Especial 25 de Abril | 23-04-2014 14:29
O meu 25 de Abril
O princípio deste texto pode ser a óbvia resposta à pergunta retórica do grande jornalista e escritor Baptista-Bastos.”Onde estava no 25 de Abril?”. Pois eu estava exactamente em Santarém nessa madrugada e dormia a sono solto certamente, embora paredes meias com o quartel de onde saíram Fernando Salgueiro Maia, o “rapaz” Beato e tantos outros a caminho de Lisboa para concretizarem o golpe militar que os milicianos ousaram preparar para derrubar o afável Marcelo das “conversas em família”, que entretanto nos estimulava a defender Angola até à última gota de sangue.Tinha então 17 anos. Estudava no Liceu Nacional Sá da Bandeira e preparava-me para concluir o 7º ano dos liceus (actual 11º ano). Na altura, na minha terra, o ensino liceal ia até ao 5º ano (hoje 9º ano) e era assegurado apenas por um colégio privado o que reduzia muito o acesso aos estudos para lá da 4ª classe. Devo adiantar que da minha turma da escola primária (só de rapazes) só eu fiz a admissão ao Liceu e do lado das raparigas também só uma o conseguiu. Os nossos pais eram motoristas de pesados sem horário, ganhavam um pouco mais que a maioria dos assalariados e felizmente as nossas famílias apostavam tudo na formação dos filhos como forma de garantir uma vida melhor.Foi então a caminho do Liceu nessa manhã cinzenta que ouvi falar em Golpe de Estado, “levantamento militar”. Senti as pessoas reservadas e indecisas, eu próprio sem saber o que pensar mas pouco depois rejubilei com a primeira decisão revolucionária, tomada por precaução e segurança, o encerramento do Liceu. Creio que só por uma vez não tinha havido aulas, exactamente no ano anterior quando Veiga Simão, então ministro da Educação, veio a Santarém apresentar a sua reforma do ensino. Naquela tarde de 5ª feira ainda fui para Coruche não fosse o diabo tecê-las e encontrei a minha mãe animadita “porque a rádio estava a transmitir música daquela que a gente gosta” como ela dizia na sua simplicidade. Pude então assistir às manobras no Largo do Carmo na televisão da taberna do Zé Teixeira, grande amigo e educador, e mais tarde autarca na Comissão Administrativa que governou o município até às primeiras eleições autárquicas. E vi os cravos, o povo feliz, os militares cúmplices e a revolução a nascer porque o Povo veio para a Rua e queria ser livre.Como é que eu vi/vivi o 25 de Abril? Na altura eu, como a maioria da população jovem, não era politizado, não esperava o 25 de Abril, e achava inevitável ser incorporado na tropa e fazer a Guerra Colonial. Desejava-se então que nascessem meninas “para não irem à tropa” e a guerra das colónias era a grande preocupação das famílias com filhos rapazes. Estudar era a possibilidade de fugir aos escalões mais baixos da chamada “carne para ganhão” e aceder ao grupo dos oficiais. Na minha inocência e ignorância projectava ser pára-quedista seguindo o exemplo dos meus heróis de então. Um ou outro colega de Liceu falava de Zeca Afonso, eu próprio com outros colegas assistimos a uma sessão de esclarecimento da Comissão Democrática Eleitoral - CDE - no cineteatro Rosa Damasceno, onde me entusiasmei com as intervenções do camponês Álvaro Brasileiro e do advogado Humberto Lopes e apupei, como toda a sala, as intervenções moderadoras do oficial da PSP que estava no palco sentado ao lado da mesa dos oradores e procurava controlar as intervenções mais acaloradas.Estava longe de imaginar que Salgueiro Maia, o herói daquele dia, passava diariamente no Liceu onde a sua mulher, Natércia, leccionava Matemática, que tinha vivido em São Torcato, Coruche, onde durante dois anos frequentou a escola primária, como aliás o Florindo Brites e a Joaquina Caçador ainda hoje tão bem recordam. Muito menos podia imaginar que mais tarde como presidente da Câmara Municipal de Coruche lhe poderia prestar homenagem na toponímia local, justamente na avenida mais usada por jovens estudantes e perpetuar o seu exemplo de cidadania e amor à liberdade, com a preciosa ajuda da Natércia Maia, na Escola-Museu Salgueiro Maia, precisamente na aldeia onde viveu e foi aluno do ensino primário durante dois anos - São Torcato.Mas as memórias marcantes destes dias iniciais registam sobretudo a alegria nos rostos, a simpatia espontânea, os gestos cordiais e a grande cumplicidade entre todos. Foram dias, semanas, meses de felicidade, de descoberta, de participação, sem limites para a utopia e para o sonho. A libertação trouxe a liberdade e para mim foi extraordinária a aprendizagem que o 25 de Abril me proporcionou. Do ponto de vista pessoal, duas medidas foram anunciadas que me trouxeram grande alívio: não ter de fazer exame final no Liceu (para dispensar de exame era preciso média de 14 valores na escala de 0 a 20 o que só estava ao alcance de poucos) e sobretudo o anúncio do fim da guerra colonial, o que apesar do meu entusiasmo pela boina verde me deu uma enorme alegria. Depois foi viver, sonhar e descobrir a Liberdade que só terminava quando começava a Liberdade dos outros.
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