Um pastor que ainda resiste nos montes de Arcena
O sonho de Adelino Marques era ter conseguido comprar e conduzir um carro
Adelino Marques, 77 anos, teve 10 irmãos e foi obrigado a fazer-se cedo ao trabalho. Passou por uma fábrica na Póvoa de Santa Iria, no concelho de Vila Franca de Xira, antes de tornar-se pastor a tempo inteiro. O seu rebanho chegou a ter 80 ovelhas. Hoje um dos últimos pastores de Arcena, freguesia de Alverca, só tem forças para tomar conta de cinco. O seu maior sonho era ter conseguido comprar e conduzir um carro. Objectivo difícil de alcançar para quem não chegou a ir à escola.
Sentado numa cadeira de plástico, Adelino Marques, 77 anos, vai puxando dos cigarros enquanto contempla o pequeno rebanho e os patos que perseguem as ovelhas. Ao lado estão gaiolas cheias de pombos. Os dois cães presos à casota não param de ladrar. É no fim de uma estrada sem saída que se encontra o pastor de Arcena, freguesia de Alverca, no concelho de Vila Franca de Xira. Os prédios novos jamais deixariam adivinhar que ali, escondida no meio de árvores, está uma pequena casa onde ainda se ouvem os passarinhos e a terra não está coberta de alcatrão. Adelino Marques tem um aparelho auditivo e a conversa trava-se devagar. O tabaco é vício que tem desde os 13 anos, altura em que ia para os campos da Póvoa de Santa Iria trabalhar. “Nós apanhávamos barbas de milho secas e depois preparávamos cigarros. Os isqueiros eram de pedra”, recorda. Já teve 80 ovelhas mas de momento guarda apenas cinco, mais um carneiro e dois borregos. Um problema de saúde grave e a idade avançada levaram-lhe as forças. “Se ando muito começo a sentir-me cansado e é preciso alguma força para andar atrás das ovelhas quando tentam fugir do rebanho”, explica Adelino Marques que nunca gostou de ter os cães a guardar o rebanho. Antes de se tornar pastor a tempo inteiro, Adelino Marques trabalhou durante 32 anos numa fábrica de moagem na Póvoa de Santa Iria que fechou depois do 25 de Abril, conduzindo o pastor à reforma. O rebanho, de que a esposa cuidava, pastava nos terrenos que arrendava em redor. “Um dia nasceram-me na pastagem três borregos. Tive de trazer um ao colo e atei as pernas dos outros dois ao cajado e trouxe-os às costas”, conta com um sorriso. Os dias são todos iguais. Levanta-se cedo para levar o rebanho a pastar e depois do almoço gosta de ir ao café tomar a bica. “Não podemos ser nenhuns bichos”, confessa. Dorme a sesta durante a tarde e antes de anoitecer leva novamente as ovelhas a pastar num campo próximo. Adelino Marques levanta-se da cadeira, assobia e começa a dar indicações aos animais: “anda, anda, anda”. Rita, Estrela, Andorinha, Matilde, Joaninha e o carneiro Rouxinol respondem ao chamamento do dono. Só obedecem à sua voz, assegura. O sol está quase a cair e é hora de recolherem ao barracão que o pastor construiu com a ajuda dos filhos, mas antes juntam-se todos para a fotografia. Lá para Fevereiro já vai conseguir retirar leite para consumo próprio e preparar queijos. Esta semana ainda vai comprar 50 fardos de palha que bem geridos vão dar para o ano inteiro. O maior sonho do pastor, que não se concretizou, era ter conseguido comprar e conduzir um carro para dar uma volta de vez em quando, diz com os olhos verdes a brilhar. “Assim não precisava de estar sempre a chatear os filhos”, reconhece.Sonho difícil de concretizar para quem não teve oportunidade sequer de aprender a ler para poder tirar a carta de condução. Adelino Marques teve 10 irmãos e foi obrigado a fazer-se cedo ao trabalho nos campos da Póvoa de Santa Iria, deixando a escola.“Estou feito com os animais. Não sou capaz de matar nenhum. Quando é preciso vem cá um rapaz e eu afasto-me”, revela o pastor enquanto avança tremulamente com o rebanho atrás de si. Enquanto puder continuará a levar uma vida simples, rodeada de animais, numa terra onde o verde vai sendo substituído pelo cinzento do cimento. “Não ouve nenhum carro aqui, pois não?”, certifica-se para concluir que tem o privilégio de viver num lugar do concelho onde o verde predomina.
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