“Tira-me o sono o que está a acontecer neste momento no país”
Tiago Guedes começou a sua carreira como coreógrafo aos 21 anos. Há dez anos fundou a Associação Cultural Materiais Diversos que organiza um festival anual com o mesmo nome que é um dos mais importantes acontecimentos culturais da região e que tem como marca o envolvimento das populações. Actualmente também tem a seu cargo a programação do Teatro Virgínia em Torres Novas. Por todas estas razões O MIRANTE decidiu atribuir-lhe o prémio Personalidade do Ano na área da Cultura.
Como apareceu a “Materiais Diversos”?
Comecei por ser um coreógrafo independente. A Associação Cultural Materiais Diversos surge porque, quando o meu trabalho começou a circular internacionalmente, houve necessidade de criar um enquadramento jurídico. O nome vem de um espectáculo meu com o mesmo nome que me fez dar o salto a nível internacional. Um solo que fiz em 2003 que cruza as artes plásticas e a dança.
O Festival Materiais Diversos, que surgiu em 2009, conta já com cinco edições e é um evento marcante na região do Médio Tejo ao nível das artes performativas. Cumpre os objectivos para que foi criado ou ainda está aquém das suas expectativas?
O Festival está ainda numa fase de adolescência embora seja um evento que muito rapidamente marcou o seu lugar. É um evento intermunicipal que acontece no concelho de Alcanena, Torres Novas e Cartaxo. Acho que mexeu com as pessoas porque há um envolvimento comunitário muito grande em que os artistas dormem em casa das pessoas, fazemos almoços comunitários, conversas, workshops, o que faz com que as pessoas se aproximem dos artistas e dos seus projectos. Desde a primeira edição do Festival que temos muito público e esse público tem vindo a crescer. Temos uma política de preços muito baixa porque queremos que seja um evento onde o público venha descobrir coisas novas, com prazer. Diria que agora estamos em fase de crescimento ao nível da qualidade.
O que é que o marcou mais ao longo destes quase 10 anos à frente da Associação Cultural Materiais Diversos?
O que me marcou mais foi a capacidade que tivemos de fazer com que a associação não andasse sempre à volta do meu trabalho e que muitos outros artistas pudessem beneficiar dela. O que mais me orgulha foi ter conseguido criar na associação uma máquina bastante oleada que permite apoiar outros artistas, porque na realidade o meu trabalho como criador não é a parte principal da minha actividade, estou muito mais focado na programação.
Desde Março 2013 é também director artístico do Teatro Virgínia, em Torres Novas. Porque aceitou esse desafio?
O Teatro Virgínia é um equipamento que me é muito caro há muito anos porque foi aqui que comecei as minhas primeiras aulas de dança, aos 14 anos. Também é um dos palcos do Festival Materiais Diversos, desde a primeira edição. Quando a câmara municipal me desafiou a apresentar um projecto de programação para o Teatro Virgínia pareceu-me interessante por ser algo orgânico. Tem sido uma experiência positiva. Conseguimos um diálogo muito estreito entre as ideias que a autarquia tem para este espaço e a minha programação. Considero que temos trabalhado muito bem.
É difícil estabelecer uma programação que agrade à população em geral?
Sim, é. E isso foi novo para mim porque no Festival Materiais Diversos a programação é muito afunilada, são trabalhos muito específicos. As pessoas achavam que sendo eu a dirigir o Teatro teríamos uma espécie de Materiais Diversos ao longo do ano. Isso seria impossível porque um teatro municipal tem outra missão que não tem o Festival. O Teatro Municipal tem de ter um leque abrangente de propostas de modo a que quase todos os munícipes, quando abrem a agenda, tenham pelo menos uma coisa que gostariam de ir ver. Tem de haver um entendimento muito grande do que é a população, do que são as pessoas que frequentam o Teatro Virgínia.
Dá muita importância à promoção dos grupos artísticos locais?
Sim. São as forças vivas da terra. Descurar isso seria um tiro no pé porque as pessoas que fazem coisas são também o nosso público.
Quando anda nos corredores chamam-lhe Tiago ou Sr. Director?
Depende. Agora tratam-me mais por Tiago, mas no início era mais por Sr. Director. Para mim a questão das hierarquias não se põem, todos nós temos a nossa função, todos fazemos parte desta máquina e o teatro não funciona se não tiver director, mas também não funciona se não tiver a senhora que vem fazer a limpeza. Todas as peças desta máquina são importantes.
Tem uma rotina muito marcada?
Sim, tenho porque como faço muitas coisas é essencial organizar tudo muito bem para que nada falhe. Passo grande parte da semana em Torres Novas mas faço muitas viagens a Lisboa, quer seja para estar com a equipa da Materiais Diversos, cujos escritórios base estão em Lisboa, quer seja para ver espectáculos porque para os programar tenho de os ver antes noutros sítios. A sexta-feira é o dia da semana que eu consagro para viajar e ver espectáculos.
Com esta correria toda consegue ter tempo para si e para a família?
Consigo ter tempo para mim e para a família, tento não descurar isso. Faço com que os encontros com a família sejam uma prioridade como é o trabalho.
Foi coreógrafo residente num teatro francês. Como é que classifica essa fase da sua vida?
Foi uma fase muito importante porque a realidade francesa é completamente diferente da nossa. Eles têm uma máquina cultural montada que não tem nada a ver connosco. Ali trabalhei durante três anos, entre 2006 e 2008, onde ganhei algumas ferramentas para fazer o que faço hoje enquanto director de teatro porque trabalhava muito com a directora do teatro francês. Pensávamos em conjunto, falávamos das suas programações, o que é que ia fazer, como é que lidava com a equipa e foi onde conheci o outro lado do teatro que nós não vemos, os técnicos, as montagens, parte administrativa, tudo o que está por detrás e que não imaginamos.
É fácil conciliar a função de coreógrafo e dinamizador cultural?
É muito difícil e por isso estive cinco anos sem fazer uma peça e eventualmente estarei outros cinco sem fazer outra. É complicado porque fazer uma peça envolve a maior parte do tempo e depois não consigo fazer as outras coisas. Para fazer esta última peça que fiz (“Hoje”) foi muito complicado conciliar tudo.
Gosta mais de estar em palco ou fora do palco?
Gosto mais de estar fora do palco. Gosto muito desta sensação de desapego a partir do momento em que a peça é livre e é do mundo. Sentir que ela vai para onde tiver que ir e que já não tem de ir comigo. É claro que também gosto muito de estar em palco, gostei muito de voltar a fazer os solos antigos, por exemplo, mas parece que é algo de uma outra época. Agora gosto mais de estar numa outra posição.
O que é que lhe tira o sono?
Tira-me o sono o que está a acontecer neste momento no país. O estado anti-social a que o país chegou e a forma como grande parte das pessoas está a ser desrespeitada nas coisas mais essenciais, como a cultura, a educação, saúde, os pilares base da nossa sociedade. Isso tira-me o sono e angustia-me. Angustia-me a forma como os valores estão invertidos e angustia-me saber que os nossos jovens têm crescido neste ambiente assustador.
O que é que se imagina a fazer daqui a 10 anos?
Estou a entrar numa fase em que o meu trabalho gira à volta da direcção e programação artística de equipamentos culturais. Estou no Teatro Virgínia e estes projectos demoram tempo a ser implementados, os resultados não se vêem num ano. Os projectos precisam de maturação e daqui a 10 anos vejo-me a continuar a fazer o que estou a fazer agora.
Um coreógrafo que também gosta de programar cultura
Oriundo de uma família em que muitos dos seus elementos estão ligados à música, Tiago Guedes começou por estudar música no Conservatório de Música e Dança de Minde. O passo até às aulas de dança foi pequeno. Aos 14 anos ia três vezes por semana a Torres Novas para ter aulas de dança, precisamente no palco do Teatro Virgínia, onde considera que aprendeu a parte técnica da dança mas onde também apreendeu o lado criativo que esta pode ter.
Sempre foi bom aluno e na altura de escolher a área de estudos superiores optou pela dança, tendo-se formado na Escola Superior de Dança de Lisboa. A família achava que depois da dança ele iria tirar outro curso superior mas não foi isso que aconteceu. Depois de se formar começou logo a trabalhar como coreógrafo residente num teatro francês, onde esteve durante três anos.
Aos 21 anos escreveu a sua primeira peça: “Um Solo”. Seguiu-se o seu “Materiais Diversos”, um solo que circulou bastante internacionalmente e que já tem 11 anos. Em 2005 decide criar a Associação Cultural Materiais Diversos que tem como principal missão incentivar a investigação e experimentação artísticas e sensibilizar o público em geral para as artes performativas, com especial enfoque na área da dança.
Dirige, desde 2009, o Festival Materiais Diversos, um evento marcante na região do Médio Tejo que se realiza anualmente, abrangendo várias salas de espectáculos da região e que pretende dar a conhecer o que de mais interessante se está a fazer no mundo das artes performativas.
Aos 32 anos abraçou um novo desafio na sua actividade profissional: ser director artístico do Cine-Teatro São Pedro, em Alcanena, cargo que manteve por dois anos. Em Março de 2013 assume a direcção artística do Teatro Virgínia, em Torres Novas. Entre a programação artística e a sua veia de criador, estreou no final do ano passado o espectáculo de bailado “Hoje”, a sua mais recente criação em cinco anos.
Tiago Guedes reparte a sua vida entre Lisboa, Torres Novas e os Alvados, aldeia a cerca de 20 minutos de distância de Torres Novas onde reside. Quando não está a trabalhar aproveita para descansar e estar o mais tranquilo possível.