A agradável e muito cansativa arte de ser avô e como há castigos que vêm por bem
Pires da Silva, ex-presidente do Politécnico de Tomar, e João Filipe, historiador local
António Pires da Silva foi presidente do Politécnico de Tomar entre 2005 e 2010. Actualmente é membro do Conselho Geral e presidente do gabinete de apoio à presidência mas os seus netos vêem-no como um amigo e cúmplice e na brincadeira até lhe ofereceram um boné de taxista, tantas são as vezes que é ele a transportá-los para as mais diversas actividades. João de Matos Filipe, licenciado em História e autor do livro “Cultura e artes da pesca tradicional no rio Tejo em Ortiga – Mação”, tem os netos em Lisboa e os quilómetros que faz é para os ir ver. Em termos de altura separam-nos vários centímetros mas une-os a ponderação, o gosto pelo conhecimento e o facto de prezarem a liberdade.
João Filipe foi quadro superior da Segurança Social em Santarém. Quando os dias não lhe corriam bem entrava no carro para regressar a casa e nem ligava o rádio para poder ir a fazer uma auto-avaliação do seu desempenho. Depois entrava em casa, refugiava-se no escritório e punha-se a dedilhar a viola. Ao fim de dez ou quinze minutos, quando a música parava, a família já sabia que podia entrar e que ele estava pronto para conversar. “Não conheço a letra de uma canção mas adoro tocar viola e fazê-lo ajuda-me a descontrair”, explica.
Há muitas pessoas que em vez de dedilharem guitarras vão à pesca para descontrair. Pires da Silva teve oportunidade de poder recorrer a esse método mas desperdiçou-a. “Tinha um primo da idade da minha mãe que possuía uma drogaria em Lisboa. Ele era sportinguista e eu também dizia que era porque sabia que assim, quando ele ia à terra, me levava uma bola. Um dia, num mês de Agosto, já eu era adulto, estávamos na aldeia a passar férias e ele, que era um perdido pela pesca, convidou-me para ir com ele. Lá fomos para um pego daqueles da ribeira mas não correu bem. Fiz um lançamento e foi parar ao outro lado da ribeira. E assim acabou a minha vida de pescador”, confessa a rir.
Actualmente, para poder relaxar basta-lhe o momento em que os netos se vão embora para as suas casas. “Esta profissão de avô é muito exigente. Cheguei a tomar conta de sete mas agora dois já são adultos e estão em Lisboa. Há sempre movimento em casa porque têm todos horários desencontrados e uns andam na música, outros na ginástica... à mesa é uma discussão pegada e eu não me posso meter senão também apanho”, conta, bem disposto. Depois resume o que sente. “Quando eles chegam é uma alegria do arco-da-velha. Quando eles se vão embora é cá um descanso...”.
Quem pensa que são só as pessoas mais gordas que têm problema em encontrar roupa no pronto-a-vestir é porque ainda não pensou nos mais baixos como Pires da Silva, que diz a brincar que já teve um metro e sessenta e cinco, e nos mais altos como João Filipe, que mede um metro e oitenta e nove.
Quando trabalhava em Lisboa, na antiga caixa de previdência da indústria, João Filipe não encontrava calças que lhe tapassem as canelas até aos pés e tinha que recorrer a um alfaiate. Com as camisas lá se ia remediando mas como para terem os braços compridos eram todas compridas, ele andava muitas vezes com a fralda de fora.
“Por causa das camisas serem compridas arranjei um jeito de andar sempre a colocar a mão no cinto para ver se estava bem arranjado”, conta. E foi por causa disso que foi castigado pelo presidente da caixa que, ao visitar o serviço, o viu fazer o gesto e pensou que ele estava com a mão no cinto numa atitude de relaxamento”.
“Foi em 1966 e o castigo foi a maior prenda que provavelmente me deram no plano profissional. Fui transferido para a sede, que era na Alameda D. Afonso Henriques, e para o atendimento ao público a que chamavam o ‘informativo’. Para falar com as pessoas e ajudá-las a resolver os seus problemas lá dentro, tive que aprender tudo e mais alguma coisa de todas as áreas. Foi um enriquecimento enorme em termos pessoais e profissionais que me fez crescer”, refere.
Pires da Silva não foi castigado mas castigou um colega do liceu por causa de uma peça de vestuário. “Eu estudava em Coimbra e alguns colegas gozavam comigo por eu ser alentejano. Um dia a minha mãe obrigou-me a levar um capote alentejano e foi um sarilho. O meu colega Carlos Manique começou a dançar à minha frente no gozo e eu, que tinha umas botas com protectores à frente, dei-lhe uma canelada que ele teve que ser assistido no gabinete médico. Foi remédio santo. Nunca mais se meteram comigo”.
A pena de pavão baptizado como peru que fez rir o austero escritor José Régio
Pires da Silva fez exame no Liceu de Portalegre e um dos professores do júri na prova oral foi o escritor José Régio que era conhecido por ser uma pessoa que andava normalmente de semblante carregado. O exame correu bem mas ficou marcado pelo facto de ter sido um dos raros momentos em que foi possível ver o austero professor sorrir.
“Nasci na aldeia de Figueira e Barros, concelho de Avis. Quando tinha dez anos fui fazer o exame de admissão ao liceu a Portalegre. Fui o segundo rapaz da minha aldeia que continuou os estudos após a quarta classe. Fui com uma prima minha que ainda hoje vive na aldeia. Naquele tempo o exame de admissão era uma coisa a sério. Nada parecido com estas brincadeiras que andamos aqui hoje a ver”, refere o ex-presidente do Politécnico de Tomar.
Naquele tempo os alunos tinham que fazer uma prova escrita com um ditado, uma redacção, uma prova de matemática e um desenho. E depois disso eram submetidos a uma prova oral, com leitura e interpretação de um texto e resolução de problemas de matemática.
“A prova oral tinha um júri com três professores. Eu calhei num que era presidido pelo José Régio, cujo nome, naquela altura, não me dizia nada. Logo por azar esqueci-me do meu livro de leitura e teve que ser a minha prima a emprestar-me o dela. Quando o José Régio me disse para escolher uma lição do livro e ler, aconteceu algo que acabou por marcar o exame todo”, conta Pires da Silva.
Naquele tempo as meninas gostavam de colocar flores, folhas e penas entre as páginas do livro e quando o examinado abriu o livro da prima deparou-se com uma pena. “Era uma pena linda. O José Régio pegou no livro e perguntou-me de que ave era aquela pena. A pena era de pavão mas eu disse que era de peru. Foi um espectáculo aquele exame. Foi rir, até ao fim. Involuntariamente pus o José Régio a rir, coisa que ele não fazia habitualmente”.
O dia em que João Filipe e os colegas entraram de barco na escola
Natural da aldeia de Ortiga, Mação, situada à beira Tejo, João de Matos Filipe é o mais novo de quatro irmãos e foi com eles que aprendeu a nadar e a pescar. Nas suas memórias de infância o rio está sempre em pano de fundo.
“Na minha aldeia, quando andávamos na escola, fazíamos todos os dias o caminho de Ortiga para Mação a pé, que são 4 quilómetros. Depois atravessávamos o Tejo na barca do Tio Vitorino para Alvega para assistirmos às aulas no colégio de Santo António até às 5 ou 6 da tarde. Depois fazíamos o caminho inverso”, conta.
Como se pode imaginar, nem sempre era fácil chegar à escola porque o rio não era o mesmo todos os dias, nem em todas as estações do ano. “Saíamos de Ortiga entre as sete e as sete e meia da manhã e as aulas começavam às oito e meia. O barqueiro costumava fazer a travessia por volta das oito. Um dia chegámos à barca e o rio tinha subido de tal forma que já chegava à estação nova. O Tio Vitorino disse que com aquelas condições não passava ninguém”.
Havia informações que com a cheia o rio tinha inundado o Colégio em Alvega e as crianças, com a sua natural curiosidade, queriam ir ver com os seus próprios olhos, não aceitando a decisão do barqueiro.
“Insistimos tanto, tanto que ele acabou por ceder. Metemo-nos todos na barca, muito sossegadinhos e ele levou-nos ao colégio de Alvega. O portão estava aberto para não partir com a força da água e em vez de entrarmos a pé como nos restantes dias, entrámos de barco até junto da grande escadaria que dava acesso ao primeiro andar. Foi uma aventura de todo o tamanho”, recorda João Filipe.
A competência do barqueiro, a forma como se relacionava com as crianças e o facto de ao longo dos anos nunca ter havido qualquer acidente, ficou na memória de todos e está assinalada no cais de Alvega.
“Nos encontros de antigos alunos costumamos homenagear sempre alguém da área pedagógica e alguém da área não pedagógica. Há dois anos homenageámos o barqueiro e lá está uma placa no cais de Alvega com o nome do Tio Vitorino que era um homem mais alto que eu, tinha um coração imenso e sabia como lidar connosco”, sublinha.