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Não há praxe que justifique actos de humilhação

Não há praxe que justifique actos de humilhação

Professor e investigador Miguel Castanho foi homenageado pelo Politécnico de Santarém

Miguel Castanho é investigador e há muito que se dedica a procurar respostas através da ciência. Natural de Santarém, continua a viver na cidade onde nasceu apesar de trabalhar em Lisboa. Depois de ter sido vice-presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia regressou ao que mais gosta de fazer: ser professor e investigador. Diz que a saída de algumas instituições da cidade tiraram-lhe importância e identidade. Sobre as praxes diz que os fins nunca justificam os meios

Miguel Castanho dá aulas de Bioquímica na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. De vez em quando gosta de mudar de agulha e experimentar fazer outras coisas. “Ficamos mais enriquecidos quando bebemos de outras experiências”, confessou o investigador a O MIRANTE no final de uma homenagem que recebeu por parte do Instituto Politécnico de Santarém, onde também proferiu uma oração de sapiência, intitulada “Apesar de tudo a vida é feita de moléculas”. Um talento académico que se doutorou aos 25 anos e hoje, aos 50, é um dos mais reputados cientistas nacionais na área da bioquímica.

P. O que significa para si esta homenagem na sua terra natal?

R. É um reconhecimento pelo meu trabalho. É uma honra e apraz-me muito que as pessoas se apercebam do meu trabalho e reconheçam o seu valor. Esta homenagem tem um significado especial por ser na minha cidade, porque nasci aqui e mesmo trabalhando em Lisboa vivo cá. Sou um produto de Santarém e tenho um carinho muito especial pela minha terra.

P. Sempre que é convidado, aceita participar nestas iniciativas?

R. Sempre que posso participo porque considero que estas iniciativas são muito importantes uma vez que marcam o ritmo, vivência e identidade das instituições. No princípio da carreira não nos apercebemos tão bem da importância destas iniciativas. Só mais tarde, depois de passarmos por cargos directivos em instituições, é que tomamos consciência de como estas cerimónias são importantes.

P. Um curso superior continua a ser uma boa aposta para os jovens?

R. É bom na medida em que forma os indivíduos pessoalmente e também para a cidadania. Também é uma boa aposta porque é um facto que as pessoas com mais formação académica ocupam lugares melhor remunerados. Não quer dizer que a pessoa, por ter um curso superior, tenha direito a uma benesse para ocupar lugares melhor remunerados. Mas, tendencialmente, as pessoas com mais formação acabam por ocupar lugares melhor remunerados. Pode não acontecer no início da carreira mas acaba por acontecer.

P. Que mensagem deixa aos jovens estudantes que estão agora a ingressar no ensino superior?

R. Não se assustem porque a vida é feita de dificuldades mas as dificuldades estão lá para serem vencidas. Todas as gerações anteriores tiveram angústias, problemas e obstáculos por ultrapassar mas conseguiram vencê-los e a formação superior que fizeram compensou. Se recuar ao meu tempo de universitário o país era radicalmente diferente e a vida era muito mais difícil para um estudante que ingressava no ensino superior. Se um terço dos alunos da minha turma do ensino secundário ingressou no ensino superior foi muito. Nessa época nem todos conseguiam entrar no ensino superior porque não havia vagas. Hoje isso não acontece. Podem não entrar no curso que querem mas conseguem entrar sempre no ensino superior.

P. Qual é a importância para Santarém de ter um instituto politécnico?

R. É imensa, para Santarém e para qualquer cidade. Já fiz avaliações para a Agência de Acreditação e Avaliação do Ensino Superior e avaliei sobretudo cursos de Bioquímica. Íamos aos vários locais onde existem cursos de Bioquímica e visitávamos os vários sistemas; entrevistávamos os alunos e os professores. Em muitos casos havia uma ligação ao sistema politécnico e era evidente que o politécnico criava a oportunidade de formação para pessoas que não podiam deslocar-se do local onde vivem. Um instituto politécnico cria uma oportunidade de desenvolvimento para as pessoas que naquela região querem progredir com os seus estudos. Um politécnico faz avançar o país através do aumento dos níveis de educação. É muito importante para as economias locais. A não existência de um instituto politécnico em Santarém seria um desastre para a cidade e para a região.

P. Faz sentido haver dois politécnicos no distrito [Santarém e Tomar]?

R. O nosso país é pródigo em situações que são difíceis de entender mas cabe às instituições trabalhar sobre elas. Por exemplo, Lisboa tinha três universidades e neste momento tem duas. Houve uma fusão entre as duas maiores universidades de Lisboa, a chamada Universidade Clássica e a Técnica. Esta fusão deu-se por iniciativa de ambas as universidades, não foi forçada por ninguém. As duas instituições, dialogando, notaram que eram muito complementares e que juntas formavam um conjunto mais completo do que as duas separadas e retiravam recursos de uma série de potencialidades por sinergia. O mundo e as organizações podem redesenhar-se e não têm que estar à espera de ninguém para o fazer. Portugal ganhava mais se tivesse uma sociedade civil mais activa.

Praxes: “Não há razão nenhuma que justifique que uma pessoa humilhe outra”

P. Qual é a sua opinião sobre as praxes académicas?

R. Não há praxe ou razão nenhuma que justifique que uma pessoa humilhe outra, seja a que pretexto for e na praxe também não. Os fins nunca justificam os meios. Não há noção de integração, de companheirismo, de rituais de tribo, que leve um ser humano a exercer violência, física ou psicológica, sobre outro ser humano. Recuso-me por completo a aceitar isso.

P. Há exageros nas praxes académicas?

R. Testemunhei exageros nas mais diversas formas. Já estive na direcção da Faculdade de Medicina e foram proibidas as praxes mas fora da escola não se consegue controlar. No entanto, podem fazer-se praxes que passem por seminários, workshops, jantaradas e convívios. Desde que se respeitem uns aos outros, que seja num espírito de ajuda e não seja no espírito de um sobressair à custa do outro. Como a nossa tradição é das praxes no sentido negro do termo nunca fui muito fã de praxes.

P. O que é que falta a Santarém?

R. Falta mais entrega a uma vida cultural; falta mais sentido de pertença a uma economia local. Um maior sentido de identidade levaria as pessoas a respeitarem mais a actividade económica local, o comércio local...

P. Os escalabitanos não se interessam pelas actividades culturais que ocorrem no concelho?

R. A adesão não é muito grande e incluo-me nesta crítica. Mais público cultural levaria a uma oferta cultural maior e diversificada e isso traria de arrasto um maior sentido de identidade e puxaria por vários sectores de actividade e pelo comércio local. Também faz muita falta tudo o que nos tiraram, os serviços da administração do Estado que foram sugados por Lisboa, que levou serviços como o Banco de Portugal e a Escola Prática de Cavalaria, e que esvaziaram a cidade e lhe tiraram muito interesse e identidade. Estas instituições que são âncoras, que puxam muita gente, são muito importantes para uma cidade. Esse esvaziamento de algumas instituições tornou Santarém mais pobre. Também fazia falta mais dinheiro porque foram feitos alguns desvarios de gastos de dinheiro público em determinadas fases da administração de Santarém que deixaram o concelho nas lonas. Agora o dinheiro está difícil de repor.

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