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“Existe um momento em que os partidos tratam mal os independentes”

“Existe um momento em que os partidos tratam mal os independentes”

Vera Noronha foi presidente da Assembleia Municipal de Alpiarça durante dois mandatos e confessa que chegou a sentir-se sozinha

Entrou na política pelo PSD, depois mudou para um movimento liderado pelo PS tendo sido presidente da Assembleia Municipal de Alpiarça durante dois mandatos. Mas sempre como independente porque gosta de ser livre e embirra com a disciplina partidária. Vera Noronha confessa agora que abandonou as funções políticas, que chegou a sentir falta de solidariedade, que se sentiu sozinha algumas vezes e vai ao ponto de dizer que os partidos tratam mal os independentes. A engenheira sanitarista fala da política do seu concelho, que acredita vir a ser extinto. Da sua área de actividade profissional diz que a água da rede é a melhor para beber.

Enquanto presidente da Assembleia Municipal de Alpiarça gostou de trabalhar com o anterior executivo da câmara?Os 16 anos que estive na assembleia municipal foram sempre gratificantes. Tive, eventualmente, a vantagem em relação a outras pessoas de ter estado como membro da assembleia municipal na oposição durante um mandato. É mais difícil estar na oposição. Porquê?Aprendi o que é a sensação de impotência em relação a determinadas coisas que achamos que estão mal. Talvez por isso depois, enquanto presidente, algumas vezes fui incompreendida até por membros da minha bancada do PS.Discordavam das suas decisões?Toda a gente tem direito a exprimir as suas opiniões. Enquanto presidente disse sempre que tinha ali adversários, não tinha inimigos e foi sempre assim que vi as pessoas. Por isso é que aprendi tanto quando estive na oposição porque percebi claramente o que é o autoritarismo da maioria.Pode especificar?Tínhamos um membro na nossa bancada do PS que se deslocava em cadeira de rodas. Um dia ele pediu uns documentos e a resposta foi que os fosse buscar ao arquivo que ficava na cave. O espaço não tinha acesso a pessoas com mobilidade condicionada e é óbvio que ele não podia deslocar-se lá. Isto é a prova que havia uma intenção clara de dizer: ‘quem manda aqui, somos nós’.Mas com o PS na câmara municipal havia a mesma tentação.Acredito que possa ter sido, nalguns momentos, uma tentação mas não passou daí. Não estou com isto a fazer juízos de valor do tempo da maioria da CDU nem da maioria PS, até porque neste momento quero estar sossegada a fazer uma espécie de terapia afastando-me da política.Ficou vacinada da política?Nunca podemos dizer nunca, mas fui a uma assembleia municipal logo no início deste mandato e vi que faziam coisas piores que aquelas que criticavam quando era presidente. Não vou lá aparecer nos tempos mais próximos.Mas dava a sensação, na forma como conduzia os trabalhos da assembleia, que era autoritária.Eventualmente podia dar, mas uma coisa é tentar ter autoridade outra coisa é autoritarismo. Se muitas vezes isso pode ter sido confundido não posso fazer nada. O que tentei foi ter a autoridade que a lei me conferia e fi-lo em diversos momentos. Uns mais incompreendidos que outros. Chamei a GNR por causa da intervenção de pessoas da Planotejo porque o que eles lá foram fazer não é justificável em democracia. Não há ninguém que tenha o direito, nem como munícipe, de interromper uma sessão de trabalhos quando sabe que tem um período que lhe está destinado. Chamei a autoridade e se calhar por isso me chamaram autoritária, mas a minha função era fazer com que os trabalhos decorressem dentro da normalidade.E era mesmo necessário chamar a autoridade?Há uma coisa de que me podem acusar, que é de ser muito legalista.Tentei sempre actuar dentro do cumprimento da lei mesmo quando me acusaram, por exemplo, de não ter dado a conhecer um relatório da inspecção da IGAL em relação ao município. Há sempre relutância da maioria em divulgar os relatórios das inspecções.Da minha parte não tinha nenhum problema em divulgar o relatório mas como é habitual nestas coisas há momentos para tudo e aquele ainda não era o momento. Quando chegou a altura certa o relatório foi divulgado.Foi fácil lidar com o executivo socialista?Houve momentos que gostei mais e outros que gostei menos. O primeiro mandato foi de grandes obras, de grande euforia. Era então primeira secretária da assembleia. Foi um mandato empolgante, de tentarmos mudar o rosto de Alpiarça e acho que conseguimos. O segundo foi o da manutenção que, para mim, já como presidente da assembleia, foi o mais gratificante. Teve alguns momentos mais duros, mas foi o mais gratificante. O último mandato foi muito desgastante e a meio do mandato decidi que ia sair.Porque decidiu sair?Achei que era tempo de dar lugar a outras pessoas. Sentia-me desgastada. As pessoas quando estão em funções públicas têm que perceber que não devem estar agarradas aos lugares. Estão de passagem e estão a prestar um serviço público. Os momentos conturbados na assembleia foram fundamentais para esse desgaste?À medida que vamos estando nas coisas vamos percebendo que nem sempre a lealdade é uma constante. Dos meus adversários espero que me façam alguma guerrilha, porque também é esse o papel deles. Agora, quando às vezes também sentimos alguma falta de solidariedade do partido pelo qual fomos eleitos é mais complicado. E eu senti-me, em alguns momentos, sozinha ou muito pouco acompanhada.Se o PS tivesse apostado em Vanda Nunes seria mais difícil a CDU conquistar a câmaraPorque é que PS e CDU não conseguem conviver em paz em Alpiarça?Foram cometidos, tanto no tempo da ditadura como depois, muitos excessos. Esses excessos provocaram feridas que nunca se conseguiram cicatrizar.O novo executivo de maioria CDU já é mais ponderado?O presidente da câmara (Mário Pereira) tem essa postura de ponderação. Se todo o aparelho da CDU que está por detrás tem essa ponderação não sei. É bom que tenhamos a noção que é o partido mais bem organizado e as coisas não acontecem nunca por acaso. A CDU ganhou as eleições porque fez bem o trabalho de casa, especialmente no último mandato. Por que é que o PS perdeu a câmara nas últimas autárquicas?Devido a algum desgaste da maioria PS. A saída do presidente de câmara de então, Joaquim Rosa do Céu, para outras funções, pode também não ter agradado às pessoas. Defendo que os mandatos são para serem levados até ao fim. Desse ponto de vista, eventualmente, a população não concordou e penalizou o PS.Foi uma má decisão de Rosa do Céu?Eu não o faria. Cumpriria o meu mandato até ao fim, como o fiz. A saída do presidente da Câmara de Alpiarça fez com que ficassem à frente da autarquia e da assembleia municipal duas pessoas que são independentes e que tiveram a responsabilidade de manter o barco.O PS não terá também perdido as eleições por ter optado por Sónia Sanfona em vez de Vanda Nunes, que ficou a liderar o executivo com a saída de Rosa do Céu? Nunca saberemos qual teria sido o desfecho das eleições se o candidato fosse outro. Já esperava que o candidato fosse uma pessoa do aparelho partidário porque as pessoas se sentem mais confortáveis quando têm pessoas filiadas. A Sónia Sanfona era a candidata natural do partido. Mas estou convencida que se a candidata tivesse sido a Vanda Nunes, até pela sua maneira de ser e pela sua postura, seria mais difícil para a CDU conquistar a câmara. Vanda Nunes era a mais bem preparada? A melhor candidata?Tinha a experiência de praticamente dois mandatos como vereadora e um ano e meio como presidente. Desse ponto de vista estava mais bem preparada para assumir a responsabilidade de gerir a Câmara de Alpiarça e de se confrontar com uma luta que sabíamos que ia ser dura. Por que é que nunca se filiou num partido?Jurei que o meu nome nunca iria aparecer ligado a partidos. Gosto de ser uma pessoa livre. Gosto de dizer aquilo que penso independentemente de saber se os partidos que suportam determinadas candidaturas concordam ou não.Embirra com a disciplina partidária?Talvez seja isso.Foi eleita do PSD na assembleia municipal. Por que integra depois um movimento liderado pelo PS? Considero-me uma pessoa de convicções, mas moderada. Por isso não me chocava aceitar uma candidatura independente a representar um partido que tinha uma expressão diminuta em Alpiarça.A engenheira química que gosta de fazer tapetes de ArraiolosVera Noronha nasceu em Alpiarça a 28 de Setembro de 1963. Licenciada em engenharia química pelo Instituto Superior Técnico de Lisboa fez mestrado em engenharia sanitária na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. Deu aulas de físico-química durante dois anos, na Escola Secundária Sá da Bandeira e na Escola Ginestal Machado, em Santarém. É engenheira sanitarista do Departamento de Saúde Pública da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo.Nos tempos livres gosta de ouvir música, ler, caminhar, fazer tapetes de Arraiolos e malhas. Possui todos os livros do autor português Daniel Silva e confessa não ser fã do prémio Nobel da Literatura, José Saramago. Gosta de livros temáticos. “Acho que já li quase todos os livros sobre a descriminação das mulheres nos países islâmicos”, afirma. Rolling Stones, Xutos e Pontapés, Rui Veloso e Shakira são alguns dos seus grupos e cantores preferidos, sendo também apreciadora de fado. Vera Noronha classifica-se como uma mulher de desafios.É um erro as pessoas só beberem água engarrafadaMuitas câmaras deixaram de fazer análises às fontes públicas e muitas ainda são utilizadas pelas pessoas. Trata-se de uma desresponsabilização das autarquias?As fontes públicas, do ponto de vista das entidades gestoras, não existem. Porque quando existem, de acordo com a lei, têm que estar integradas no programa de controlo de qualidade da água. Temos que distinguir os fontanários ligados à rede pública e as fontes à beira das estradas. Essas últimas não deviam sequer existir porque o risco associado ao consumo dessa água é geralmente muito superior àquilo que pode ser o prazer de quem pára para desfrutar do local ou vai buscar aquela água para consumo. Enquanto símbolo da cultura portuguesa devem ser mantidas, mas sem água a correr. Tal como a Organização Mundial de Saúde diz, não devemos ter origens de água para consumo humano sem barreiras sanitárias. E isso implica desinfecção.A água da torneira é 100 por cento segura?Eu bebo sempre água da torneira. É um erro as pessoas só beberem águas engarrafadas porque, especialmente se forem águas minerais, são desequilibradas em termos de minerais. Prefiro que a água tenha um bocadinho de sabor a cloro do que ter água sem cloro.Estamos no século XXI, recebemos vários fundos comunitários e continuamos com problemas do saneamento básico por resolver. Não é uma frustração?Depois do 25 de Abril existiram posturas diferentes a norte e a sul do rio Tejo. Na zona sul da região temos concelhos maiores, mais dispersos, mas onde foram feitas de início obras de construção das redes de água e de saneamento. No norte do distrito temos muitos sistemas, mais pequenos, uma vez que as pessoas estão mais isoladas. Em termos de água destinada a consumo humano o distrito de Santarém está muito bem servido. Em relação ao saneamento, nem sempre foi uma prioridade.Os consumidores desta região ficam melhor servidos com empresas intermunicipais, ou municipais, de gestão da água?Ficamos mais bem servidos com uma empresa, mas esta tem de estar sempre dentro do domínio público. Não concordo com a privatização da água. Não coloco em causa a possibilidade de existirem capitais privados nas empresas, mas a maioria do capital deve ser das câmaras, do Estado.O projecto de luta contra a pobrezaManifestou-se publicamente contra o projecto de combate à pobreza em Alpiarça e os ordenados dos técnicos. Dois anos depois o projecto continua parado. Como vê todo esse processo?Lamento. Eu não me pronunciei contra o projecto, mas contra algumas questões para o desenvolvimento desse projecto. Em Alpiarça há algumas situações de pobreza que urge serem resolvidas. Quem deve estar no centro do projecto são as pessoas e as entidades com responsabilidades na matéria e deviam ter feito todos os esforços para que as pessoas pudessem usufruir deste projecto. Acredita que o projecto ainda possa ser implementado?Não.Acha correcto que a instituição mais importante do concelho, e uma das mais importantes da região, a Fundação José Relvas, seja dominada por uma família?De acordo com as orientações testamentárias do senhor José Relvas, são os 40 maiores contribuintes que têm que se pronunciar e já o deveriam ter feito. Quem está à frente e quem não está, desde que esteja dentro da legalidade, não tenho que discordar. Respeito a decisão desses maiores contribuintes.Não se realizam eleições desde 2005 quando no testamento está escrito que devem realizar-se de três em três anos.Se há regras elas têm de ser cumpridas. Lamento que as regras não estejam a ser cumpridas, mas como não faço parte dos 40 maiores contribuintes do concelho não tenho sequer possibilidade de me fazer ouvir. Se perguntarmos à população, acho que todos concordam que já se deviam ter realizado eleições.“Tenho pena que o concelho de Alpiarça acabe”O concelho de Alpiarça deve ser extinto?Estou convencida que isso vai acontecer. Já discuti o assunto com algumas pessoas com responsabilidades políticas e é de esperar que passe a ser uma freguesia de Almeirim. Tenho muita pena que isso aconteça, porque tenho muito orgulho em dizer que sou de Alpiarça.A fusão justifica-se?Em termos de gestão, nalgumas situações, poderá justificar-se. Nos municípios pequenos corremos o risco de ter freguesias muito pequenas. Veja-se o caso da freguesia de Fazendas de Almeirim (Almeirim) que comparando com Alpiarça tem quase o mesmo número de habitantes. Será que se justificará existirem tantas freguesias? Será que não se poderão fundir algumas freguesias entre si? O caso de Alpiarça é diferente porque se trata de fazer desaparecer um concelho e não sei se isso poderá considerar-se legítimo depois de tantos anos de autonomia.Está em causa também uma reorganização de organismos do Estado. Com que serviços é que acabava?Foram criados muitos institutos públicos que com essa criação esvaziaram competências de algumas direcções gerais e que poderão estar a duplicar funções.Os governos civis ou as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) devem ser extintos? A CCDR não tem filosofia política, por isso nem vale a pena comparar. Acho que é urgente fazer-se uma regionalização capaz. Os governos civis estarem como estão é que não faz sentido. Estão esvaziados de competências e, do meu ponto de vista, oneram muito o Estado sem que tenham resultados.
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