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A última vendedora do Mercado da Castanheira trabalha por dedicação às cinco clientes

A última vendedora do Mercado da Castanheira trabalha por dedicação às cinco clientes

Donzília Encarnação é vendedora há 43 anos e sabe que quando deixar de trabalhar o espaço fecha

O Mercado de Castanheira do Ribatejo abre diariamente para uma única vendedora. Donzília Encarnação é a última resistente que mantém o espaço de portas abertas para os poucos clientes que ainda passam pelo espaço que foi recuperado há uns anos e tem uma apresentação moderna, que contrasta com outros antigos, com pior aspecto, no concelho de Vila Franca de Xira. Donzília, vendedora há 43 anos e a vender neste mercado há dez anos, passa muitas horas sem companhia, por entre frutas e hortícolas e a velhinha balança.
Por norma, uma caixa de maçãs dura duas semanas a vender. Um dia bom é quando aparecem três das cinco clientes habituais, com quem aproveita para trocar dois dedos de conversa e tornar a manhã menos solitária. As coisas eram diferentes quando decidiu enveredar por esta profissão, logo após a revolução do 25 de Abril de 1974. Nascida no Alentejo, Donzília mudou-se para a Castanheira do Ribatejo com dois filhos menores e com o marido desempregado, agarrou nos produtos que cultivava no quintal da casa e decidiu montar uma banca no largo da Igreja, onde se juntavam alguns vendedores.
A vendedora tinha passado a adolescência e a juventude a trabalhar no campo. Ajudava os pais e não sabia ler, escrever ou fazer contas, mas sabia que era preciso ganhar dinheiro de alguma forma para que nada faltasse à família. Continua sem saber ler ou escrever, mas as contas foi aprendendo com a ajuda de outros comerciantes e das próprias freguesas. Uma varina ensinou-a a distinguir as moedas e a associar os diferentes tamanhos e cores a cada valor, e mais tarde uma peixeira ajudou-a com a transição do escudo para o euro.
A confiança nas clientes, que também são amigas, leva a que a vendedora confie nas contas que estas fazem aos produtos que compram. Em cima da banca tem um pequeno bloco de notas e uma caneta onde aponta as quantidades e os valores, que sabe de cor, e depois pede ajuda à cliente para fazer as contas ao que deve pagar. Garante que nunca foi enganada e que não sente menos capacidades para vender por causa disso.
A mudança para o mercado aconteceu por convite das colegas que a aconselharam a fugir da chuva e do frio que muitas vezes afastavam os fregueses do largo desabrigado. Há dez anos mudou-se para o mercado actual, mais moderno mas com menos gente. Com voz triste compreende que as pessoas tenham deixado de vender no mercado. “Não passa ninguém aqui e ainda temos de pagar um valor considerável para ter aqui a banca”, desabafa a O MIRANTE.
Aponta as grandes superfícies comerciais como a principal causa para o abandono em que se encontram os mercados municipais, uma vez que “ninguém está para ir a três ou quatro sítios comprar as coisas que consegue arranjar num só local”. Donzília foi a única que se manteve no mercado, a vender os vegetais e frutas que continua a cultivar com o marido, apesar de as vendas já quase não darem lucro. O único motivo que ainda a faz abrir a banca são as cinco clientes de longa data que ainda restam. Com reformas pequenas, todas elas pedem fiado. Donzília facilita porque compreende que o valor das reformas mal dá para se alimentarem. “Elas pedem-me sempre para eu não sair daqui, se não não têm mais ninguém para pedir fiado”, explica.


Não sai do local por dedicação às clientes
A dedicação às clientes é o que a mantém no local, tendo recusado receber uma indemnização para fechar a banca e abandonar o mercado. A oferta chegou da então presidente da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, Maria da Luz Rosinha. “A senhora presidente foi muito simpática e quis negociar comigo um valor para eu ir embora. Eu agradeci-lhe muito, mas expliquei que tinha as minhas clientes e que não as podia deixar assim, sem comida”, contou.
Aos 74 anos, Donzília fala na felicidade de ter trabalhado muito e de ter conseguido arranjar uma propriedade relativamente grande onde consegue cultivar de tudo um pouco, desde alfaces, cenouras, cebolas, curgetes, couves... Conta que nunca teve um dia de férias. Considera-se uma mulher activa e não gosta de ficar sem nada para fazer. Já chegou a combinar ir passar o fim-de-semana à terra natal mas passado um dia regressou já que “lá não tinha nada para fazer e cá havia tanta coisa para trabalhar”.
Os filhos seguiram a profissão da mãe. O mais velho, de 44 anos, vende peixe e fruta em Arruda dos Vinhos, e a filha, de 43 anos, vende produtos hortícolas no Mercado Abastecedor da Região de Lisboa. Os dois andaram na escola até ao quinto ano, mas Donzília precisava deles para trabalhar no campo e teve que os tirar na escola. Ainda assim, assegura que os dois são bem-sucedidos e que não lhes falta nada. Donzília não tem ilusões e sabe que quando se for embora, o mercado da Castanheira do Ribatejo fecha. Por isso, enquanto tiver forças e clientes vai estar no mercado a manter a tradição.

A última vendedora do Mercado da Castanheira trabalha por dedicação às cinco clientes

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