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“A coisa mais radical que gostava de fazer era saltar de pára-quedas”

“A coisa mais radical que gostava de fazer era saltar de pára-quedas”

Manuel Cruz Ferreira, 67 anos, médico de medicina geral e familiar, Azambuja

Manuel Cruz Ferreira é de Coruche mas grande parte da sua vida profissional foi passada em Azambuja. Médico com a especialidade de Medicina Geral e Familiar actualmente a trabalhar por conta própria, diz que o estado da saúde no país é mau e que muitos médicos contratados para trabalhar à hora em centros de saúde são um perigo para os doentes. Consegue desligar-se com facilidade do trabalho e passa boa parte dos tempos livres no seu jardim. Gosta de ler e vai regularmente a Lisboa almoçar com amigos. Não gosta de olhar para o passado e prefere focar-se no futuro. O feito mais radical que gostava de fazer era saltar de pára-quedas.

Na madrugada do 25 de Abril de 1974 eu ia numa coluna militar para Cahora Bassa. Era oficial miliciano e tinha sido mobilizado para Moçambique. Naquele tempo não prevíamos que a guerra fosse acabar. Houve alguns mortos na minha companhia durante o tempo que lá estive. Assisti a algumas coisas bem desagradáveis. Como havia falta de médicos muitas vezes os médicos eram mobilizados duas ou três vezes, por esse motivo houve muita gente, como eu, que interrompeu o curso. Se fôssemos como estudantes não éramos obrigados a dizer que já éramos médicos. Sou de Coruche mas santos da terra não fazem milagres e optei por ficar em Azambuja. Sou de uma família numerosa e conhecia toda a gente em Coruche mas foi melhor assim. Actualmente sou também provedor da Misericórdia de Azambuja. Temos muitas obras em curso e muito trabalho. Consigo desligar-me do trabalho com facilidade. Ocupo-me muito com a família. Os meus filhos estão quase todos fora de Portugal, um formou-se em filosofia e está em Inglaterra, outro em artes na Escócia e o que está melhor é engenheiro químico, já esteve lá fora mas agora conseguiu ficar por Portugal. Vivo numa casa que tem um terreno e faço jardinagem nos tempos livres. Ando muito a pé, gosto imenso de caminhar e não dispenso uma ida ao cinema ou a concertos, por exemplo de música clássica ou de um qualquer músico português, como o Pedro Abrunhosa. Gosto de ir uma vez por semana a Lisboa para almoçar com os amigos. Nunca tive um vício secreto nem colecciono carros clássicos ou relógios. Sou uma pessoa simples e não tenho dinheiro para grandes gastos. Quem vive só do seu ordenado não sobra muito. Ainda estou a pagar a minha casa. A coisa mais radical que gostava de fazer era saltar de pára-quedas. A minha maior extravagância foi em África, fazer umas corridas e acompanhar colegas de caçada embora não seja caçador. Guardo boas memórias da infância. Gosto mais de estar focado no presente e no futuro. O passado está feito. Felizmente não guardo memórias más e isso é o mais importante. Decidi ser médico por querer servir o próximo. Sempre gostei de ciências e física e mantive uma sensibilidade muito grande para as questões da saúde, embora nunca tenha gostado de cirurgia. Estou satisfeito com a profissão que tenho e não estou arrependido. Ao fim de uns anos no Centro de Saúde da Azambuja as pessoas começaram a solicitar-me para as ver fora do serviço nacional de saúde e por isso abri o meu primeiro consultório. Já vou no terceiro. Levanto-me todos os dias com vontade de trabalhar. Há sete anos reformei-me do Estado e passei a exercer apenas nos meus consultórios. Não me estou a ver em casa sem trabalhar. Primeiro porque gosto do que faço e depois porque não quero abandonar as pessoas. Sou incapaz de deixar os meus utentes. Não há outros privados aqui tão disponíveis para os utentes como eu. Faço domicílios, sábados e domingos se for preciso. É uma vida dura mas mesmo assim espero continuar até ter uns 70 anos. Esteve no centro de saúde um médico tão malcriado que nem via as pessoas. Limitava-se a passar receitas. O estado da saúde no país é mau. Azambuja é o reflexo do que se passa por todo o lado. Nós éramos 13 médicos da carreira e neste momento estão só 4. Um ou dois são jovens em início de carreira e os outros são contratados a empresas privadas. Muitos não têm qualidade. São médicos de fora, sul-americanos, africanos e até portugueses que não quiseram seguir tirar a especialidade e andam aí sem emprego. Isso é muito perigoso. A solução são as Unidades de Saúde Familiar. Um médico tem que continuar a actualizar-se. Continuar a ler mesmo depois de pensar que sabe tudo. Erros todos cometemos. Eu também cometi alguns e lembro-me sempre deles para não voltar a errar. Mas temos de acertar em 99 por cento das vezes. A competência passa por perceber as nossas limitações. Um médico deve ter uma enorme humanidade e gostar das pessoas. Quem não gostar de gente não deve vir para medicina. E temos que ser honestos.
“A coisa mais radical que gostava de fazer era saltar de pára-quedas”

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