Guardador de vacas e coleccionador de prémios
Júlio Cordeiro Guilherme trabalha há 56 anos na lezíria e foi o campino escolhido para ser homenageado este ano na Feira de Maio, em Azambuja, na manhã de domingo. Aos 69 anos este guardião de uma arte em vias de extinção continua a coleccionar distinções em emblemáticas festas ribatejanas.
Imagine viver sem relógio e sem calendário, trabalhar praticamente 365 dias por ano e só ter vacas, bois e cavalos como companhia. É assim a vida de um dos mais antigos campinos que trabalha na lezíria e que nos recebeu na sua “segunda casa”. Júlio Cordeiro Guilherme trabalha há 56 anos na lezíria e, aos 69 anos, foi o campino escolhido para ser homenageado na Feira de Maio, este domingo pelas 9h30, em Azambuja, depois de ter sido também já distinguido na Festa da Amizade e Sardinha Assada de Benavente, no Colete Encarnado de Vila Franca de Xira e nas Festas do Barrete Verde em Alcochete.
Nos últimos oito anos tem trabalhado de dia e de noite em Sesmaria da Santana, concelho de Benavente, e a sua única companhia são os animais que tão dedicadamente trata. Nascido em São Vicente do Paúl, concelho de Santarém, e criado em Sobral de Porto Seixo, concelho de Benavente, Júlio é filho e genro de campinos, daí o seu gosto especial em tratar de vacas mansas e cavalos. Na maior parte da sua vida foi maioral de vacas mansas, tendo começado quando ainda era muito jovem. Júlio conta que “gostava tanto daquilo” que chegou muitas vezes a sair da escola e sentar-se no chão a meio do caminho para fazer os trabalhos de casa para que pudesse ajudar o seu pai.
Se aos seis anos já se destacava a guardar vacas bravas, isso já não acontecia na escola. “Eu escrevia 40 palavras e dava 41 erros”, confessa. Mas se as matérias fossem de história, geografia, matemática “já fazia melhor figura”.
A memória já lhe prega algumas partidas, mas não se esquece dos animais já lhe passaram pelas mãos. “Tive uma égua que montei 22 anos. Ia a Santarém, Azambuja, Vila Franca e era sempre para ganhar, tanto nas conduções de cabrestos como nas provas de perícia dos fardos. Entretanto, tive de deixá-la pela idade. No último primeiro prémio que ganhou em Santarém já ela tinha 22 anos. Tive outra que era tão má que se eu mudasse de camisa ou tirasse o colete ela mandava-me logo ao chão”, conta.
A carta paga pelo patrão para não andar à chuva
Sem férias e a trabalhar todos os dias de manhã à noite, o campino confessa que os seus poucos tempos livres são passados com a família. O seu dia começa bem cedo, pelas 8h00. “Tenho logo 13 cavalos, 26 vacas e 2 bois à minha espera para comerem e agora tenho ali um bezerro para dar de mamar”, diz. Quando chega a hora de almoço é Júlio que prepara todos os dias a sua iguaria que é criteriosamente feita em lume de lenha numa panela preta. Uma refeição que é sempre acompanhada por uma “pinga” de vinho.
Júlio aprendeu cedo a montar cavalos, a andar de bicicleta e a andar de motorizada mas foi só depois dos 40 anos é que tirou a carta de condução, graças ao seu antigo patrão que a pagou propositadamente para que ele pudesse deslocar-se “sem apanhar chuva”.
É nas festas que se juntam os campinos e Júlio não é excepção à regra. Daí que, quando pode, vai e participa nos concursos. “Só em Santarém já lá vão mais de 50 anos. Começei a ir lá com 13 anos. Só falhei um ano ou dois. Não sou dos mais velhos, mas actualmente sou dos campinos que frequenta há mais anos a feira”, adianta. O campino diz que quando vai às festas costuma ir numa das suas duas éguas, a Indiana, com 4 anos, ou a Catraia, com 10 anos.
Júlio, que é dos campinos mais antigos do país que ainda trabalha na lezíria, não tem dúvidas que essa arte está em vias de extinção. “Hoje, os novos campinos trabalham só das 8h00 às 17h00 e não querem trabalhar mais, se os animais não comeram, comessem”, confessa.
Companhia especial do campino
Júlio conta que no dia-a-dia costuma ter uma companhia especial. Um rapaz de 16 anos, de Benavente, filho e neto de campinos, que vai até à propriedade nos seus tempos livres. “Passa aqui o dia inteiro comigo. Sai da escola, agarra na bicicleta e vem para aqui”, revela. O campino diz que o rapaz quer seguir as suas pisadas, mas admite que “ele ainda precisa de ter um bocadinho de calo” por ser muito novo. “Às vezes estamos a fazer uma coisa que não está a correr bem e não podemos forçar mais. É preciso deixar andar e começar de princípio”, afirma.