Santarém deve prevalecer sobre os ódios e interesses pessoais
No rescaldo das autárquicas em Santarém, Ramiro Matos, advogado, ex-vice-presidente da câmara, ex-dirigente do PSD, fala do processo eleitoral com duras críticas à liderança concelhia do seu partido, a quem sugere que saia de cena. Recorda também o tempo em que trouxe Moita Flores para conquistar a Câmara de Santarém e a ruptura entre ambos poucos anos depois. Dá ideias para a cidade e diz que o socialista Rui Barreiro foi o melhor candidato que o PSD podia ter enfrentado nestas eleições.
P. Foi um dos homens do núcleo duro da candidatura de Ricardo Gonçalves à Câmara de Santarém em 2013 e em 2017. Nestas últimas eleições autárquicas esperava um resultado tão bom, com maioria absoluta, tendo em conta as divisões dentro do PSD?
R. O resultado eleitoral de 2017 não me surpreendeu. Tinha a certeza que as pessoas, acima de tudo, acreditavam no Ricardo Gonçalves. As questões partidárias dizem pouco às pessoas.
P. Mas essas divisões internas chegaram a colocar em causa a recandidatura de Ricardo Gonçalves.
R. Sim. O presidente da concelhia ameaçou o presidente Ricardo Gonçalves que, se não aceitasse determinadas condições, não seria candidato.
P. Foi uma questão de lugares nas listas?
R. Sim. Não vi uma disputa de ideias para Santarém, que seria legítima, mas sim de lugares. Em que se impuseram lugares na câmara – o segundo, o quinto, o sexto – e a assembleia municipal toda, quando inicialmente estava previsto de outra forma. Nenhum dos elementos da assembleia municipal cessante foi convidado pela comissão política concelhia para continuar.
P. Sente-se magoado por o partido não o ter convidado, já que foi o líder da bancada do PSD na assembleia municipal no último mandato?
R. Não me sinto magoado porque o partido é muito mais do que as pessoas que a dado momento estão à frente dele. Fui presidente da concelhia do PSD durante seis anos, quando conseguimos conquistar a câmara, e fui vereador da oposição. Há aqui uma série de pessoas que chegou há meia dúzia de anos ao partido e não sabe das dificuldades que tivemos antes de 2005, quando estávamos na oposição.
P. Quer dizer com isso que os actuais dirigentes da concelhia do PSD tiveram a papinha toda feita nos últimos processos eleitorais?
R. Não só os dirigentes. As pessoas que estão neste novo mandato a desempenhar cargos, nomeadamente autárquicos, chegaram numa altura em que as coisas são muito fáceis e em que, por força do Ricardo Gonçalves, o PSD continua no poder. Neste momento, ser dirigente do PSD é muito mais fácil do que foi na minha altura, com o partido na oposição.
P. Acha que o presidente da câmara pode vir a confrontar-se com oposição na assembleia municipal por parte da bancada do seu partido?
R. Tenho a certeza que não. Muito mal seria que houvesse algum tipo de oposição partidária dentro dos órgãos autárquicos. A partir das eleições as coisas têm que estabilizar.
P. Por vezes os piores inimigos políticos estão dentro do próprio partido…
R. Infelizmente, o PSD tem sido pródigo nisso. As pessoas valorizam ódios e interesses pessoais sobre aquilo que é o interesse da cidade, principalmente, e também do partido. Espero que isso não transpareça para a actividade autárquica. Muito mal seria. Devemos estar todos por Santarém. O que se passou antes das eleições tem que ficar arrumado. Houve gente a semear ventos e a colher tempestades, mas agora que isso passou vamos tentar reconstruir.
P. Como analisa o facto de o candidato do PSD, José Gandarez, não ter conseguido ser eleito presidente da assembleia municipal, nem sequer ter feito o pleno de votos dos elementos da sua bancada?
R. Acima de tudo há aqui uma ineptidão de negociação. Estive nas negociações da assembleia municipal de há quatro anos. As coisas foram feitas de forma discreta. Quando não se tem maioria absoluta tem que se negociar com as outras pessoas. E para isso há que reunir algumas condições.
P. Que condições são essas?
R. Tem que se conhecer as pessoas, ter contacto com elas. Porque, independentemente de as pessoas serem de outros partidos, temos que manter uma boa relação com elas…
P. A verdade é que José Gandarez nem com os votos todos da sua bancada contou. E aí não devia ser necessário negociar.
R. O que me parece é que o processo de constituição das listas em Santarém deixou algumas nódoas negras e deixou pessoas um pouco indignadas com a atitude da concelhia.
P. Se tivesse assento na assembleia municipal teria votado nele?
R. (risos) Se tivesse assento na assembleia municipal votaria na lista apresentada pelo meu partido.
P. A escolha do deputado Nuno Serra para número dois da lista para a câmara foi uma boa opção ou a opção possível no sentido de gerar consensos?
R. Foi a opção possível para gerar consensos. Nuno Serra é uma pessoa competente, no entanto, em 1018 militantes do PSD no concelho de Santarém acho que não é preciso que seja a mesma pessoa a ser vereador, presidente da distrital, deputado, vice-presidente da bancada parlamentar. Até porque Nuno Serra também tem família e deve ter outras coisas para fazer. É uma acumulação muito grande.
P. O executivo não fica fragilizado pelo facto de Nuno Serra não assumir o cargo na vereação a tempo inteiro, optando por prosseguir na Assembleia da República?
R. Acho que não. A haver alguma fragilidade seria na medida em que o Nuno Serra não poder ter tempos distribuídos. Para isso teria que abdicar de ser deputado…
P. Essa não seria a opção mais correcta, tendo em conta que foi em segundo lugar na lista?
R. Por Santarém seria. Quem se candidata é para assumir. E quando se constituiu a lista não havia certeza que teríamos maioria absoluta e que se elegeriam cinco vereadores. Colocar à partida uma pessoa que não quer exercer o mandato a tempo inteiro está automaticamente a tirar o lugar a outra pessoa que o pode exercer a tempo inteiro. O PSD só pode ficar com quatro autarcas a tempo inteiro, o que no meu entender é pouco para a Câmara de Santarém ser bem gerida. Devem ser pelo menos cinco. A fragilidade dessa situação pode vir daí.
Não há soluções milagrosas para o centro histórico de Santarém
P. A maior parte dos moradores do centro histórico de Santarém está descontente com a política autárquica. Tem uma solução milagrosa para o centro histórico?
R. Soluções milagrosas não existem, embora exista muita coisa que pode ser feita. O primeiro problema do centro histórico é uma questão de mentalidade, dos proprietários, dos comerciantes e nossa, enquanto consumidores, que preferimos ir às grandes superfícies. O centro histórico precisa de voltar a estar na moda. As pessoas funcionam por estímulos, por experiências e aquela zona tem que voltar a proporcionar esse estímulo.
P. O centro histórico tem cada vez menos residentes. Assim não há estratégia que vingue.
R. Tem que se criar uma bolsa controlada de arrendamentos; tem que haver expropriações se for necessário, por parte da câmara municipal, para fazer reabilitação; tem que se intimar os proprietários que não cuidem das suas casas a fazê-lo. E, acima de tudo, o mercado de arrendamento quer de lojas quer de edifícios tem que ser controlado para que não deixemos de ter comércio no centro histórico. Porque os proprietários pedem um balúrdio pela renda de uma loja.
P. Acha que Ricardo Gonçalves vai ter força política para intervir no Campo Infante da Câmara neste mandato?
R. O Campo Infante da Câmara deve ficar longe da especulação imobiliária. Aliás, nem acredito sequer que aquele espaço possa vir a ser alvo de especulação. Vendeu-se aquilo durante anos como o filé mignon do ponto de vista da especulação mas a verdade é que mesmo a construção que lá existe não se consegue vender.
P. O que espera para o futuro desse espaço nobre?
R. Espero que venha a ser o filé mignon da cidade em termos sociais e de usufruto público. Não pode vir a ser outra coisa. Tem que ser um jardim, ter esplanadas, ser um parque de cidade.
P. Não será uma réplica do que se pretendia para o Jardim da Liberdade?
R. Não. O Jardim da Liberdade é uma componente diferente. E acho que os espaços de usufruto público nunca se esgotam. Quanto mais espaços públicos de vivência possamos ter, de preferência com verde, melhor para a cidade. Aliás, a antiga EPC também tem lá muito espaço para o desporto informal e lazer que pode ser aproveitado.
P. Uma cidade desportiva no Campo Infante da Câmara, para si, não deve ser solução.
R. Não faz sentido estar a queimar aquele espaço com isso. Considero que onde deve haver uma clara aposta nas infraestruturas desportivas que ainda faltam é no CNEMA, como defende o presidente Ricardo, e na EPC, onde já há um campo de râguebi e um pavilhão.
P. O que pensa da rotunda (do Largo Cândido dos Reis) que se vê da janela do seu escritório?
R. É um enorme espaço relvado que tanta despesa deve dar pela manutenção que necessita. É um conceito completamente errado de cidade. Ou seja, não temos nenhum espaço verdadeiramente verde de usufruto e depois temos um espaço verde no centro da cidade onde ninguém pode ir, porque senão arrisca-se a ser atropelado no meio da rotunda. É um erro crasso e acho que chegou o tempo de rever isso.
Os advogados e a política
P. Muitos deputados na Assembleia da República pertencem a escritórios de advogados, o que pode levar a uma certa promiscuidade entre as funções políticas e profissionais. É advogado, uma pessoa influente na política regional e local. Sente que precisa da política para desenvolver a sua profissão? E como é que vê esta ligação dos advogados à política?
R. Acho que os advogados não têm que ser mal vistos e muito menos na política. Os advogados serão a classe profissional com mais aptidão para o exercício da política pelo à vontade que temos de ter na escrita, na oralidade e no discurso e, sobretudo, pelo facto de conhecermos a lei. Acho que um advogado livre e consciente tem que ter o constante desafio de participar na política.
P. Mas por vezes essas duas facetas podem conflituar.
R. Admito que existam muitas pessoas, e de muitas profissões, a fazerem essa mistura. No meu caso, estaria muito mais confortável completamente fora da política, até pela desconfiança generalizada que há sobre as pessoas que estão na política. Depois, há muita gente que pensa que para uma pessoa exercer direitos de cidadania tem que ser compensada de alguma forma e não admite que possa haver pessoas como eu, que perdem tempo com a política, com associações e voluntariado sem procurar nada em troca. Antes pelo contrário, por vezes pago do meu bolso para fazer essas coisas. Não se pode confundir as pessoas que dão muito de si para as causas públicas com as pessoas que estão nas causas públicas para se aproveitar.
“Moita Flores foi um tiro no escuro”
P. Também esteve na génese da candidatura de Moita Flores à Câmara de Santarém em 2005. O que pensa hoje dessa opção? Arrependeu-se? Costuma pensar nisso?
R. O tempo já tratou de exorcizar esses problemas, esses males ou esses pecados de 2005. Na altura, estava empenhado em arranjar uma pessoa que pudesse ganhar a câmara para o PSD. E mais arriscado ainda foi ir buscar uma pessoa de fora.
P. Porquê?
R. Corremos um risco muito grande. Arriscamo-nos a ter contra nós pessoas do partido que também querem ser candidatas. E foi o que aconteceu. A opção de ir buscar uma pessoa de fora e que era independente foi difícil. Cheguei a sentir-me sozinho nessa escolha, embora tivesse o apoio da liderança nacional do partido. Foram tempos aliciantes. Santarém tinha o PS no poder há praticamente 30 anos.
P. Era um cenário complicado.
R. Quando trazemos uma pessoa destas, quando o contacto que tínhamos anteriormente era ocasional e esporádico, corremos sempre grandes riscos porque não sabemos como a pessoa é.
P. Foi um tiro no escuro?
R. Sim, é como quando compramos melões. Só depois de os abrir é que sabemos como estão. Foi bom ganhar a câmara, acho que se fizeram coisas boas desde 2005 - eu estive na primeira parte desse mandato - mas também se fizeram coisas muito más.
P. Como começou a ruptura com Moita Flores que levaria à sua saída da câmara em 2008?
R. Começou com entendimentos diferentes sobre as coisas. Foram sobretudo questões políticas, de opção. Não havia uma divergência pessoal entre nós, éramos pessoas diferentes, com visões diferentes para Santarém, conforme fui percebendo com o andar do tempo. Mas havia coisas que eu não conseguia de forma alguma tolerar.
P. O quê, por exemplo?
R. Opções de estratégia, opções de investimento, de obras, até de figuras contratuais…
P. Também acha que havia demasiadas festas, como diziam alguns críticos?
R. Havia. Lembro-me de defender que, se havia concertos, as pessoas deviam pagar. E o presidente de então achava que não…
P. Ouviam-se também críticas a negócios e gastos milionários…
R. No mandato de 2005 a 2009 tínhamos os pelouros muito distribuídos e cada qual estava nos seus pelouros. Saí algum tempo antes da compra da Escola Prática de Cavalaria (EPC) mas ainda acompanhei algumas reuniões. Não consegui perceber como é que a câmara aceita ficar com a EPC por um valor completamente exorbitante de 16 milhões de euros.
P. Que solução defendia?
R. Sugeri na altura que ficássemos com a EPC por um preço simbólico, para que não ficasse ao abandono, e que depois, em função do aproveitamento urbanístico que pudesse ser feito, dividiam-se os proveitos com o Estado. Na altura estabeleceram-se contrapartidas entre o Governo e alguns municípios, entre os quais Santarém, devido à não construção do aeroporto internacional de Lisboa na Ota e a compra da EPC estava nesse processo. Mas comprar um edifício por um preço acima do valor de mercado é uma contrapartida?
P. A verdade é que a Câmara de Santarém já ocupa há uns anos a EPC e também o antigo presídio e não pagou um cêntimo até agora por isso.
R. Sim mas se não fosse a câmara o Estado tinha ali um património completamente degradado e que tinha perdido valor.
P. E os novos tribunais teriam provavelmente ido para outro lado…
R. Sim, corria-se o risco de os tribunais terem ido para outras cidades que também tinham edifícios e terrenos para os instalarem. E a verdade é que o Estado não tem perdido por a câmara estar a ocupar a EPC. Penso que o Estado tem que negociar com a câmara e reduzir o preço. Ainda tenho esperança que a justiça naquela compra seja reposta.
P. A megalomania do anterior presidente está na génese das vossas divergências?
R. Sim, foi um dos factores. Acho que todos devemos ter um sonho um bocadinho maior, mas o anterior presidente pecava por ter megalomania em questões não essenciais. Eu não conseguia conceber que tivéssemos tanto investimento para fazer e patrocinássemos, por exemplo, festas nas freguesias todas as semanas com a contratação de artistas. Tenho o maior respeito pelas festas das freguesias mas essa não é a minha política.
P. Mas é uma política que rende votos.
R. Quando estamos nos cargos há que ter a capacidade de fazer as coisas que são necessárias. Naturalmente, quando se está na política é para voltarmos a ser eleitos. Mas quem faz obra, quem está próximo dos eleitores, quem é competente e sério tem sempre os votos dos eleitores renovados. Viu-se pelo Ricardo Gonçalves, que mesmo não tendo a oportunidade de fazer grande obra durante quatro anos foi reeleito. E não andou a fazer festas nem andou a distribuir benesses.
P. Ricardo Gonçalves não beneficiou também do facto da candidatura do PS ser um pouco mais do mesmo?
R. Ricardo Gonçalves beneficia em primeiro lugar dele próprio. É visto como uma pessoa séria, com experiência autárquica, que anda pelo concelho, que ouve as pessoas. Mas acho que, do ponto de vista da candidatura do PSD, Rui Barreiro seria um dos melhores opositores possíveis. Rui Barreiro é uma pessoa que, na comparação subjectiva no terreno, o Ricardo bate aos pontos em termos de empatia e de proximidade com as pessoas. Além disso, é a única pessoa no concelho que no final do primeiro mandato conseguiu perder a câmara. Ou seja, já tinha o peso de uma derrota no currículo.
P. Como acha que Moita Flores vai ficar conhecido na história da cidade?
R. Acho que esse epíteto ele já tem que é o Moita Festas. Não será mais do que isso.
Gostava de ser presidente de junta mas não descarta a presidência de câmara
P. É um homem dos bastidores. Há anos, em entrevista ao nosso jornal, dizia que gostava de um dia ser presidente de junta. Mantém essa ideia?
R. Mantenho sim senhor. Quando, não sei. Actualmente não teria tempo. Tenho uma vida profissional muito activa.
P. É difícil acreditar que um homem que foi vice-presidente da câmara, que viveu o poder de governar o município, não tenha a ambição de ser presidente da câmara.
R. Essa é uma visão redutora. A política não tem um sentido único e ascendente.
P. Mas a prática mostra que na maior parte das vezes é assim que acontece.
R. Ser presidente de junta é realmente praticar a política difícil. Ser deputado não custa nada. Um deputado está sentado na Assembleia da República, move as suas influências, faz umas reuniões e a política passa por isso. O presidente de junta está junto dos seus eleitores, de quem recebe por dia, se calhar, 20, 30 ou 40 reclamações. E não ganha praticamente nada.
P. Quer dizer então que ser presidente de câmara não está nos seus horizontes?
R. Neste momento não está nos meus horizontes, até porque sei que nos próximos oito anos a câmara municipal está muito bem entregue. Depois desses oito anos, e se a lei de limitação de mandatos não mudar, pode ser uma coisa que venha a equacionar. Aí já tenho 50 anos e talvez esteja mais disponível.
A praia que foi Tejo abaixo
P. Explique lá por que razão a praia na Ribeira de Santarém foi Tejo abaixo dois anos depois de ter sido criada?
R. O projecto da praia foi apresentado por uma empresa para aquela zona. Não fomos nós que o pensámos. Era um projecto engraçado mas se calhar demasiado ousado para Santarém. Acho que não foi bem percebido. A intenção era levar pessoas à Ribeira. Não sei por que razão o projecto não seguiu após a minha saída da câmara, em 2008.
P. Moita Flores também não morria de amores pelo projecto.
R. Penso que o presidente da altura deixou de gostar do projecto porque já existiam algumas incompatibilidades entre nós. Foi uma coisa que ele quis empurrar para cima de mim, quando toda a gente tinha concordado. Entretanto saí da câmara e o projecto foi mesmo por água abaixo.