Chama-se Victor Moedas e não vai ser cabeça de cartaz nas Festas da Ascensão
É o acordeonista mais velho da Chamusca e a música foi sempre a sua casa
Trabalhou toda a vida na construção civil mas o cimento da sua vida foi amassado quando comprou um acordeão velho e aprendeu a tocar.
Tira da caixa o seu Ranco António, um acordeão italiano que diz ser uma espécie de Mercedes dos acordeões. Senta-se numa cadeira e olha para a plateia com o ar de simpatia que traz sempre a bailar no rosto. São duas e meia da tarde e o público é sénior. Vão ser duas horas de grande animação no Lar da Santa Casa da Misericórdia do Entroncamento. O artista toca tudo e acompanha todos com mestria e profissionalismo. Sejam os amigos Carlos Nascimento e Fátima Mendes que estão habituados a cantar ou vários espontâneos que saíram dos seus lugares para ir lá à frente mostrar os seus dotes.Victor Moedas fez 68 anos em Março. Nasceu na Chamusca e sempre viveu na Chamusca com excepção do tempo em que cumpriu o, então obrigatório, serviço militar. Recruta em Vila Real de Trás-os-Montes, especialidade em Chaves e dois anos em Moçambique. A música começou cedo. O pai, Custódio Moedas, ensinou-o a tocar gaita de beiços e ele na escola já entretinha os colegas nos intervalos. Depois, aos 16 anos, nos tempos livres, tinha aulas de solfejo com um músico e acordeonista chamado António Pereira Durão.“Desde miúdo que gostava do acordeão. Quando comecei a ganhar o meu dinheiro fui ter aulas com esse professor que estava na Chamusca. Era eu e outros. Ele ensinou-nos solfejo e nós andávamos a juntar dinheiro para comprar os nossos próprios instrumentos. Infelizmente ele foi-se embora lá da terra antes de começarmos as aulas práticas. Acho que foi para o estrangeiro. Nunca mais o vi”, conta Victor Moedas.O professor foi embora mas ele não tirou da cabeça a ideia de tocar acordeão. Comprou um usado pouco tempo antes de ir para a tropa e foi na tropa que aprendeu a tocar mas sem mestre. Na recruta ainda havia outro acordeonista que sabia mais que ele pois já tocava numa banda. Em Moçambique ficou por sua conta. Não gastou munições ao Estado mas teve um episódio complicado com uma mina que rebentou debaixo de um “Unimog” onde viajava. As sequelas estão a afectá-lo mais agora que antes. Ouve mal do ouvido esquerdo. Criado com os bisavós paternos, Custódio Simão Moedas e Maria das Dores Santos, de quem sempre ouviu dizer que tinha ascendência nobre, acredita que os genes da música talvez tenham vindo em maior quantidade do lado materno. “ A minha mãe, Maria Helena de Jesus Castelão, cantava muito bem. O meu avô materno era percussionista numa banda que existiu na Chamusca, já lá vão setenta anos”. Quando voltou da guerra, voltou ao trabalho na construção civil e iniciou uma carreira paralela como músico. “Regressei em Junho de 1971. Passados poucos dias de cá estar fui fazer um baile na véspera do S. João. Lembro-me que se saltava a fogueira. A partir daí nunca mais parei. Tirei a carteira profissional e aos fins de semana fazia bailes, casamentos, festas, baptizados...tocava em todo o lado. Ganhei o dinheiro suficiente para não ter de emigrar em alturas em que a construção civil andava por baixo”, confessa.Nos primeiros três anos tocava a solo. Depois contratou um baterista para o acompanhar. Mais tarde formou um conjunto com o seu nome. “Victor Moedas mais dois” e “Victor Moedas mais três”. Para não haver baralhações acabou por escolher um nome mais sofisticado para o grupo. “Sadeon”. Sorri e explica: “É o meu nome lido da esquerda para a direita”, explica. Mais tarde comprou equipamento de amplificação para tocar ao ar livre e nunca mais parou. E para que não se pense que tocar é trabalho leve explica que os bailes antigamente chegavam a durar até ao nascer do sol. “Ganhava-se dinheiro mas era uma vida dura”. Toca tudo o que é preciso tocar. Gosta de música popular e nos últimos anos tem sido solicitado para tocar com músicos de fado, guitarristas e violas. Também acompanha fadistas a solo quando é preciso. Só uma vez se atreveu a compor. Foi em parceria com Manuel da Silva Santos. Fizeram, na década de 70, o hino do Grupo de Forcados Amadores da Chamusca, que ajudou a fundar. Quem fez a letra foi a poetisa chamusquense Maria Manuel Cid. O hino foi apresentado na Quinta-Feira de Ascensão de 1985. Sobre a sua passagem pelos forcados diz que foi discreta. “Sou fundador do grupo mas nunca arrisquei pegar um touro. Tinha medo. Eu era uma espécie de figurante”. Em criança ia com o pai à corrida de Quinta-Feira de Ascensão. E continuou a ir. A festa da Ascensão é a sua festa. Nunca subiu ao palco principal mas tocou em muitos outros pequenos palcos e continua a tocar. Do que também se orgulha é de ajudar os outros com a sua música. Já tocou e continua a tocar gratuitamente em colectividades, associações, festas de solidariedade. E também deu a mão a muitos músicos jovens da terra. Ensinando-os e cedendo-lhes equipamento de som, por exemplo. “Há uns que me agradecem. Há outros que já não se lembram ou fazem que já não se lembram mas o que conta para mim é saber que fiz tudo o que pude pela minha terra”, declara. O primeiro acordeão vendeu-o para comprar outro. Actualmente tem quatro. Não se cansa de elogiar o instrumento. “O acordeão toca tudo. Para mim é um instrumento completo. O piano também toca tudo mas não é portátil”, defende. Gosta de tocar com bons músicos porque, diz, os músicos limitados o limitam. “Com os melhores podemos mostrar o que valemos. Os outros nem sabem ouvir o que estamos a fazer”, defende. Quanto ao futuro diz que sente que o acordeão é um instrumento com futuro. “Há muita gente jovem a aprender e muitos deles têm futuro”. O filho, Bruno Moedas, estudou música e licenciou-se. É militar e toca na orquestra. Primeiro-sargento, diz o pai com orgulho. “E continua a estudar. Está a acabar psicologia e já anda a pensar noutro curso. Acho que nasceu para estudar”, diz. A seguir acrescenta: “Acho que faz bem!”.O ano passado Victor Moedas perdeu duas pessoas muito importantes. Primeiro a acordeonista Eugénia Lima e uns meses depois a mãe. “Eram da mesma idade. Faleceram aos 88 anos”, diz, enquanto a tristeza lhe passa pelos olhos e o queixo descai um pouco, na direcção da camisa preta que veste.
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