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Trabalhadores da indústria dos curtumes estreiam-se em palco para fazerem deles próprios

Trabalhadores da indústria dos curtumes estreiam-se em palco para fazerem deles próprios

Espectáculo “Não sou só eu aqui” marcou o arranque de mais uma edição do Festival Materiais Diversos, a 18 de Setembro, esgotando o Cine-Teatro São Pedro em Alcanena.

As luzes da sala apagam-se vinte minutos depois da hora prevista. O palco fica escuro como breu. Alguém entra e sobe a um escadote de ferro pintando de vermelho e branco. É o único objecto iluminado por uma faixa de luz. Momentos depois entra uma mulher de meia idade. Não diz uma única fala mas há risos na plateia e burburinhos aqui e acolá. Afinal, quem está ali, exposta ao olhar de mais de 300 pessoas, não é uma qualquer consagrada actriz mas antes a amiga, a mãe de família ou a colega de trabalho com quem privam todos os dias. A mulher pega num balde de água e pendura-o numa corda. É içado. Os risos acentuam-se à medida que o balde sobe. Será que vai mesmo acontecer? Será que vai mesmo levar com água em cima? Pois vai. Os tímidos risos dão lugar a uma gargalhada geral. A cena repete-se, sem qualquer som que não os passos e o ranger da corda a içar o balde por mais 11 vezes. Foram doze, seis homens e seis mulheres, os trabalhadores do “Grupo Carvalhos”, uma indústria de curtumes com duas fábricas activas no concelho de Alcanena que, nessa noite, pisaram um palco pela primeira vez e logo para fazerem deles próprios. É quinta-feira, 18 de Setembro, e o espectáculo marca o arranque da sexta edição do Festival “Materiais Diversos”, uma iniciativa que traz, entre 18 e 27 de Setembro, vários espectáculos de arte performativa a Minde, Alcanena, Torres Novas e Cartaxo. O desafio foi lançado à organização do festival, liderada pelo último ano por Tiago Guedes, pela Câmara de Alcanena. A ideia era abrir o certame com um espectáculo que envolvesse e representasse a comunidade local.O espectáculo, da actriz/encenadora Cláudia Gaiolas e da videasta Rita Rio de Sousa, intitula-se “Não sou só eu aqui”. Por isso, depois do primeiro quadro - que nada tem a ver com os famosos banhos públicos tão na moda por estes dias - os mesmos “actores” surgem novamente em palco a segurarem no microfone e a dizerem quem são as pessoas que conseguem ver do palco. “Eu daqui vejo a passarinha”, refere um deles, provocando gargalhadas. Quem é que não se ri com as alcunhas dos outros? A certa altura o incómodo instala-se na sala devido ao som ensurdecedor que emana das colunas levando os espectadores numa viagem ao interior de uma fábrica. Aliás, toda a banda sonora foi constituída a partir de sons da fábrica. As directoras artísticas explicariam, mais tarde, que pretendiam fazer do som um “actor por si só” já que foi algo que as impressionou nas várias visitas que fizeram ao universo da “Couro Azul” e da “António Nunes de Carvalho”, sendo fácil recolher sons diferentes. Os actores que estão em cima do palco essa noite foram os que conseguiram conquistar e convencer a participar nos ensaios, depois de mais uma jornada de trabalho. Grávida de três meses Catarina Silva, 26 anos, trabalhadora que acompanha a escolha das peles na “Couro Azul” era o rosto da felicidade. Nos últimos dois meses pedia ao marido que fosse ele a tratar do almoço ou do jantar para ir ensaiar com a sua segunda família. “Elas disseram-me que no final este esforço valeria a pena pelos aplausos que recebíamos e foi isso que senti. Apesar de ser super amadora adorei esta experiência. Foi muito gratificante”, revelou, após o espectáculo.Dar voz aos sonhosAfinal qual era o simbolismo daquele balde de água fria que encharcou da cabeça aos pés os 12 actores da vida real, de vários departamentos da fábrica, logo no início do espectáculo, perguntou alguém da plateia? Cláudia Gaiola explica, para os poucos que não sabem, que nas fábricas de curtumes existe água por toda a parte. Por isso os trabalhadores estão quase sempre de botas altas, avental e luvas. Há água no chão e tambores com peles cheios de água. Em cima do palco estes trabalhadores mostram que, para além de um número numa linha de montagem, são pessoas. Por isso, aparecem a mostrar as cicatrizes ou as tatuagens gravadas no corpo. Contam como é que as fizeram. Conversas que provavelmente já tiveram com os colegas, no intervalo para o almoço, ou que são autênticas revelações. Contam ainda o que costumam ver dos seus locais de trabalho, conseguindo a plateia descortinar qual a sua função nos curtumes. Os sonhos, o que pensam durante as tarefas repetitivas, são declamados em palco. Toda a gente tem sonhos. Sandra Carreira, 38 anos, que trabalha na contabilidade desde Abril, é a voz de todos os sonhos desta gente.O balde de água fria inicial repete-se ao longo de todo o espectáculo, a cada cena que se desenrola só que sem água, porque aquelas pessoas poderíamos ser nós. Há palavras fortes, emoções, gestos que se repetem no quotidiano de quem tem uma vida para além do trabalho. As fábricas não param e a vida destas pessoas também não, independentemente da tirania do relógio de ponto. A certa altura enunciam os dias que vão ter que trabalhar na fábrica até à idade da reforma. Todos são considerados heróis e sobem ao primeiro lugar do pódio que, a certa altura, é montado no palco, recebendo uma medalha e um ramo de flores pelo trabalho que desenvolvem, num dos quadros mais emocionantes de todo o espectáculo. À sua maneira todos são vencedores.
Trabalhadores da indústria dos curtumes estreiam-se em palco para fazerem deles próprios

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