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Os prédios são “monstros” onde se empacotam as pessoas

Os prédios são “monstros” onde se empacotam as pessoas

Só a vista sobre o Tejo convenceu Carlos Margaça Veiga a radicar-se no concelho de Vila Franca

Os prédios são monstros que roubam a visão e empacotam as pessoas nas cidades. O betão e falta de humanização choca o professor universitário Carlos Margaça Veiga que só se radicou no concelho de Vila Franca de Xira rendido ao rio. À medida que os altos juros praticados no final da década de 70 o afastavam da capital o Tejo aproximava-o do concelho. Viveu no Forte da Casa, freguesia a que continua a estar ligado, mas há alguns anos mudou-se para a Póvoa de Santa Iria. Está reformado e continua a escrever. Parte do tempo livre do antigo seminarista, que uma crise de vocação afastou do sacerdócio, é passado a trabalhar a arte da oratória com a comunidade católica do Forte da Casa.

É natural de Runa, no concelho de Torres Vedras e deu aulas em Lisboa. Como descobriu o Forte da Casa, onde viveu 27 anos?Andei à procura de casa numa altura em que os juros estavam altíssimos. Eram incomportáveis no fim da década de setenta. Já estava a trabalhar como professor. Tive um colega que dava aulas no ensino superior, comprou casa em Lisboa e passou necessidades graves para pagar os juros que eram na casa dos 18 por cento. Ainda procurei casa na linha de Cascais e Sintra mas não era fácil. Até que encontrei o Forte da Casa. Entretanto adaptei-me e criei laços. Há aqui uma vantagem em relação a Lisboa: concilia-se campo com cidade. Entretanto mudei-me para a Póvoa de Santa Iria porque precisava de uma casa melhor. Vivo a 20 quilómetros de Lisboa. Na altura o que o cativou no Forte?A maravilha do Tejo. Vivi sempre ligado à água. A interioridade aflige-me. O nosso império ultramarino é construído à volta da água. A nossa grandeza é atlântica. Sempre tive um certo fascínio pela água. Quando tenho pessoas amigas que me vêm visitar mostro-lhes isso.Ficam a apreciar a vista ou vão até à zona ribeirinha, que por sinal está degradada?Apreciamos a vista. A beira rio é uma zona a recuperar. É uma pena que o local esteja assim. Não é convidativo ir até à beira rio. Constância é um exemplo daquilo que pode ser feito. Face à crise as terras têm que valorizar o património e as suas potencialidades. Há dois casos para mim emblemáticos: Óbidos e Mértola. Cada localidade tem as suas potencialidades e a Póvoa não é excepção. O que deveria ser feito?O Tejo poderia ser mais explorado. Particularmente a zona ribeirinha. A área fabril funciona como obstáculo. Creio que apesar de tudo era possível apostar em ajardinamentos. Depois há a linha férrea que é possível ultrapassar com pontes aéreas, por exemplo, já que existe do outro lado uma imensidão de lezíria. Os autarcas descuraram essa questão preocupando-se apenas com a construção?Creio que talvez se devam distinguir fases. Houve uma altura em que se debruçaram muito sobre a construção e com as infra-estruturas necessárias para uma vivência urbana digna. Penso que isso está conquistado. Choca-o a forma como se disseminaram os prédios na Póvoa?Choca-me. Esta construção em altura é uma necessidade mas não é bonita. Perde-se a visão das coisas. São monstros. É preciso empacotar as pessoas. Claro que há toda uma história de interesses se bem que não quero entrar por aí... Uma coisa é certa: o betão ganhou.Ganhou. Mas neste momento começa a ser posto em causa. A crise na venda de prédios, embora prejudique os construtores, obriga a repensar muitas coisas. Vem-me à memória um condomínio fechado que foi construído na Póvoa mas não em altura. Tem dois ou três andares. As elites procuram sempre estatutos especiais mas essa é outra questão...Deveria ter sido esse o paradigma. Apostar mais nesse tipo de construção?Sim e aqui havia espaço. Talvez não fossem necessários estes prédios enormes que tiram a vista sobre a maravilha que é o Tejo e são desumanizados. As pessoas não se conhecem. Ou conhecem-se e fingem que não conhecem. É a própria estrutura que cria uma sensibilidade do não relacionamento. É a própria construção que cria um distanciamento. No Forte da Casa os prédios eram mais pequenos e eu falava com os vizinhos. Estes prédios grandes criam barreiras entre as pessoas. Não sou especialista mas falo como ser humano que vive numa zona de prédios desumanizados.Estabelece uma relação entre a altura dos prédios e a distância que existe entre as pessoas?Cada um trata de si. Por vezes não há um bom dia ou uma boa tarde. Não há o que é inerente às relações de vizinhança e que é importante em momentos de dificuldade. Não há solidariedade. Já lhe aconteceu não ser cumprimentado no elevador?Não chegou a tanto. Cheguei a uma situação parecida. Estava a ver o correio quando entrou uma pessoa, voltei-me e disse-lhe: “Boa tarde”. Não obtive resposta e confrontei-o: “Eu dei-lhe as boas tardes”. As palavras saíram-me sem acidez. A abordagem foi eficaz já que passei a ser cumprimentado. Encarou a atitude como falta de educação ou enquadrou-a na tal desumanização?Talvez as duas coisas. Depois fui para casa a pensar nisso.... Talvez aquele senhor estivesse carregado de preocupações e por isso não tenha respondido. Temos que admitir todas as opções. O ser humano é complexo. A densidade de que falamos não o impediu de procurar a Póvoa há cinco anos quando mudou de casa.Várias vezes tenho pensado em mudar. Apesar de tudo há laços que me prendem à zona. Estou inserido na comunidade do Forte da Casa. Já não tenho tempo para criar laços. Tempo ou disponibilidade?Tempo e disponibilidade. Há um tempo para tudo. Já leu o principezinho? Há um diálogo entre a raposa e o príncipe em que a raposa diz: “cativa-me”. A partir daí estabelece-se uma amizade. É escrito numa linguagem poética e filosófica que resulta de um profundo conhecimento do ser humano. Eu já não tenho tempo para criar relações humanas aprofundadas noutro contexto. Vou explorando, estou muito atento e valorizo muito a relação humana. O senhor professor O professor universitário Carlos Margaça Veiga, 70 anos, está reformado do ensino mas continua a ter uma intensa actividade intelectual ao nível da escrita que descreve como um “trabalho solitário”.Vive sozinho na Póvoa de Santa Iria, no concelho de Vila Franca de Xira. Teve relacionamentos mas acabou por optar por não constituir família consciente da “exigência” do seu trabalho.Nasceu em 1941 em Runa, no concelho de Torres Vedras, onde passou a infância e frequentou o ensino primário e secundário, que acabou já em Lisboa. Chegou a ponderar seguir o curso de económicas e financeiras no ensino superior, mas acabou por ingressar no seminário. Ocupou dois anos com o estudo da filosofia e quatro com as questões da teologia, mas uma crise de vocação afastou-o do caminho sacerdócio. Acabou por licenciar-se em História. Foi professor de liceu em Lisboa e seguiu depois a carreira como docente na Faculdade de Letras. No mestrado abordou a história da cidade de Lisboa e no doutoramento concentrou-se na problemática do “poder e poderes na crise sucessória portuguesa de 1578-1581”. Publicou artigos em revistas, participou em congressos e colaborou em várias obras. Foi dando à estampa vários livros. “Perda da Independência: de Alcácer Quibir aos Açores”, em 2006 e “A biografia da Infanta D. Maria - uma mulher de cultura”, publicada em Maio de 2011, são apenas duas das obras que já publicou. É académico de número na Academia Portuguesa de História, pertence à Associação dos Arqueólogos Portugueses e ao Centro de História da Universidade de Lisboa, bem como ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro como académico correspondente. No passado dia 30 de Junho recebeu da Junta de Freguesia do Forte da Casa a medalha de mérito artístico e cultural. Cumpre o primeiro mandato na assembleia da freguesia do Forte da Casa como independente nas listas do PS. É um eterno satisfeito, exigente com o trabalho, que procura os amigos com regularidade para fugir à solidão. Não resiste a comprar um livro. Prefere as mercearias às grandes superfícies. Admite que é falador mas gosta do contacto humano. Anda a reler um livro sobre o saber envelhecer, recomendado por um amigo, mas confessa sentir-se confortável na idade. Leu romances mas não os suficientes mesmo para um homem de história por isso ocupa-se com a recuperação de leituras. De vez em quando volta ao Eça e aos clássicos. Aprendeu a gostar de José Rodrigues dos Santos. Aprecia igualmente Miguel Sousa Tavares. Já foi professor de uma universidade sénior mas procura agora um tipo de voluntariado menos intelectual e mais afectivo ao entardecer da vida.O antigo seminarista que ensina a arte da oratória à comunidade católica do Forte da CasaÉ uma pessoa que gosta de ouvir. Foi essa característica que o levou a dada altura a ingressar no seminário?A minha entrada no seminário tem que ver com uma inquietação espiritual que senti a certa altura. Na idade dos idealismos que é a juventude. Tive uma crise mística quando me orientava para o curso de económicas e financeiras. Procurei um sacerdote que era um homem culto e que me aconselhou a que fizesse uma experiência. Guinei para o outro lado com uma reacção não muito satisfatória por parte do meu pai. As relações até se tornaram um bocado tensas. Os pais não eram religiosos?O meu pai não. A minha mãe sim. Creio que herdei a tendência mística do lado da minha mãe. A mística, isto é, a experiência espiritual, é uma coisa que ainda hoje me seduz bastante. Como jovem levei a minha inquietação até ao limite. Ingressei no Seminário dos Olivais, em Lisboa. Encontrei pessoas de muito valor humano, intelectual e espiritual. Mas não seguiu o sacerdócio...Entretanto dá-se o Concílio Vaticano II e assisti à debandada dos meus professores. Vi pessoas em que tinha acreditado a abandonar o sacerdócio. Tudo isso me abalou a mim e a muitos. Foi um período conturbado e acabei por sair. Foi uma situação que nunca foi muito bem resolvida dentro de mim. Isso condicionou-me a questão do casamento.Acha que deveria ter seguido esse caminho?Durante muitos anos a questão se me colocou. Regressar ou não regressar. Conheci exemplos de pessoas que tinham regressado. Isto embaraçou-me o caminho. Senti como que um certo traumatismo depois daquela experiência. O mundo modificou-se. A Igreja Católica alterou-se. Andei muito tempo à procura de um caminho. Hoje pertenço a um movimento de espiritualidade que me preenche. Sou um leitor de místicos. Sou um apaixonado por Santa Teresa de Ávila, São João da Cruz e também Edith Stein. É muito ligado à Igreja no Forte da Casa. De que forma contribui?Contribuo com uma acção muito pedagógica. Uma das coisas que me irrita é ouvir a Bíblia mal proclamada, com o português mal pronunciado sendo uma obra prima da nossa civilização. Um dia fui falar com o pároco do Forte e disse-lhe que considerava quase um insulto ver a Bíblia mal proclamada. Perguntou-me se eu quereria tomar a cargo essa responsabilidade. Senti aquilo como um desafio. O meu trabalho é modesto. Para a missa de domingo começo por seleccionar algumas pessoas. Faço observações e reuniões sobre como se proclama, como se lê em público. É uma questão de exigência na qualidade da palavra de Deus. Trabalha a arte oratória.E sou muito exigente. Já o faço há perto de vinte anos. Quando leio também me preparo bem porque quero dar o exemplo.Que frase destaca dessa obra prima que é a Bíblia?Há dois modos de olhar a Bíblia. Como obra literária e ao nível da dimensão espiritual. Gosto muito mais dos textos do antigo testamento que do novo testamento do ponto de vista literário. O novo testamento todo ele gravita em torno da figura de Jesus Cristo. Para mim a frase fundamental é “amai-vos uns aos outros”. Considera que teve uma crise de vocação?Houve uma crise de vocação e houve o desencanto em relação às pessoas que me serviam de referência e que debandaram. A Igreja parou no tempo?Em muitos aspectos sim. A Igreja vai sempre um pouco atrás na História. Isso aconteceu com o problema da escravatura, por exemplo. A Igreja nunca teve uma palavra de condenação da escravatura tirando vozes isoladas. A Igreja excomungava quem pedia a cremação no final do século XIX. Eu próprio já optei pela cremação. Acho que já foi pior e que ainda assim hoje a Igreja está mais atenta, sendo certo que não pode abdicar de certos princípios. Maria da Luz Rosinha deveria dar “espaço de respiração” a um futuro líder dentro do partidoO tema da reorganização administrativa está em cima da mesa e há quem defenda que se unam algumas freguesias. Houve a grande reforma de Mouzinho da Silveira no século XIX que acabou com uma quantidade de concelhos. De 800 passou-se para 300. Foi um corte brutal. Claro que gerou conflitos que se arrastam até aos nossos dias. Não sei se hoje essa medida geraria as mesmas rivalidades. Vai ser muito difícil avançar com essa reforma porque as terras criam as suas identidades. Repare na agitação que a regionalização provocou. Vai ser difícil diluir a identidade das terras. Na cidade de Lisboa não foi difícil porque tem outras características. Em Vila Franca, por exemplo, existe uma fortíssima identidade. Na Castanheira do Ribatejo também. Algumas freguesias serão sacrificadas. Serão naturalmente as mais fracas. É autor de livros sobre personalidades que se destacaram na história, como a infanta D. Maria. Com as devidas diferenças (porque não estamos a falar de monarquia) se tivesse que escrever sobre Maria da Luz Rosinha o que salientaria logo à partida?Destacá-la-ia como um caso emblemático da afirmação da mulher nos tempos que correm. Admiro-a. É corajosa, lúcida e tem um grande sentido pragmático. Não é uma mulher intelectual mas não são só os intelectuais que têm peso. Gosto muito de ouvir os discursos. Está ao serviço da Polis no sentido nobre da palavra. É uma mulher que está atenta à realidade e é muito humana. Uma humanidade que bebeu no cristianismo. Confessa publicamente que pertenceu à JOC (Juventude Operária Católica). No meio político há lobies não católicos muito fortes. Não é por isso que Maria da Luz Rosinha deixa de ter apoios e de conquistar uma simpatia que se espelha nos resultados eleitorais.Há quem diga que gosta de centralizar.Sim mas é necessário. Estamos numa fase do triunfo dos partidos conservadores que são necessariamente centralizadores. O problema da “sucessão” coloca-se também.Há ambições das pessoas que gravitam muito proximamente em torno do poder local vila-franquense. O poder seduz. Não conheço bem as pessoas mas não vejo um sucessor natural. Quando uma pessoa tem uma personalidade muito forte pode absorver outras personalidades. Uma boa líder devia dar espaço de respiração para dar possibilidade de aparecer uma figura dentro do próprio partido. Isto se quiser que a zona continue a ser rosa...Aquele que é apontado como o delfim de Maria da Luz Rosinha, Fernando Paulo, domina sobretudo a arte da retórica.A retórica é a arte de esclarecer e de agradar e também é necessária. Vem de Platão.Será preciso só essa retórica e não o conhecimento da realidade?Para que a retórica tenha eficácia tem que partir-se da realidade. As pessoas hoje não vão atrás de discursos utópicos. O tempo da utopia foi o século XIX.
Os prédios são “monstros” onde se empacotam as pessoas

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