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Um homem da festa brava que nunca enfrentou um toiro

Francisco Morgado comenta corridas na TV e chegou a fazer relatos de touradas em directo na rádio

Comentador de corridas de toiros na RTP há 30 anos, director de um jornal semanário dedicado à tauromaquia, Francisco Morgado é um espectador crítico do fenómeno. Uma espécie de treinador de bancada que diz nunca ter tido o valor para se colocar à frente de um toiro bravo. Entusiasta da nova geração de protagonistas da festa brava e “farto dos velhos”, diz que os toiros de morte não fazem falta em Portugal e aplaude a política de preços baixos de que a praça de Santarém é um exemplo. Considera o público de Vila Franca de Xira “muito especial” e explica porque é “desproporcionado” o título de Sevilha portuguesa dado à cidade.

João CalhazNão é muito comum ver-se uma praça encher numa corrida de toiros. Trata-se de um espectáculo caro ou afinal os aficionados não são assim tantos?O que acontece é que a tauromaquia, tal como as outras actividades no nosso país, sofreu uma evolução. O espectáculo democratizou-se. Admito que em tempos mais recuados a corrida de toiros era um espectáculo elitista. Não só pelos seus conceitos técnicos, que obrigavam as pessoas que iam às corridas a conhecerem profundamente a matéria para poderem apreciar devidamente o que estavam a ver…As coisas já não são assim.Não. O espectáculo dos toiros é hoje um espectáculo de massas. O público vai às corridas porque quer participar no espectáculo. Quer-se divertir. Hoje vai quem entende e quem não entende. O leque de público interessado no espectáculo aumentou.Aumentou, mas as praças continuam muitas vezes por encher...Acho que se pode ver a evolução das coisas através do número de espectáculos. Se formos ver o histórico de espectáculos constata-se que o seu número aumentou exponencialmente. Hoje fazem-se com toda a facilidade 300 ou 320 espectáculos por ano. Antes fazia-se 150 ou 180.Isso obriga a que haja também mais protagonistas nas arenas.Sim. E há uma outra coisa fundamental. O aparecimento das praças desmontáveis levou o espectáculo ao Norte, onde só havia praças em Viana do Castelo, que está agora desactivada, e na Póvoa do Varzim. Ao implementar-se as praças desmontáveis o espectáculo pôde ir a sítios onde nunca tinha ido, com uma adesão de público extraordinária e com um entusiasmo que não se vê no sul, onde há os verdadeiros aficionados. A corrida de toiros no Norte é um verdadeiro espectáculo popular.A política de preços baixos que é praticada na praça de Santarém também pode ser uma boa forma de cativar público. Pode. Foi uma boa medida que ficamos a dever ao actual presidente da câmara. Numa altura em que a praça estava numa situação digamos que desesperada em termos de assistência de público, Francisco Moita Flores pôde, juntamente com a empresa, criar esse intercâmbio. Hoje é um modelo seguido por muitas outras empresas.Também com a colaboração das autarquias?Umas vezes sim, outras não. Os empresários acabaram por entender que é preferível colocar preços a 10 euros e ter gente na praça, do que colocar preços a 25 euros e não ter lá ninguém. Santarém pode ter bilhetes a 5 euros devido à capacidade da praça, que tem 13.200 lugares. É o maior recinto de espectáculos taurinos do país. Evidentemente que Vila Franca de Xira, que tem 3.800 ou 4.000 lugares, não pode competir dentro dessa matéria.“O público de Vila Franca encontra sempre razões para não ir aos toiros”O caso de Vila Franca é sintomático daquilo que estamos a falar. É uma praça que raramente enche.O público de Vila Franca é muito especial. É muito crítico e, não sei bem porquê, encontra sempre razões para não ir aos toiros. Ou pela composição do cartel, ou pelos toiros, ou pelo dia, ou seja pelo que for. Vou muitas vezes a Vila Franca e encontro muito mais aficionados de fora nas bancadas do que de lá. É um fenómeno que nunca consegui entender. O título de Sevilha portuguesa ajusta-se a Vila Franca de Xira?Acho que não. É desproporcionado.O actual presidente da Câmara de Santarém ajudou a revitalizar a Monumental Celestino Graça, com uma política de apoio aos espectáculos taurinos. Outros municípios deviam seguir esse exemplo?Deviam, mas temos de ser realistas. Hoje não há capacidade para os municípios poderem continuar a apoiar espectáculos desta natureza. E o fenómeno não é de cá, repete-se também em Espanha, onde o espectáculo está a atravessar uma crise muito grande. Continuam a realizar-se as grandes feiras, mas as chamadas feiras pequenas estão a desaparecer porque não há o apoio dos municípios. Foram também as razões financeiras que acabaram com a Feira Nacional do Touro em Santarém?A Feira Nacional do Touro é diferente. Tive o privilégio de ter colaborado nas duas edições que houve. Foi um espectáculo superiormente montado pelo Pedro Torres, pelo dr. Joaquim Grave e pelo Carlos Empis, que tinha características especiais. Estas coisas só podem ser feitas, como foram, com o apoio das casas agrícolas, dos ganadeiros, de toda a gente… Houve uma conjugação de boas vontades para se poder montar aquelas duas edições, que foram realmente extraordinárias.As coisas tinham que ficar por aí?Não se pode estar a pedir sacrifícios às pessoas. Tudo isto custa muito dinheiro, muito tempo e empenhamento. As pessoas andam ocupadas com outros problemas e houve que desistir da ideia. A montagem da Feira do Touro obrigava esses três homens a tirarem praticamente meio ano da sua vida profissional para poderem montar em condições aquilo que tivemos oportunidade de ver. Não podia ter havido um envolvimento maior do município e do CNEMA para ajudar a montar esse evento?Estas coisas funcionam quando há carolice, conhecimento e amor pelas coisas que se fazem. Não acho que haja um gestor profissional de feiras que seja capaz de montar uma Feira do Touro como estas. Foram coisas muito bonitas, que devemos guardar no nosso coração. Por vezes as cópias deslustram muito os originais. Há anos o Centro Nacional de Exposições (CNEMA) organizou corridas de toiros numa praça desmontável durante a Feira Nacional de Agricultura. Fez bem em não insistir nessa aposta?Acho que sim, enquanto houver uma praça como a Celestino Graça. Podemos discutir se aquela praça dentro do actual contexto dos espectáculos poderá existir ou ser reconvertida, mas não ficava bem insistir em espectáculos numa praça desmontável.“A Feira do Ribatejo está actualmente muito descaracterizada”O que pensa da actual praça de toiros de Santarém. Está bem assim? Devia ir abaixo?Neste momento Santarém devia ter, em vez daquela praça, um pavilhão multiusos com sete mil lugares onde se pudessem realizar vários espectáculos. Essa solução está nos projectos da câmara.O que sei é que houve uma empresa espanhola interessada em comprar o actual espaço, em construir uma praça com essas condições. Situação que foi aceite com a obrigatoriedade de só se deitar a Monumental Celestino Graça abaixo quando estivesse acabada a outra. Mas depois a situação económica europeia inverteu-se e acharam que não seria altura oportuna para fazer isso.O presidente da câmara também já falou várias vezes na intenção de se construir um recinto multiusos naquela zona.Podia ser. Agora se será no planalto ou noutro local, inclusivamente no CNEMA, para mim seria indiferente.Há anos falou-se precisamente na possibilidade de se construir uma praça de toiros no CNEMA…Não me parece mal. O Celestino Graça, de quem era bastante amigo, um dia disse-me que quando tivessem de tirar a Feira do Ribatejo da cidade, que a levassem para longe, porque a cidade ia lá ter. Quando se fez a primeira Feira do Ribatejo no Campo Infante da Câmara perguntava-se em Santarém porque se tinha ido fazer a feira tão longe. Porque a cidade acabava onde era a igreja do antigo hospital. Para a frente era só olivais. As pessoas achavam que a feira ficava longe e realmente a cidade chegou lá. Quando se levou a Feira do Ribatejo para o CNEMA não me pareceu mal, porque há realmente a necessidade de expandir a cidade.Os mais puristas continuam a ter dificuldades em engolir essa solução e os próprios moldes actuais da feira.Isso é outra questão e entendo-a bem. A Feira do Ribatejo está actualmente muito descaracterizada sob o ponto de vista agrícola. Vejo ali concertos a mais, coisas que atraem muito público, mas a designação de agricultura já está porventura a mais naquela feira. Eu sei que é necessário arrastar gente, que houve este ano grande afluência motivada pelos concertos, mas a parte do sector agrícola e pecuário devia ser um pouco mais cuidada. Mas isso depende dos gestores que lá estão.Como tem visto a gestão do CNEMA ao longo dos anos?É complicado. Há quem diga que aquilo é uma obra megalómana. E foi, dentro de certa medida. Era na altura primeiro-ministro o actual Presidente da República. Aquela obra foi construída, tanto quanto sei, com fundos comunitários. Aproveitou-se naturalmente o dinheiro que havia disponível e que devia ser muito… Tal como a praça de toiros de Santarém, se fosse construída hoje, nunca teria 13.200 lugares. Mas na altura era assim que se fazia. Com o CNEMA terá sido a mesma coisa.O actual presidente da Câmara de Santarém vai deixar a sua marca no concelho?Acredito que sim, pelas boas e pelas más razões.Primeiro as boas...A cidade está diferente para melhor, em termos de requalificação do espaço público. Há um esforço para se dar mais comodidade às pessoas. E sobretudo para se dar a imagem de uma cidade mais viva, mais actuante. Nesse particular temos que dar a mão à palmatória e dizer que a gestão da câmara tem sido boa. O problema é sempre saber quem paga. Mas como esse é um problema permanente desde que me conheço, alguém o há-de resolver.“Nunca tive valor nem mérito para me pôr diante de um toiro bravo”É comentador de corridas de toiros na RTP há 30 anos. Qual a sua opinião sobre a proibição de transmissão de corridas à tarde?Acho isso uma parvoíce. Houve um excesso de zelo. Os espectáculos são para 6 anos e é interdito apenas a menores de três anos quando não acompanhados por familiares. Daí não ver a razão para um espectáculo que é para 6 anos não poder ser transmitido à tarde. Faltam os toiros de morte nas corridas em Portugal?Acho que essa é uma falsa questão. Portugal não tem tradição de corridas com toiros de morte. Teve até 1922 ou 1923, quando foram proibidas as corridas de toiros de morte. Se tivesse capacidade de decisão, autorizava as corridas com toiros de morte. E tenho a certeza absoluta de que se realizavam meia dúzia de corridas e depois morriam naturalmente. Essa não é a nossa filosofia. Além disso, Badajoz está a 200 km e Madrid a 600 km. Quem quiser mete-se no carro e dentro de hora e meia está em Badajoz ou em cinco horas está em Madrid. As corridas de toiros continuam a suscitar acções de contestação por parte de associações de protecção dos animais. Não teme que um dia essa causa vença?Não. Esta guerra é ao contrário. Quem luta pela sobrevivência da raça do toiro bravo são os aficionados. Quem luta pela sua extinção enquanto raça são os defensores dos animais. Isso é que é bom que as pessoas entendam. Ao tentar-se a proibição global do espectáculo está-se a lutar pela extinção da raça brava. No dia em que acabarem as corridas acabam os toiros. E a actividade de criação do toiro bravo e o espectáculo dos toiros dão pão a muita gente. Incomodam-no essas manifestações anti-touradas?Não me incomodam nada. Vou ao Campo Pequeno todas as quintas-feiras e lá estão eles metidos dentro de um quadradinho, com a polícia, que é paga com o nosso dinheiro, a guardá-los. Gritam, dão as suas palavras de ordem. É um bocado de folclore. Os turistas tiram umas fotografias e depois vão ver a corrida. As pessoas têm todo o direito de não gostar do espectáculo, não têm é o direito de negar o direito aos que são aficionados de assistirem a um espectáculo de que gostam.Foi sempre uma espécie de treinador de bancada, ou também já enfrentou os toiros na arena?Nunca tive valor nem mérito para me pôr diante de um toiro bravo. Nunca! Tentei experimentar. Houve uma vez uma santa vaca na herdade do senhor marquês de Rio Maior que me deu a oportunidade de dar uns passos de muleta. Foi a única vez que me pus diante de um animal bravo. Os protagonistas aceitam bem as críticas ou por vezes acusam o toque?Alguns acusam o toque.Um comentador também pode ter ídolos?Pode. Quais têm sido os seus?Tive a sorte de viver aquilo que considero ter sido a época de ouro do toureio a cavalo em Portugal, com José João Zoio, com o José Mestre Baptista, o Luís Miguel da Veiga, o Paulo Caetano e com uma plêiade de bandarilheiros extraordinária, como o António e o Manuel Badajoz, o Barreto, o Tinoca. Nessa altura, anos 70 e 80, conjugou-se uma série de artistas que levou a corrida à portuguesa a pontos inimagináveis. Hoje não tem ídolos?Não. Gosto muito de ver os jovens, a sua progressão. E há meia dúzia que podem romper. Dos velhos estou farto, porque já sou um deles também. Gosto de ver o Duarte Pinto, o Tiago Carreira, o João Moura Caetano, o João Telles Júnior, o João Moura, para só citar alguns. Dirige um jornal dedicado à tauromaquia, o Olé. Há mercado para este tipo de jornalismo especializado?Há. Existem dois semanários e três revistas mensais. Para o número de aficionados que há existe mercado. Tem sido uma experiência agradável. O jornal é feito com boas vontades. Os nossos colaboradores não são jornalistas profissionais. São aficionados com algum conhecimento e algum jeito para escrever. Não há é mercado em Portugal para haver jornalistas taurinos profissionais, como há em Espanha. Relato de corridas em directo na Rádio RibatejoNa sua passagem pela Rádio Ribatejo, “que foi uma grande escola de vida”, Francisco Morgado esteve envolvido como locutor na primeira transmissão directa e integral de uma corrida de toiros pela rádio em Portugal. Estava-se em 1968 e o palco foi a Monumental Celestino Graça, em Santarém, de onde se fizeram mais uma ou duas transmissões antes de acabar a experiência, única no país. Participaram nessa transmissão, da esquerda para a direita: Francisco Robalo; técnico dos Correios; José Rego; Eusébio Jorge, João Viegas e Francisco Morgado.A presença do técnico dos Correios, de que Francisco Morgado não se recorda o nome, era necessária para garantir uma linha telefónica que possibilitasse a transmissão do relato. O jornalismo como “tubo de escape”Francisco Morgado, 67 anos, casado, duas filhas, dois enteados e seis netos, é natural de Santarém, onde reside. Iniciou-se como locutor na extinta Rádio Ribatejo aos 12 anos. Aos 18 obtém a carteira profissional de locutor, iniciando também a sua colaboração escrita sobre tauromaquia no também já extinto Diário do Ribatejo. O bichinho do jornalismo pegou de estaca e acompanhou-o ao longo da vida. Colaborou com os jornais A Tarde, Jornal Novo, Farpas e a revista TV Guia, antes de se tornar director do semanário Olé há cerca de ano e meio. Depois de cumprir o serviço militar em Angola durante quatro anos, passou pelo Rádio Clube Português no final da década de 60, onde durante seis meses garantia os noticiários entre a meia-noite e as oito da manhã. A sua colaboração com a RTP como autor e apresentador de programas e como comentador de corridas começa em 1980 e mantém-se até hoje. Paralelamente, esteve ligado à actividade comercial até se reformar, primeiro em Lisboa, onde viveu 7 anos, e depois em Santarém. “O jornalismo foi sempre uma segunda ocupação, um tubo de escape”. O curso de Direito, de que chegou a frequentar o primeiro ano, ficou pelo caminho devido à mobilização para a guerra colonial. Quando regressou não tinha motivação para enfrentar mais quatro anos de curso e decidiu entrar na vida activa.Esteve envolvido na política nos anos seguintes ao 25 de Abril, como militante do PSD na secção de Linda-a-Velha (Oeiras), mas perdeu o entusiasmo por não se dar bem com a disciplina partidária. Em Santarém ainda chegou a pertencer à assembleia municipal no início da década de 80.

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