
Memórias da ocupação da Fiação de Tomar contadas pelos dois lados da barricada
Fábrica foi ocupada pelos trabalhadores em Fevereiro de 1975 e os patrões foram fechados nas instalações
Domingo, 25 de Abril, celebram-se 36 anos da Revolução dos Cravos. Os tempos que se seguiram foram recheados de excessos revolucionários e contra-revolucionários que hoje são contados muitas vezes com humor. Mas na altura ninguém tinha vontade de rir. Como no caso da ocupação da Fábrica da Fiação de Tomar pelos trabalhadores, a 5 de Fevereiro de 1975. João Elvas, filho do administrador, e Júlio Godinho, da comissão de trabalhadores, são dois protagonistas do episódio registado nos jornais da época. Dois depoimentos, dois olhares diferentes sobre o mesmo acontecimento histórico em Tomar.
João Elvas fez 14 anos no dia da Revolução dos Cravos mas só dez meses depois tomou consciência extrema do que significava a época que vivia. Filho de José Manuel Cure Rezende Elvas, que juntamente com o cunhado, António Trindade dos Santos, administrava a Fábrica da Fiação, em Tomar, não esquece o dia 5 de Fevereiro de 1975. Vivia com o pai numa das casas dos administradores, situadas dentro dos portões da fábrica, e através da janela do quarto viu que nessa manhã os trabalhadores tinham-se concentrado em piquetes no exterior. As portas foram fechadas a cadeado e ninguém estava autorizado a trabalhar. Os salários da Fiação, que empregava na altura cerca de 1200 pessoas, não estavam em atraso mas “o descontentamento era geral e havia a certeza absoluta que a fábrica ia fechar”, recorda Júlio Godinho, 59 anos, da antiga comissão de trabalhadores, que estava no outro lado da barricada. A posição de força prolongou-se por 48 horas e manteve no interior da fábrica os dois administradores e o jovem que, ao contrário dos irmãos, tinha ido estudar para Tomar. O pelouro financeiro da fábrica era da responsabilidade de Diocleciano Teodoro das Neves, considerado como um terceiro administrador, que apoiou a atitude dos trabalhadores. “A grande luta era fazer com que os administradores repensassem toda a sua posição ou então saíam dali. Depois passava por se arranjar uma comissão administrativa nomeada pelo governo e pela banca para poder funcionar ali”, conta Júlio Godinho.Viviam-se em Portugal os tempos do PREC (Processo Revolucionário Em Curso) iniciado com o golpe militar de 25 de Abril de 1974 e que só terminou com a aprovação da Constituição Portuguesa em 1976. O PREC faz alusão ao período crítico do “Verão Quente de 1975” – época em que, por exemplo, se dá a ocupação da Rádio Renascença e Jornal “República” - que culmina com os acontecimentos de 25 de Novembro de 1975, um golpe que põe militares contra militares e que pacifica o país. A par da reforma agrária, algumas casas e herdades no Alentejo e Ribatejo, bem como unidades industriais na cintura industrial de Setúbal tinham sido ocupadas já antes deste episódio na Fiação de Tomar. “Com a maior das surpresas, entraram-nos pela casa dentro e cortaram-nos os telefones. Estivemos dois dias fechados. Nem tabaco deram ao meu pai”, conta a O MIRANTE, João Elvas, actualmente com 49 anos. A situação económica da fábrica, ao que tudo indicava, era estável. Os trabalhadores chegavam a receber prémios de produtividade e a unidade fabril tinha um vasto património pelo que o hoje advogado não aceita o acto preconizado pelos trabalhadores. “Não havia salários em atraso porque o administrador era o engenheiro Trindade dos Santos que era da família de Manuel Queiroz dos Santos, na altura o principal administrador do Banco Espírito Santo, instituição à qual recorria sempre que precisasse de crédito”, defende Júlio Godinho. “Não é por acaso que os terrenos da fábrica pertencem hoje todos ao Banco Espírito Santo”, sustenta. “No meio daquela situação, o meu pai sempre me tentou passar a mensagem de que tudo aquilo era normal”, recorda João Elvas, admitindo que teve medo e pelo teor das conversas que ouvia, no rés-do-chão, chegou a recear o pior, apesar de não ter havido qualquer violência. “A ideia era correr connosco dali para fora. Houve uma traição por parte do terceiro administrador, que vivia no rés-do-chão da nossa casa e era considerado amigo da família, porque entrou em conluio com os trabalhadores. Nunca desconfiámos de nada”, recorda. Escoltados pelo Regimento de Infantaria“Dizer que houve sequestro é um exagero. Eles é que não quiseram sair enquanto não esclareceram o que se passava. E acho que fizeram bem”, contrapõe Júlio Godinho, que começou a trabalhar na fábrica da Fiação com apenas 11 anos, primeiro como moço de recados mais tarde no escritório, na parte da contabilidade. “A fábrica estava obsoleta e não tinha viabilidade em função da má gestão que era feita”, resume a O MIRANTE, sentado na sala de estar de sua casa, em Tomar. Júlio Godinho diz que foi o último a entrar para a comissão de trabalhadores e só soube da intenção apenas na madrugada desse dia, cerca das três da manhã. “Aderi porque queria garantir o meu emprego. Como trabalhava na contabilidade tinha acesso a muitas informações e sabia o que se passava em termos de finanças, fabricação e devolução”, justifica. “Ou salvávamos aquilo ou íamos todos para o olho da rua”, diz. À medida que os trabalhadores saíam dos turnos, iam-se concentrando em piquetes. A adesão foi massiva. Os ânimos estavam exaltados. Contestavam, por exemplo, despedimentos sem justa causa. O antigo trabalhador confirma que, de facto, não existiam salários em atraso mas mesmo assim havia a “plena consciência” que a fábrica ia fechar porque se pensava que muito dinheiro era desviado para outros fins. Hoje, Júlio Godinho reconhece que, depois do 25 de Abril, “deu-se uma explosão de liberdade que não se soube gerir na altura”.A mãe de João Elvas, Maria de Assunção Elvas, vivia em Lisboa e soube o que estava a acontecer ao marido, irmão e filho menor através de um programa emitido no Rádio Clube Português, da responsabilidade da CGTP-Intersindical, e que se chamava Alavanca. “Nessa noite é emitida uma notícia que dizia que finalmente os fascistas da Fábrica da Fiação tinham sido apanhados e tinham conseguido atingir o seu objectivo”, recorda João Elvas. A mãe desdobra-se em contactos para que elementos do Regimento de Infantaria 15 de Tomar os retirassem de lá. Acabariam por sair escoltados, no dia 7 de Fevereiro, em direcção a Lisboa. “Saíram escoltados porque nós chamámos as Forças Armadas uma vez que estavam mais de mil pessoas cá fora e receámos pela sua segurança”, contrapõe Júlio Godinho, da comissão de trabalhadores.Golpe fatal para a fábricaDepois do sucedido, a fábrica passa a ser administrada por uma comissão de trabalhadores que, munidos de folhas de produção e documentos contabilísticos, pedem a intervenção do Estado, para reestruturar a fábrica. Sempre negada. “Passamos dias sem fim nos ministérios em Lisboa a tentar convencer o governo a nomear um administrador”, recorda. Poucos meses depois começam os problemas na produção e a faltar dinheiro para pagamento de salários. As encomendas também começam a vir devolvidas com mais frequência porque falta qualidade nos artigos exportados. “Como podíamos combater com os turcos ou com os russos que tinham uma mão-de-obra mais barata que a nossa? Trabalhávamos com máquinas que tinham 80 anos”, refere Júlio Godinho. Dão-se clivagens entre os trabalhadores e o regresso dos antigos administradores começa a ser solicitado. José Manuel Elvas e Trindade dos Santos acabariam por regressar em 1979, após negociações com o Estado e no âmbito de uma organização que se tinha criado para permitir a viabilização das fábricas que tinham sido ocupadas após o 25 de Abril. “Um regresso de pessoas que tinham o seu orgulho ferido”, sustenta João Elvas. Se a ocupação dos trabalhadores a 5 de Fevereiro de 1975 não tivesse acontecido, a fábrica ainda existia? “Sim. Esse golpe matou a fábrica que chegou a ser um modelo na Europa” acredita hoje João Elvas. “A fábrica morria na mesma, não foi este episódio que ditou o seu fim”, contrapõe Júlio Godinho. Uma carta de 1975Na edição de sábado, 15 de Fevereiro de 1975, dos dois semanários locais de Tomar, Maria Assunção Resende publica “Uma Carta” onde repudia o acto. “As ocupações das fábricas só são admitidas quando nestas se verificam despedimentos sem justa causa, o não pagamento de salários ou o desvio de dinheiros, o que nada disto se passou nessa empresa, apesar das calúnias apregoadas e editadas pela comissão de trabalhadores”, sublinha. Também o P.P.D, através de um comunicado, reconhece que os trabalhadores da Fábrica da Fiação devem “estar atentos a todos e quaisquer possíveis manobras tendentes a prejudicar a produção e continuidade do trabalho” mas que o sequestro de pessoas, se revela uma medida extraordinariamente limitativa da liberdade de vida a todo o ser humano”.A Fábrica da Fiação de Tomar chegou a ser considerada a maior unidade têxtil de Portugal e deixou de laborar em 1993, esmagada pela concorrência têxtil estrangeira. Reunidos em plenário, em Outubro de 2009, e com poucas perspectivas de receberem o que lhes devem, a maioria dos trabalhadores manifestou-se pela aceitação da proposta de pagamento faseado de cerca de 20 por cento do valor total da dívida.

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