Retrospectiva 2016 | 02-03-2017 09:21

“Trabalho para ser melhor porque o que fiz no passado já está desactualizado”

“Trabalho para ser melhor porque o que fiz no passado já está desactualizado”

A vida de Rui Vitória mudou muito desde que passou a treinar o Sport Lisboa e Benfica mas a sua postura enquanto homem não se alterou. Diz que é uma pessoa muito feliz porque fez três coisas que sempre sonhou fazer: jogar futebol como profissional, tirar o curso superior de Educação Física e ser treinador. Tem os pés assentes na terra e sabe que o sucesso não dura sempre. Diz que mais que treinador é um ser humano e é também dessa forma que olha para os jogadores com quem trabalha.

Começou a jogar futebol aos nove anos com que motivação? Acompanhava o meu pai a assistir aos jogos do Alverca e ganhei muito cedo o bichinho do futebol. Jogava à bola na rua e depois fui jogar para as escolinhas. Era um jogador que foi crescendo na zona central do campo. Tinha uma posição de médio centro e gostava de organizar o jogo e fazer passes longos, que me dava muito prazer. Era mais um jogador tecnicista do que outra coisa.
Foi nessa altura que começou a ter o sonho de ser treinador? O facto de desde muito cedo jogar na zona central do campo, de ter alguma capacidade de controlar a gestão do jogo e de ter sido capitão de equipa deu-me uma visão. Depois fiz uma licenciatura em Educação Física.
Não tinha pensado tirar outro curso? Sou uma pessoa muito feliz porque fiz três coisas que queria fazer: jogar futebol, tirar o curso superior de Educação Física e ser treinador. Foi o que idealizei e consegui.
O facto de ter estes objectivos facilitou-lhe o percurso ou teve que trabalhar muito para conseguir? Nunca fui de grandes sonhos. Fui tendo sonhos que sabia que se podiam realizar no imediato. Nunca tive um objectivo a longo prazo. As coisas foram acontecendo de forma natural e esse é um grande trunfo que acabei por ter. Tem sido assim ao longo da vida. Uma vez disse que um dia ainda gostava de ouvir o hino da liga dos campeões. Um amigo, por brincadeira, mandou-me o hino para o telemóvel. Agora já ouvi várias vezes o hino enquanto treinador.
Foi treinador dos juniores do Benfica. O que é mais fácil: treinar os mais novos ou os seniores? Estive dois anos nas camadas jovens por opção, porque precisava de passar por essa realidade, com dois objectivos: saber o que pensavam os jovens numa fase de transição para seniores e ter o conhecimento de um clube grande e como é que os jogadores do clube pensavam. Foi uma experiência quase em forma de formação mas a minha paixão foi sempre o futebol sénior.
Como é que conseguiu em cerca de quinze anos de carreira como treinador nunca ter sido despedido? Estou muito bem com a vida e trabalho diariamente para cada dia ser melhor e tenho a consciência de uma coisa que me parece importante. Quando se faz uma coisa muito bem feita essa coisa não se pode repetir durante muitos anos. Pelo menos no futebol. O que fiz no ano passado já está desactualizado e essa é a minha visão permanente. Eu e a minha equipa técnica tentamos sempre arranjar novas soluções e esse é um trunfo. Não me aconteceu ser despedido a meio de uma época mas pode acontecer um dia porque a vida de treinador é mesmo assim. Não sou diferente dos outros nesse aspecto.
Costuma dizer que às vezes é preciso meter uma pedra no coração. É esse o segredo para se ser respeitado na profissão? Às vezes podemos começar a ficar condicionados pela emoção. Todos temos afectos mas nesta profissão temos de ser muito racionais. Quantas vezes gosto muito do jogador e sei que merece estar na equipa mas tenho de decidir em função do que é melhor para a equipa e não do que eu gosto.
Percebeu isso quando começou a treinar o Vilafranquense e muitos dos jogadores tinham sido seus colegas? Quando treinava o Vilafranquense fui jogar com o Porto para a Taça de Portugal. Tinha que optar entre dois guarda-redes e um deles era e é o padrinho da minha filha. Era fácil ir atrás das emoções mas acabei por decidir por quem achava que me dava garantias e ficou o meu compadre Paulo Xavier de fora.
A sua esposa é professora de educação física. Ela dá-lhe opiniões técnicas ou opiniões sobre os jogos? Falamos até achar que podemos falar. Ninguém conhece a nossa profissão no nosso contexto como nós e, às vezes, as sensibilidades das outras pessoas não são iguais às nossas. O treinador entende uma série de coisas que a maioria das pessoas não entende e às vezes conversar sobre determinadas matérias pode perturbar-nos.
Passou por vários clubes e continuou com residência em Alverca até entrar no Benfica. É uma pessoa muito ligada às raízes? Era o meu ponto de abrigo. Agora mudei para mais próximo do Seixal para estar perto do local de trabalho. Mas costumo ir a Alverca, onde tenho família.
Quando treinou o Centro Desportivo de Fátima foi alguma vez ao Santuário pedir protecção? Gostava de lá ir mas não com esse intuito. O facto de treinar o Fátima fez também com que não estivesse excessivamente agarrado a essa ideia. Estando lá parece que não havia tanta necessidade de ir ao santuário mas ia quando entendia e calhava. Sou católico não praticante e tenho fé.
Qual é a qualidade necessária para se ser um treinador de sucesso? Há vários modelos de treinador. Não há um perfil tipo. Temos exemplos de pessoas bem-sucedidas na profissão com formas diferentes de ser, de estar e de treinar. O que me parece determinante é não perder a noção de que atrás de um treinador ou de um jogador está sempre um ser humano. O treinador, na minha perspectiva, não pode lidar com os jogadores apenas como profissionais mas também como seres humanos. Tem que ter sempre presente que está a lidar com homens. Tem de estar também inerente a postura, a capacidade de gerir recursos humanos e estar permanentemente actualizado em relação ao futebol e aos treinos. Não temos obrigatoriamente de ser especialistas em determinada área mas temos de ter conhecimentos alargados de várias áreas.
Por vezes sente-se mais psicólogo do que treinador? O treinador em determinados momentos tem de ser um psicólogo, em outros um pai, mas também um chefe, um treinador, um professor. A primeira pessoa que tem intervenção psicológica com os jogadores é o treinador. Mesmo estando calado está a intervir sobre os jogadores.
Tem uma imagem de pessoa reservada mas dizem que é bom conversador e que já animou muitas viagens de grupo. Quando é para trabalhar é para trabalhar, quando é para brincar é para brincar. Quem souber isto em qualquer equipa está no caminho certo. Somos pessoas, temos emoções, sentimentos e temos de saber utilizá-los.
Como é que conseguiu lidar com a situação dos seus pais falecerem num acidente de viação antes do primeiro jogo como treinador? Foi um momento muito difícil mas muito importante na minha vida particular e profissional. Arranjei mecanismos de ultrapassar aquele momento trágico e que me reforçou enquanto homem e profissional. E têm sido um grande suporte na minha carreira porque eles estão sempre presentes. Adoro falar dos meus pais.
Na generalidade passa uma imagem de pessoa calma. Nunca se irritou a sério? Ou consegue controlar isso? Quando tenho de me irritar, irrito-me. Tenho a preocupação de me controlar e na maior parte das vezes consigo-o mas quando tenho de extravasar as minhas emoções não tenho problemas em fazê-lo. Só não o faço em público. Quem está num clube tem uma responsabilidade acrescida e a imagem que se passa para o exterior é fundamental. Muita gente se revê no treinador do seu clube e tenho sempre o cuidado de passar imagens positivas, de valores, de posturas correctas. Faz parte também da minha maneira de ser.
O que é que o mediatismo que agora tem mudou na sua vida? Não vou às compras e não é porque não gostasse de ir. Faço a minha vida normal mas sem estar tão exposto. Faço alguma selecção dos sítios onde vou com a família. Mas tenho de dar graças a Deus pela profissão que tenho e pelo clube onde estou. O mediatismo faz parte da profissão e ainda bem que acontece, porque é sinal que estou a ser reconhecido e houve evolução na minha carreira. É preferível isso a estar num sítio em que não seja conhecido.
O que acha de o facto de a região não ter equipas na primeira divisão? É uma pena mas é uma consequência do fenómeno social que temos. A vida ficou difícil, para os clubes também.
Numa equipa de craques há jogadores que são mais importantes que o treinador? Estamos num mundo em que deixou de fazer sentido que o treinador é o chefe e tem os seus empregados. O Cristiano Ronaldo, por exemplo, é um jogador estratosférico. Temos que aceitar as coisas como são e há jogadores com um peso enorme nas sociedades, nas economias, nos clubes… temos de saber posicionarmo-nos e assim as coisas ficam perfeitamente claras.
Considera-se o melhor treinador português? Não! Considero-me um treinador que tem tido uma evolução permanente e que está sempre atento e a querer melhorar. A minha preocupação é ser melhor no dia-a-dia e estar bem comigo próprio, ser uma referência. A minha ambição e diária é ser sempre melhor que ontem.

Um treinador de bem com a vida

O MIRANTE elegeu Rui Vitória como Personalidade do Ano - Nacional devido ao seu percurso de sucesso como treinador de futebol mas o prémio é também atribuído pelas suas qualidades humanas e pelo facto de nunca ter alterado a sua postura apesar dos inúmeros êxitos profissionais e do relevo mediático que obteve. Esta é a segunda vez que O MIRANTE atribui uma distinção ao treinador natural de Alverca. Rui Vitória recebeu o Prémio Personalidade do Ano na Área do Desporto/2007.
Nascido a 16 de Abril de 1970 o actual treinador do Sport Lisboa e Benfica é licenciado em Educação Física. Foi jogador até aos 32 anos, altura em que começou a trabalhar como treinador, contratado pela União Desportiva Vilafranquense. Depois treinou o Centro Desportivo de Fátima, o Futebol Clube Paços de Ferreira, o Vitória Sport Clube de Guimarães e agora o Sport Lisboa e Benfica, clube onde já tinha estado a treinar os juniores de 2004 a 2006. No primeiro, como treinador da equipa sénior do clube da Luz, ganhou o campeonato.
Depois de ter promovido o Fátima à Segunda Liga, Rui Vitória levou o Paços de Ferreira à final da Taça da Liga, que perdeu para o Benfica. Ganharia uma Taça de Portugal ao Benfica como treinador do Vitória de Guimarães. Nessa altura o jornal italiano “Gazzetta dello Sport” apelidou-o de “treinador mágico”.
Depois de ser contratado pelo Benfica começou a perceber que a sua vida não ia ser a mesma e lembra que chegou a ter vizinhos a baterem-lhe à porta de casa às nove da noite só para tirarem uma fotografia com ele. É um homem fiel às raízes e aos valores e por isso manteve sempre a sua residência no concelho de Vila Franca de Xira, até há pouco tempo, por necessidade de estar mais perto do Seixal, onde se situa o centro de estágios do clube.
Nos poucos tempos livres que tem gosta de estar com a família e de desanuviar estando sempre atento ao mundo que o rodeia. Gosta de ver uma telenovela ou um filme, descontraidamente mas quando lê escolhe livros técnicos de desporto. Foi professor de Educação Física e chegou a tocar bateria mas apenas como forma de descarregar energias. É casado com Susana Barata com quem tem três filhos, duas meninas e um menino. Rui Vitória é também pai de uma jovem de 17 anos de um primeiro casamento.
Gosta de olhar para o futuro sem prazo nem obsessão mas com a ideia de que há sempre coisas para fazer melhor e para conquistar. O seu objectivo é trabalhar dia-a-dia com alegria, sentindo-se uma pessoa de bem com a vida.

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