Lourenço, mas também em Alves Redol e Soeiro Pereira Gomes, os dois últimos já desaparecidos. Nunca entrou na clandestinidade. Não chegou a ser preso. Porquê? “Possivelmente por sorte. Os que caíram lá nunca falaram”.Os comunistas fizeram sempre muita vida de colectividade, conta. “Naquele tempo as pessoas refugiavam-se nas colectividades para porem a sua política em ordem e também faziam um bom trabalho. Era um ambiente contagiante. A PIDE tinha os olhos postos nesta terra. Em Alhandra também”, diz quem já pertenceu à comissão de freguesia do partido. No dia 2 de Maio completa 93 anos. A idade fá-lo refugiar-se em casa durante o Inverno. Sai neste dia porque o Sol espreita. Mas o trabalho de contabilidade continua a ocupá-lo. Não diz o nome da empresa para que trabalha nem a reforma reduzida de uma vida de trabalho como guarda-livros do grémio. Trabalha por gosto, mas também por necessidade. “A minha história acaba aqui”, atira. Mas o discurso de esperança está nas palavras do homem que continua fiel aos princípios que defendeu desde que usava calções. “Os comunistas não ficam tristes. Não se arrumam em casa. Continuam a lutar. Como até hoje”. O menino que foi à escola com o dinheiro das gorjetas do café central Augusto Ribeiro, 92 anos, é filho de Vila Franca de Xira. Nasceu na Rua das Pedras, actual Sacadura Cabral, num tempo em que o Hospital ainda não existia. O pai era serralheiro. A mãe “de casa”. Concluiu a antiga quarta-classe, mas por falta de possibilidades financeiras dos pais foi ajudar o tio, casado com uma irmã da mãe, bandarilheiro, Francisco Rocha, que explorava o Café Central, em Vila Franca de Xira. A partir de determinada altura habituou-se a viver em casa dos tios. As gorjetas que recebeu no trabalho ao balcão permitiram-lhe estudar durante dois anos no liceu. O café era frequentado por médicos, doutores, escritores e donos da farmácia e mais meia dúzia de pessoas. “Tanta praga que roguei. Eu a querer ir-me embora e eles a conversar. O pai de Álvaro Guerra também parava por ali. Tinham o vício de conversar até às 3 ou 4 horas da manhã. Às vezes quando fechava o café vinham para a rua. Era no largo da câmara que acabavam as conversas”.Um médico, Rodrigo César Pereira, tomava café ao balcão e comia uma broa, um daqueles doces que a minha tia fazia muito bem. Depois o dinheiro acabou. “Sucumbi”, explica. O tio não o ajudava financeiramente. Entrou no Grémio da Lavoura e lá se fez guarda-livros. É casado, tem filhos e netos. Também chora de felicidade. Conheceu a esposa, costureira, nos tempos do Café Central. O café ficava no percurso da jovem e os dois trocavam olhares, mas foi nos bailes que se conheceram melhor.O jornal que passava de mão em mão dentro de uma caixa de fósforosNos tempos em que a repressão era quem mais ordenava as notícias circulavam no Jornal Avante que passava de mão em mão às vezes meticulosamente guardado numa caixa de fósforos. “Eram mais pequenos do que são hoje. Dobravam-se e metiam-se dentro de uma caixa de fósforos para dar a outro camarada”, explica Augusto Ribeiro.O contabilista não recebe o jornal. Prefere comprá-lo. Vício de quem se habituou a recebê-lo da forma mais difícil. Hoje, quando é preciso fazer alguma tarefa ou arranjar dinheiro para o partido, ainda sobe as escadas da sede. É presença habitual na festa do Avante e só há dois anos não vai lá porque a idade pesa. Alegra-se de ver o partido comunista renovado e juventude a identificar-se com os ideais que ainda defende. O Portugal de hoje não é o país que sonhou. “Falta fazer muita coisa. As coisas estão muito más e não foi para isso que se fez o 25de Abril. Queríamos que não houvesse tanta miséria e dificuldade para o povo”, lamenta.A liberdade existe. “Foi a única coisa que não nos tiraram. Podemos estar à vontade num sítio qualquer a falar no que quisermos. Foi um alívio enorme”.

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