Especial 25 de Abril | 21-04-2010 17:19

A fome e o sabor de Abril

A Liberdade e os valores de Abril merecem mais atenção, diria até mais carinho, por parte do sistema educativo e das famílias.Nasci depois de 1974, a minha geração e todas as posteriores olham para a Liberdade e para a Democracia como “coisas vulgares”, algo natural, que não oferece contestação e até temos dificuldade em compreender como é que se viveu sem estas “coisas vulgares”.Felizmente, nem todos os nascidos pós-Revolução dos cravos sofrem dessa inconsciência colectiva sobre as conquistas de Abril. Os que têm – como eu tenho – informação sobre a História daquilo que foi a realidade de Portugal antes, durante e depois do 25 de Abril de 1974, temo-la graças a familiares e a vivências pessoais e muito pouco pela via escolar.No meu percurso académico, do ensino básico à faculdade, a História de Portugal serviu-me o 25 de Abril como um hambúrguer, tipo “fast food”, ou se preferirem em excesso de velocidade, como se onde se devia circular a 50km/h se passasse a 220km/h, sendo na minha opinião, tal como no código da estrada, uma infracção muito grave, com sanção acessória de cassação de licença de condução. O que me preocupa é que esta infracção é cometida incessantemente há longos anos, sem que ninguém seja multado ou penalizado. Aliás, penalizadas estão já as várias gerações que cresceram alheadas da História de Abril e, consequentemente, da realidade política e social do nosso país.O mais caricato disto tudo é que os principais responsáveis por esta situação são os próprios “pais” da Revolução, já que foram eles que fizeram as opções políticas e estratégicas do sistema educativo português. Os jovens alunos são os menos culpados, são apenas os passageiros do veículo em excesso de velocidade e mais uma vez, tal como na estrada, os acidentados são vítimas de negligência alheia.A História da Liberdade é linda, interessante e até excitante. Os ingredientes para captar a atenção dos alunos estão lá todos, basta para isso haver vontade de os “cozinhar”. É claro que o primeiro sinal dessa vontade tem de partir dos responsáveis políticos. Numa segunda fase, caberá às Escolas e aos professores meterem mãos à massa e com o carinho dos melhores chefs preparem a ementa a ser servida. O menu deverá apostar naquilo que mais facilmente abrirá o apetite aos estudantes, estou a pensar na riquíssima actividade cultural inspirada nos valores de Abril. Tenho a certeza que no final desta “refeição” todos ficarão saciados. A família tem desempenhado um papel de compensação, face à rigorosa dieta imposta pela Escola. Diga-se de passagem que não é apenas nesta matéria que isto acontece.Lá em casa come-se muito bem, a Mãe é uma cozinheira de mão cheia, talvez por isso eu seja tão exigente na gastronomia. À mesa, para além de nos deliciarmos com os miminhos da Mãe Cristina, temos também o privilégio de beber a experiência e as vivências do Pai Orvalho, um alentejano de 71 anos, que veio de uma família pobre da aldeia de Montoito, perdida entre o Redondo e Reguengos de Monsaraz, trabalhar para o Caminho-de-Ferro na grande Lisboa e acabou no Banco Espírito Santo, em Coruche. Este percurso de vida só por si vale pela coragem e determinação, mas é ainda mais cativante porque grande parte deste trajecto desenrola-se durante a ditadura, envolve um homem que conseguiu fugir ao Ultramar, que foi ferroviário, sabendo-se que na época os ferroviários eram digamos que… muito “valentes”, e que passou o 25 de Abril de 1974 já como funcionário de um dos capitalistas da altura. O Pai Orvalho sempre gostou de discutir política durante as refeições, é um homem de esquerda, militante do Partido Socialista, com uma pequena passagem pelo PRD, na década de 80. À mesa sentava-se ainda o meu irmão Luís, dez anos mais velho que eu, recordo-me de algumas discussões acesas entre o então estudante do ISCTE, aluno de Economia de Cavaco Silva e o nosso pai Orvalho. Tinha eu os meus 10 anos. Ao meu lado sentavam-se ainda a avó Natalina e o avô Zé Cansado, que nasceu em 1918 e partiu em 2008, 90 anos de estórias e História, Mestre-ferroviário na CP e com uma vida social que lhe permitiu conviver, mas nunca compactuar ou concordar, com algumas figuras do Estado Novo. Lembro-me de o ouvir contar peripécias vividas com Amália Rodrigues, ou com Américo Tomás (e que bem ele as contava).Foi mais à mesa, do que à carteira da sala de aula, que eu aprendi e me interessei pela História recente de Portugal. O meu maior receio é que hoje em dia este suplemento vitamínico já não é distribuído à mesa pela família. A cada vez maior individualização dos indivíduos, o imediatismo, a Internet (que também pode desempenhar o papel contrário), a playstation, os 300 canais de televisão e muitas mais distracções. A isto junta-se o facto de estas novas gerações (a minha e a anterior) de pais estarem alheadas daquilo que foi o 25 de Abril, são as crianças dos bancos da escola do pós-Revolução, as tais que passaram fome de Abril nas salas de aula. Restam-nos os avós de hoje para vitaminarem os netos e, quem sabe, esses mesmos netos consigam dar a provar aos pais o sabor de Abril.*Chefe de Gabinete do Presidente da Câmara Municipal de Coruche

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