As histórias que os antigos bairros clandestinos de Vila Franca de Xira têm dentro
Vinham da chamada província à procura de trabalho na grande Lisboa e encontraram-no. Queriam uma casa a que pudessem chamar de sua. Compraram terrenos onde não se podia construir e onde ergueram urbanizações clandestinas, trabalharam horas a fio, pagaram multas, “passaram as passas do Algarve”. Vivem em ruas com nomes como Salvador Allende e Samora Machel, em bairros do concelho de Vila Franca de Xira que são um repositório de muitas histórias de outros tempos.
Na rua principal de Casalinho, uma das AUGI (Áreas Urbanas de Génese Ilegal) de Vialonga, Carlos Moura está à porta da garagem que o seu pai, José Valente Moura, construiu no início da década de 1970. É uma moradia grande, que alberga duas casas: Carlos mora no primeiro andar há três anos. Deixou uma casa que tinha arrendado e foi morar para o sítio que dominou os dias dos pais anos a fio. José Valente Moura é de Amarante e casou com uma mulher de Cinfães do Douro. Rumaram a Sul, porque não havia trabalho a Norte. E José Valente Moura nunca negou um serviço. Foi assim que conseguiu comprar um lote num lugar chamado Casalinho, que lhe levou “muito dinheiro” e “dores de cabeça” e que até o fez perder a força nas pernas, de tanto trabalho que foi necessário fazer para erguer o sonho: uma moradia, com dois anexos e duas águias no portão, em honra do Benfica.
Quando chegou do Douro, o casal ainda não tinha filhos. José Valente trabalhava na Covina - a fábrica vidreira em Santa Iria da Azóia, ia comer algo a casa e saía de novo para fazer trabalhos de construção civil. A mulher tratava das hortas de quem a contratava. Pouco depois de Carlos Moura nascer, em 1966, José Valente já tinha amealhado o suficiente para comprar o primeiro lote. “Custou-me 500 e tal contos”, na altura. Estas terras todas eram uma quinta e o proprietário vendeu-a. Quem comprou a quinta dividiu-a em lotes - a divisão era feita num papel dividido em quadrados e o comprador assinalava o quadrado que queria. Eram negócios realizados em cafés, “apalavrados”, mas as pessoas estavam sedentas de terra e depois do 25 de Abril, como a situação económica do país melhorou, mais lotes houvessem, mais se venderiam. “Eu comprei a 500, mas houve quem comprasse a 20 contos, que são os lotes que ficam mais perto da escola”, explica José.
Ainda antes de comprar o lote já tinha o projecto da casa na cabeça: uma moradia dividida em dois andares em que cada um deles teriam exactamente as mesmas divisões: dois quartos, uma sala comum, um WC e uma cozinha. Do projecto faziam também parte uma garagem e um anexo para arrumos.
Sem licença da câmara, José decidiu arriscar: “Não podia ficar parado”
“Olhe que eu tentei fazer as coisas bem. Fui à câmara pedir autorização para construir e recusaram. Mas eu já tinha tudo aqui: os ferros e as placas. Arrisquei, não podia ficar parado”. Foram lá os fiscais e José Valente pagou a multa: uns 20 contos” e foi sempre construindo, sempre sob a ameaça de um dia chegar e a câmara lhe ter deitado o sonho abaixo. “Fiz os esgotos e quando fui pedir o ramal para a água obrigaram-me a pagar os esgotos que tinha sido eu a construir. Paguei também”.
Mora na Rua do Casalinho, a principal, ao lado das ruas Samora Machel e Salvador Allende. Só há poucos anos o bairro recebeu placas com nomes a identificar as ruas, e José Valente sente que cumpriu o objectivo: “Gosto de viver aqui. É sossegado, quando acordo de manhã ouço os passarinhos”. Não existe é movimento.
No Casalinho há apenas um restaurante/café e dois cabeleireiros. É verdade que passam os autocarros da Rodoviária, mas já não passam em frente à casa de José, agora passam na Rua das Índias - porque a escola, ao fundo da rua, com os carros dos pais a deixarem os filhos, atrasava o autocarro. Para José Valente é uma pena, até porque tem muita dificuldade em andar e gostava de ver as pessoas, cumprimentar os vizinhos. Acabou por ficar preso na gaiola com que sonhou. O filho já pensou em comprar-lhe uma cadeira eléctrica para ele poder passear. Sabe que as pernas do pai cederam por causa dos vários trabalhos que enfrentou para poder construir a moradia. Entrava à meia-noite na fábrica e saía às oito da manhã. Vinha a casa comer qualquer coisa e ia fazer as casas dos outros, os que tinham o mesmo sonho que ele. “Tive sorte. Tinha saúde e muito trabalho”. Apesar das marcas físicas que a vida lhe deixou, confessa: “A minha maior felicidade foi vê-la finalmente construída. Ter a minha casa sempre foi o meu sonho”.
Há cabras a pastar em lotes vazios e novos moradores
Histórias semelhantes ouviu António Teixeira, 49 anos, da boca do sogro, Germano Ramalho, já falecido e oriundo do norte do país. No último sábado era ele o único que estava em casa, ou melhor, na moradia que se divide em quatro casas. Numa delas mora António, com a mulher que é a herdeira da casa e com o filho de ambos, na outra mora a sogra, a mulher do homem que decidiu um dia comprar um lote numa das ruas de baixo do lugar da Quinta da Ponte, em São João dos Montes. Numa outra casa anexa mora o cunhado e as outras duas estão arrendadas. Em frente, ainda se vêem materiais de construção, apesar da casa ter começado a ser construída nos anos 70. Para dizer a verdade, António Teixeira, que é trabalhador da Cimpor, não estava bem em casa, mas no terreno agrícola que o lote também tem e onde cria galinhas e cultiva uma horta, sempre com o rádio a tocar música muito alto. Não é um prédio, tudo ali à volta é dele e da família.
Nos bairros de Casal do Álamo e na Quinta da Ponte muitas casas já não são ocupadas pelos seus primeiros habitantes - muitos deles construíram-nas com as suas próprias mãos. Há muitos herdeiros, mas também muitos arrendatários, casais jovens, com filhos pequenos, que ali encontram um sítio calmo onde há sempre lugar para estacionar o carro. Não há movimento e até existem lotes vazios onde alguns moradores criam cabras. As casas das ruas de cima têm ainda uma vista desafogada, mas na altura em que Germano Ramalho foi para ali viver, eram tudo lotes de construção clandestina. “Agora temos tudo legalizado. Passamos recibos das casas que arrendamos”.
As famílias foram tomando conta da Quinta da Ponte: o cunhado de António já comprou o lote em frente à casa e ainda nem sabe o que vai construir ali. O outro cunhado comprou um lote numa rua mais abaixo e fez aí a sua casa. É como viver numa comunidade, que, no entanto, esperava por algo que nunca chegou a acontecer: tornar o lugar realmente habitável, com serviços que nunca existiram, apesar de terem sido prometidos por quem vendeu os lotes.
O juiz disse que ele não podia construir a casa mas ele acabou-a
Na Quinta da Ponte, em São João dos Montes, não existe uma mercearia, um café ou uma farmácia. Muitos moradores, como Domingos Luís, de 85 anos, já perderam as forças nas pernas e o que lhe vale ainda é “o carrito que ali tenho”, conta. “Quando nos venderam os lotes diziam que isto ia ser uma maravilha, uma urbanização. Ficaram as casas, tudo o que aqui está fomos nós que construímos, pagámos multas, pagámos legalizações, a câmara ajudou também, é verdade, mas isso foi muito depois”, conta o antigo pintor, enquanto poda as videiras que tem num dos cantos da moradia e que o ano passado lhe deram 120 quilos de uvas.
“Foi duro, muito duro construir esta casa”, conta Domingos, que veio de Torres Vedras com a mulher para Alpriate: ele trabalhava numa fábrica na Póvoa de Santa Iria, ela era criada de servir “na quinta de uns senhores”. Depois, arrendaram uma casa em Vialonga, entretanto a mulher já trabalhava numa fábrica que fabricava mosaicos: e são esses, em diferentes tons de azul, que forram a moradia de dois pisos do casal: “Comprámos, claro, mas deixaram-nos comprar a prestações”. Sonhou aquela casa assim, exactamente assim, para a sua família. E foi por isso que assim que pôde comprou o lote em frente para construir a casa onde hoje mora o seu filho.
Quando começou a construir a casa - comprou o terreno em 1971 - e a sua foi a terceira a ser construída naquele lugar, pouco tempo depois vieram os fiscais da Câmara de Vila Franca de Xira dar um conselho: “Ponha já o telhado ou vêm cá e mandam tudo abaixo”. Domingos continuou a construir. Voltaram os fiscais e teve de pagar uma multa de 16 contos. Dessa vez, fincou o pé: “Se pago multas não tenho dinheiro para acabar a minha casa e quero acabá-la. Fui à câmara pedir para a construir, não me deram as licenças. Agora não vou deixar o trabalho a meio”, explicou. Foi a tribunal e foi-lhe aplicada uma pena suspensa: não poderia acabar aquela casa nem sequer construir outra. “Construí e acabei-a. Nunca mais me vieram chatear”. Domingos recorda: “Passámos as passas do Algarve para fazermos esta casa” - a número 1, da Rua das Flores.
Domingos também trabalhava a pintar as casas dos vizinhos e teve ajudantes para lhe construírem a casa. “Um dia cheguei aqui e tinha o pedreiro a aquecer-se à lareira”, conta. “A explicação que me deu foi que se não tinha vindo o servente ele nada podia fazer”. Domingos despediu-o. Mas o seu projecto/sonho continuou. Gosta de ali viver: “É um bairro seguro, até temos um guarda-nocturno, pago pela comissão de moradores”. Em frente à casa de Domingos Luís, cravejada dos mosaicos que tantas vezes passaram pelas mãos da sua mulher, enquanto trabalhava, ergue-se alta e moderna, em tons laranja, a casa do filho. Já não são clandestinos. As histórias das gentes que fizeram estes lugares: Casal do Freixo, Terra do Barro, Casalinho, Fonte Santa, Casal do Álamo e Quinta da Ponte são muito similares. Pagaram por um terreno e foram durante décadas os ilegais de Vila Franca de Xira. O processo de legalização ainda não terminou, mas estas casas erguidas já não serão derrubadas.