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De aventureiro de carrinhos de rolamentos a maestro da Banda da Armada

De aventureiro de carrinhos de rolamentos a maestro da Banda da Armada

Délio Gonçalves iniciou-se na música na escola do Centro Cultural Azambujense

A entrada no Centro Cultural Azambujense, aos sete anos de idade, abriu-lhe as portas de uma carreira musical. De aventureiro de carrinhos de rolamentos pelas ruas íngremes de Azambuja passou a tocador de fagote. Délio Gonçalves, 37 anos, tornou-se depois maestro. Até ao final do ano será o novo chefe da Banda da Armada Portuguesa.

A infância de Délio Gonçalves, maestro da Banda da Armada Portuguesa, correu sobre rodas. Na rua íngreme do bairro da Ónia, onde nasceu e cresceu, tinha a melhor pista de carrinhos de rolamentos. As solas dos sapatos serviam-lhe de travão. Menos naquele dia em que decidiu que o “mini bólide” iria descer perigosamente por debaixo do camião do vizinho Pantaleão, motorista de longo curso, que acabava de regressar de mais uma viagem. Ao contrário do que era habitual o correctivo foi aplicado não pelos pais mas pelo próprio motorista. O menino aventureiro - que jogava ao berlinde, ao peão e partia acidentalmente alguns candeeiros de rua - cruzou-se com a música, por acaso, aos sete anos. A entrada na escola do Centro Cultural Azambujense abriu-lhe as portas para uma carreira no mundo musical que continua a desenvolver com sucesso. Aos 37 anos é maestro, director do concurso de bandas de Vila Franca de Xira e subchefe da Banda da Armada. Até final do ano ocupará o cargo de chefe.Foi aprender música para seguir os passos do irmão, um dos meninos que aceitou o repto lançado pela colectividade que nos anos 70 desenvolveu uma campanha junto das escolas para tentar angariar futuros músicos. “Não se tratou de ouvir um concerto da banda e pensar: que lindo! Há jovens com quem isso acontece. Comigo funcionou o espírito do acaso”.O pai trabalhava na altura como inspector de controlo de qualidade de aeronáutica nas OGMA. A mãe era bordadeira. A família estava longe de ter tradição artística. “O meu avô cantava o fado quando já estava mais feliz ou quando à mesa bebia um copito. Não há na minha família outra ligação às artes. Se não tivesse passado pela colectividade nunca teria aprendido música. Hoje seria outra coisa qualquer”, diz à distância de três décadas o músico licenciado em direcção de bandas na Holanda.Primeiro aprendeu o solfejo na escola de música. Só conquistou o direito a ter um instrumento depois da mítica lição número 100 do livro de Freitas Gasul. “Era aquela barreira de som que tínhamos que ultrapassar. Demorava sensivelmente um ano. E os instrumentos eram antigos, recuperados. Era o possível. Isso hoje ainda se passa em muitas colectividades”, explica. João Teófilo foi um dos seus mestres. Tal como Carolino Carreira. Nomes que repete ao longo da conversa sobre dez anos passados na colectividade. E a vida na colectividade era absorvente. Roubava tardes aos amigos e obrigava os pais, que assumiam o compromisso dos filhos com a banda, a regressar de férias mais cedo. Mas a experiência ajudou-o a crescer como pessoa e a nascer como músico.O TOCADOR DE FAGOTENos anos 80, quando os apelos exteriores pesavam e o jovem se sentia próximo de “odiar a banda”, aconteceu o segundo acaso. Um centro de formação de instrumentistas de sopro abriu em Azambuja e Délio Gonçalves deixou de lado o clarinete e lançou-se numa outra aventura com a ideia de que seria o pretexto perfeito para abandonar a banda. Enganou-se. “O professor disse-me umas palavras que me pareceram ofensivas. Ou estudava ou saia. Pela primeira vez na vida aos 15 anos decidi estudar alguma coisa”. A partir desse dia tudo o que tinha ouvido até ali começou a fazer sentido. De repente sentiu-se útil. E o fagote, um instrumento de palheta dupla que seria mais difícil de aprender, por requerer mais maturidade, abriu-lhe outras portas e fê-lo, por exemplo, ganhar lugar na Orquestra Portuguesa da Juventude. Aos 17 anos comprou um fagote. “Os meus amigos tinham um carro e eu tinha um fagote às costas”. Para pagar o instrumento que custou 7500 euros usou as poupanças do dinheiro ganho nas vindimas e nas campanhas do melão e do tomate nos campos de Azambuja. Os convites para tocar em algumas orquestras também ajudaram. Pouco tempo depois chegou o momento de agarrar um lugar na Banda da Armada, uma das poucas opções para quem quer ganhar a vida como músico. “Há muitos lugares na música, mas para se trabalhar como professor, não para tocar todos os dias. O nosso país está reduzido a meia dúzia de orquestras onde é difícil arranjar lugar e a outra meia dúzia de bandas militares”, analisa. Se não tivesse passado as portas da colectividade provavelmente não teria aprendido música. “Se os meus pais me têm posto numa outra escola de música se calhar tinha desistido. A convivência que existe dentro da colectividade é que faz com que a gente se mantenha lá. Há uma fase que passa não tanto por gostar de música mas por estar com os amigos”. Nos anos 80 muitos se afastaram das colectividades, mas Délio Gonçalves considera que hoje se assiste ao fenómeno inverso. “O que se vê são os novos pais a levar os filhos à colectividade para lhes incutir determinados valores que a escola eventualmente não tem”. Hábitos de grupo, disciplina, respeito, voluntariado, sacrifício e boa educação que o maestro também recebeu da colectividade.Um músico natural do mundo “Natural do mundo”. É assim que Délio Gonçalves, subchefe da Banda da Armada, nascido e criado em Azambuja, licenciado em direcção de bandas na Holanda, se refere em tom de brincadeira à sua naturalidade. Dirige a Sociedade de Instrução Musical de Porto Salvo, o Ateneu Artístico Vila-franquense, as Orquestras de Sopro da Escola de Música do Conservatório Nacional de Música e é professor de direcção de banda. Colabora com várias colectividades. É sócio honorário de outras tantas, mas não ambiciona qualquer cargo directivo. Tornar-se maestro foi a evolução natural para o músico que começou a tocar clarinete. Às vezes tem saudades. Toca às escondidas por brincadeira com os amigos. O instrumento que amou foi o fagote, mas é o violoncelo que lhe enche os ouvidos. É pai de três filhos: Manuel, de seis anos, António, de dois, e Maria, de dois meses. A esposa é professora de matemática e ciências. A família reside em Algés. Délio Gonçalves gosta de regressar à terra natal, sobretudo em alturas de festa, mas confessa que era incapaz de voltar a residir em Azambuja por se sentir “desconfortável”.É frontal na relação com os alunos e com as pessoas com quem trabalha. O talento não vale a pena se não estiver bem alicerçado, defende. “Na música há quem tenha talento natural e o desperdice. Há quem não tenha talento, mas trabalhe afincadamente e o consiga”, revela.
De aventureiro de carrinhos de rolamentos a maestro da Banda da Armada

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