Retrospectiva 2016 | 02-03-2017 09:21

“A região ainda não interiorizou que tem o único Nobel português da literatura”

“A região ainda não interiorizou que tem o único Nobel português da literatura”

Pilar del Río é a Pilar del Río que os portugueses conhecem há trinta anos. A sevilhana rebelde e frontal que casou com José Saramago mas que nunca foi “a mulher” de José Saramago e que agora também não é “a viúva” de José Saramago mas apenas a Pilar. Traduziu livros de Saramago para espanhol mas quando fala com portugueses fala espanhol e quer que os seus interlocutores falem português. Assim, explica, nem ela destrói a língua de Saramago nem nós assassinamos a língua de Cervantes. É a presidenta da Fundação José Saramago e se por distracção ou hábito a tratamos por a presidente, é bem capaz de nos chamar “néscios”...sem contemplações!

Há a Casa dos Bicos em Lisboa, a Casa de Lanzarote e há um pólo meio esquecido da Fundação José Saramago, situado na sua terra natal, a aldeia da Azinhaga. Imagino que pense algumas vezes sobre o que fazer para dar vida àquele lugar. Não só penso como estamos a trabalhar para isso. Vamos passar aquele pequeno pólo para uma antiga escola (junto ao jardim), que foi recuperada pela junta de freguesia. É um lugar onde há espaço para um auditório onde podem ser feitas conferências, exposições e muito mais. Tem uma grande sala para biblioteca, mais duas pequenas salas. Tudo tem estado a ser preparado.
Tem sido difícil? Nós tínhamos um projecto que era muito mais ambicioso, que era passar a biblioteca da aldeia para o novo pólo da Fundação mas isso não foi possível concretizar. Vai ser uma coisa distinta do que estava inicialmente sonhado mas vai ficar também muitíssimo bem. O que queremos é que o pólo da Azinhaga da Fundação José Saramago tenha muita actividade. Que tenha iniciativas. Que lá vão estudantes, visitantes...muitos visitantes. Quando a sede estiver definitiva, como nós queremos, vai ser um pólo de atracção grande para visitantes.
A percepção que se tem é que o maior problema do pólo de Azinhaga em termos de atractividade é o facto da sede da Fundação José Saramago ser tão perto, em Lisboa. Mesmo assim há grupos que vão a Azinhaga e quando as condições forem melhores, irão muitos mais. Quando houver um lugar para conviver, fazer conferências, exposições e outras iniciativas, como vai haver na escola, estamos certos que as pessoas irão.
O que Saramago escreveu sobre a sua infância dava para criar, por exemplo, um roteiro na zona da Azinhaga? Está já feito. Há um roteiro e agora vão ser colocadas as placas nos locais. Foi feita uma selecção de textos a figurar em cada uma delas. Do Paul do Boquilobo até à aldeia. A escola; a casa dos avós; a oficina do sapateiro...está tudo feito.
Quando vai ser inaugurada a nova sede do pólo de Azinhaga da Fundação e a Rota Saramago? O presidente da Junta de Freguesia de Azinhaga, Vítor Guia, está a trabalhar no projecto. Houve alguns problemas que já foram ultrapassados e vai ser inaugurado muito em breve. (Dia 8 de Abril, sábado, de acordo com informação dada a O MIRANTE pelo presidente da junta). Esta ocasião de encontro, propiciada por O MIRANTE, está a ser o apoio último que estava a faltar. É um apoio que vai ser muito importante para a consolidação da rota de Saramago no Ribatejo porque não podemos dizer que é somente em Azinhaga. Há outros lugares e essa rota deverá estar sinalizada em toda a região porque as pessoas para irem a Azinhaga têm que saber que em Azinhaga existe algo.
Aí já não será a Fundação José Saramago a fazer. Não pretendam que a Fundação faça tudo. Isso deverá ser uma reclamação da pessoas. Deverá ser a região a dizer: nós também temos cá Saramago. E então quando as pessoas virem as indicações da rota Saramago, casa Saramago, Fundação Saramago tenderão a procurar e a ir visitar.
Na região não há qualquer iniciativa que aproveite o facto de ali ter nascido o único Nobel português da literatura. A Fundação José Saramago tem sido contactada para participar ou colaborar com alguma iniciativa? Sinto muito mas as pessoas, as entidades da região, ainda não interiorizaram que têm o único Nobel português da literatura. Não temos qualquer petição ou pedido de câmaras municipais, juntas de freguesia, etc...acho que ainda não se deram conta que José Saramago é um valor cultural, moral e económico. Se isso tivesse acontecido já haveria anúncios nas estradas, por exemplo, a dizer: Benvindo. Está entrando na terra de José Saramago. Aqui nasceu o Prémio Nobel. Até nos restaurantes poderia ser utilizado esse factor. Fotografias. Um prato regional José Saramago...
Não vai tomar essa iniciativa de... Se é querido, é querido. Eu nunca vou pedir nada.
Mas tem tido iniciativas? Eu não peço. Ofereci soluções e algumas delas não foram atendidas. Eram soluções generosas. Dinamizar a Azinhaga, dinamizar a escola, com um projecto, com o meu envolvimento pessoal dentro do possível. Unir esforços. Uma pessoa que vá ler num encontro na biblioteca que é um local onde as pessoas se podem sentar e conversar. Que houvesse outras pessoas a trabalhar nas iniciativas...lamentavelmente não se conseguiu avançar.
Na vida de Pilar del Río há alguma aldeia? Nasci em Sevilha. Em criança vivi em Granada. Depois voltei a Sevilha. Não há nenhuma Azinhaga na minha vida. A minha mãe sim, era de uma pequena terra chamada Castril. Foi feito um acordo de geminação entre Castril e Azinhaga mas Castril era a terra de minha mãe.
Tem uma rua com o seu nome na Azinhaga. O que significa isso para si? Sabe de mais alguma rua a que tenha sido dado o seu nome? Não há mais nenhuma rua com o meu nome. Ninguém mais foi tão “maluco” ao ponto de pôr o meu nome numa rua. Fiquei estupefacta quando decidiram fazer isso! Não sei porque o fizeram.
Na altura foi-lhe explicado que era uma forma de lhe agradecerem por ter ajudado a reforçar a ligação de José Saramago à sua terra natal. Gosto dessa ideia e gosto que fique registada porque é verdade. Há muito tempo que ele não ia lá. Ele dizia que não queria ir porque já não conhecia lá ninguém. Era por humildade e nós conspirámos muito para que a apresentação do livro “As Pequenas Memórias” fosse na Azinhaga e ele só me pedia, “Pilar não me faças isso”. Ainda por cima estava doente.
Mas foi e o lançamento do livro foi uma festa enorme. Aquele dia, que era também o dia do seu 84º aniversário, foi um dia tremendo, tremendo. As pessoas todas à sua volta e ele, “não me largues por favor. Estão a dobrar-se-me os joelhos”. Foi horrível mas ele aguentou como um herói. Ele era um herói. (Saramago, bastante debilitado, chegou a Azinhaga dia 16 de Novembro de 2006 às 18 horas e depois de múltiplas iniciativas, ainda estava a autografar o livro já passava da meia-noite).
Quais as diferenças essenciais entre a maioria dos portugueses e dos espanhóis? Ou será que a globalização e a massificação já acabaram com quase todas as diferenças? Há alguma sobriedade portuguesa que se nota mais mas no fundo os grupos humanos são muito parecidos. As massas quando vitoriam uma equipa de futebol fazem-no da mesma maneira e enlouquecem da mesma maneira e os amigos quando se encontram comportam-se da mesma maneira. Eu não acho diferenças. Nós, seres humanos, somos muito parecidos. Tudo o que queremos é que gostem de nós. Queremos comer, ter a nossa casa, não passar frio ou calor demasiado. Somos iguais. Eu não gosto muito de nacionalidades. Somos pobres diabos todos unidos.
Em alguns sítios, para além de jornalista e tradutora, é também apresentada como escritora. O que tem editado? Tenho por aí algumas coisas mas sempre de jornalismo.
Alguma vez, quando vivia com José Saramago, pensou em escrever um livro? Houve uma época em que senti a necessidade de responder a um livro de José Saramago com um outro livro e acarinhei essa ideia mas logo me dei conta que não era possível. Encontrar um grande escritor num século é quase milagroso. Encontrar dois escritores numa casa é impossível.
Qual era o livro a que gostaria de ter respondido? Gostava de ter respondido a determinadas afirmações que Saramago faz no livro O Ano da Morte de Ricardo Reis. Pensei responder a Ricardo Reis. Mas noutra altura também pensei responder a Flaubert que escreveu Madame Bovary. Pensei um dia que podia escrever algo intitulado: “Sim senhor Flaubert, Madame Bovary é você”. Mas isto são coisas que se dizem e se pensam mas não se fazem.
Nunca mais pensou nisso depois do desaparecimento físico de José Saramago? Não. Um escritor numa geração já é difícil mas dois escritores numa mesma família, não dá.
Já saiu todo o espólio de Saramago da Fundação José Saramago? Disse a seguir à assinatura do protocolo com a Biblioteca Nacional: “Antes sabia onde estava tudo. Agora abro as gavetas e estão vazias”. Cumpriu-se uma vontade de Saramago e Portugal ficou mais rico mas para si, como foi? O desconforto mantém-se? A transferência de todo o espólio é um processo que vai durar alguns anos mas é claro que fica um vazio. Mas gostei do discurso de António Costa. Pareceu-me um discurso absolutamente corajoso e inteligente, principalmente quando se referiu à liberdade. José Saramago lutou sempre pela liberdade e a a liberdade de Saramago foi responsável pela doação do espólio.
(António Costa disse: “José Saramago pertenceu a uma geração a quem a escrita foi muitas vezes reprimida, a quem o Estado quis calar e censurar, libertar o espólio, doando-o à Biblioteca Nacional, é uma última homenagem à liberdade”)
Vai precisar de ir à Biblioteca Nacional de vez em quando para ver o que lhe falta agora nas gavetas? Não vou precisar assim tanto. Tenho isto tudo interiorizado. Antes era normal. Era entrar e encontrar-me com os papéis todos os dias. Era normal, como é normal que um filho conviva com a mãe. De repente, um dia, a mãe morre e o filho sente um vazio. O que vai são papéis. José Saramago era quem me amparava e quem protegia a minha vida. E claro, me sentia protegida, tudo bem. Quando já não está é quando sinto o vazio, claro.
Gosta de touradas? Assisti a algumas corridas de touros mas nesta altura da minha vida não gosto que nenhum animal sofra e até sou vegetariana. Prefiro comer alface ou grão a comer filhos de outros animais, de seres vivos.
E os seus amigos aficionados? Como se dá com eles? Não tenho só amigos aficionados. Tenho amigos toureiros. António Luís Spartacus foi o ano passado com a sua companheira a minha casa passar uma semana. Tenho muitíssimos amigos toureiros e sabem que eu não compartilho o gosto pelas corridas mas somos amigos na mesma. Claro que quando me falam que estão cultivando um campo para uma ganadaria eu digo que era melhor fazerem arroz. Eles dizem...lá estás tu, Pilar.
Está desanimada com o jornalismo? Eu nunca estou desanimada com o jornalismo. Estou desanimada com os jornalistas. Com os jornalistas que são demasiado respeitosos com as empresas que lhes pagam. Os jornalistas são necessários. Acho que os devemos respeitar. Mas eles contam pouco o que vêem. Contam mais o que se diz. Não gosto do jornalismo de declarações. Foi inaugurado e o fulanito disse e o outro respondeu...isso é só replicar o que foi dito. Não gosto. Gostava que os jornalistas fossem mais ousados, mais valentes. Gosto dos jornalistas que fazem jornalismo.
Consegue ser optimista? Não. Optimista nada. Consigo confiar no valor do ser humano. Acredito que valemos muito mais do que acreditamos valer. Que somos fortes. Que podemos gritar. Acredito que podemos vencer impérios e inclusivamente o sistema, se quisermos. Mas outra coisa é estarmos adormecidos. Adormecidos não vencemos nada.

A mulher que não esquece que tem uma rua com o seu nome na aldeia d’ “As Pequenas Memórias”

A jornalista e tradutora, Pilar del Río, presidenta do Conselho de Administração da Fundação José Saramago, foi escolhida por O MIRANTE como a Personalidade do Ano 2016. A distinção de O MIRANTE é uma forma de salientar a sua total dedicação à divulgação da obra do único Nobel da literatura portuguesa, com quem foi casada, e o facto de continuar a trabalhar para que o pólo da Fundação instalado na terra natal do escritor, a Azinhaga, concelho da Golegã, ganhe a importância que merece ter como centro cultural da região.
Nascida em Espanha, Pilar del Río tem nacionalidade portuguesa desde 2010, ano do falecimento de Saramago e tem o seu nome gravado numa rua de Azinhaga e no coração das gentes dali que não esquecem o seu papel na reaproximação do escritor às suas raízes.
Em 2006, José Saramago aceitou que o seu livro “As pequenas Memórias” tivesse lançamento nacional na sua terra, influenciado por Pilar del Río e foi também ela que o levou a mudar de ideias sobre a aceitação de lhe ser feita uma estátua em vida, para colocar em frente à sua casa memória de Azinhaga, algum tempo depois de ter recusado idêntico pedido feito por outra entidade de outro concelho.
Apesar de saber português, tendo traduzido livros de Saramago para espanhol, Pilar del Río opta por falar espanhol com os portugueses porque, explica, não quer “destruir” o nosso idioma. Pelo mesmo motivo pede para os portugueses falarem português com ela. “Penso que com um pouco de esforço nos conseguimos entender”, costuma sublinhar.
Natural de Sevilha é a mais velha de 15 irmãos tendo sido uma espécie de segunda mãe. Era jornalista quando em 1986 decidiu vir a Lisboa após ter lido O Ano da Morte de Ricardo Reis de José Saramago, para conhecer os locais da cidade descritos no livro. Encontrou-se com o escritor e embora não tenha sido amor à primeira vista foi nessa altura que começou a relação entre os dois. Pilar tinha 36 anos e Saramago 63. Casam dois anos depois e vão viver para Lanzarote em 1993. O resto da história é conhecida.

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