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Na apanha do tomate a língua predominante já não é o português

Na apanha do tomate a língua predominante já não é o português

A escassez de mão-de-obra nacional leva empresários do sector a recorrer a imigrantes

As terras são portuguesas mas os idiomas que se ouvem junto aos campos agrícolas do Ribatejo há muito que deixaram de o ser. Vieram de longe, para fugir à guerra ou à pobreza e na bagagem trouxeram apenas a esperança de encontrar uma vida melhor. Estes homens e mulheres acabam muitas vezes por ser a sorte grande de empresários de explorações agrícolas, nos tempos em que a mão-de-obra portuguesa é cada vez mais escassa.
Hussain Abbas, um paquistanês de 22 anos, levanta a cabeça coberta por um chapéu de palha em resposta à chamada do patrão. “Gostas de trabalhar aqui?”, pergunta Carlos Barrela, proprietário da Quinta Terra Velha, em Azambuja, onde todos os anos se cultivam 150 hectares de tomate. “Trabalhar é bom e o patrão paga bem”, responde o paquistanês em jeito confuso, mas de sorriso no rosto.
O jovem está em Portugal há três anos e só teve este emprego. Para trás ficou a família, os amigos, a casa, as roupas e a terra conflituosa onde diz não haver trabalho para jovens como ele. Viajou de carro com um conhecido até à Turquia onde apanhou, já sozinho, um barco que o levou até Itália. Continuou em viagens sucessivas de autocarro até chegar ao lugar a que agora chama casa. Hussain vive dentro da quinta onde trabalha, com mais um colega paquistanês que passou a ser o seu melhor amigo. “É bom morar aqui. Não pago renda, água, nem luz e tenho um amigo do Paquistão a trabalhar comigo”, diz a O MIRANTE.
A língua dificulta o diálogo fluente, mas nas contas Hussain não fraqueja e diz: “Mando duzentos ou trezentos euros para a mãe e para o pai todos os meses”. O único inconveniente é que só trabalha seis meses no ano e, quando o dinheiro falta, os papéis invertem-se. “Depois é o pai que manda para mim”, diz encolhendo os ombros.
Quando a repórter de O MIRANTE lhe pergunta se tem saudades da família, Hussain Abbas fica perdido com a palavra, que diz desconhecer. Depois de uma breve explicação sobre o significado desta palavra tão portuguesa, o jovem apanha-lhe o sentido e diz: “Muitas, muitas. Da mãe, do pai”. Mas voltar para junto deles não está nos planos. “Aqui não tem guerra, não tem nada… Portugal é bom”, diz.

Dos campos de futebol para os campos da lezíria
Em tempos jogador de futebol, Anton Ivanov fugiu à guerra civil no leste da Ucrânia, em 2014, assim que chegaram os primeiros grupos armados pró-russos. Acompanhado pela esposa e uma filha de ambos, foi parar a Azambuja por indicação de uma pessoa conhecida. Com mais um filho nos braços, nascido há dois meses, a família ucraniana também vive numa habitação cedida por Carlos Barrela, seu patrão.
Os olhos azuis turvados de água durante toda a conversa deixam verter lágrimas a fio, quando a repórter lhe pergunta pela família. “Estão todos lá. A mãe e o pai não querem sair e vir para Portugal”, diz Anton limpando as lágrimas com as mãos cobertas de terra seca. “Nós vamos ficar aqui, porque aqui não há guerra”, diz antes de subir para o tractor e acenar em jeito de despedida.

O coração continua a morar longe
Nos campos de Valada (Cartaxo) o calor aperta mas nem assim o jovem Mihail Cananeu, natural da Moldávia, com o suor a escorrer-lhe pela testa, pára para descansar. Hoje o seu trabalho é conduzir o tractor enquanto a máquina vai apanhando o tomate. Um trabalho árduo, ao qual diz já estar habituado.
E se a língua ao início foi um obstáculo neste momento o único problema são as saudades da namorada, que se encontra no país natal. “Ela está lá a trabalhar numa loja e está bem. Jamais a queria ver aqui a trabalhar na agricultura. Isto não é para ela”, confessa Mihail, de 26 anos, enquanto vai ajeitando o seu boné com a cor das quinas.
A trabalhar nos campos de José Nunes, de Cortiçóis, em Almeirim, desde 2011, é entre a apanha do tomate aqui em Portugal e a trabalhar como operário na Moldávia, que Mihail vai ganhando dinheiro para viver. Um valor que considera um pouco baixo para quem trabalha ao sol em constante esforço físico. A residir numa casa arrendada, com os pais e o irmão, em Benfica do Ribatejo (Almeirim), é na carrinha de José Nunes, seu patrão, que se desloca todos os dias para o campo.
Se para o jovem moldavo, Benfica do Ribatejo é apenas o lugar onde repousa, para o romeno Daniel Sondu é campo de trabalho há 17 anos. Na Roménia trabalhava numa fábrica de cimento e como revisor ferroviário, mas a procura por melhores condições de vida trouxe-o até Portugal.
“Primeiro vim eu. Depois a minha mulher. Desde aí nunca mais voltei”, revela enquanto vai preparando o camião para mais uma deslocação à fábrica de tomate. Recorda que quando cá chegou começou por procurar uma padaria em Almeirim para comprar pão. “Procurei e procurei e nem uma encontrei. Depois tive de ficar dois ou três dias só a comer laranjas e carne”, ri-se à medida que desabafa que a vida no campo não é tão dura como na construção civil.

Portugueses exigem mais e trabalham menos

A reportagem de O MIRANTE falou com alguns produtores agrícolas que têm opinião vincada de que cada vez é mais difícil arranjar portugueses para trabalhar nos campos, debaixo de sol e chuva. “É muito difícil arranjar mão-de-obra para trabalhar no campo, mas por ser um trabalho duro, até porque os ordenados são bem acima do salário mínimo”, refere o produtor de tomate em Azambuja, Carlos Barrela, de 62 anos.
Pela experiência de 35 anos de trabalho no sector, considera que os “portugueses são mais exigentes do que os imigrantes, porque ganham mais confiança com o patrão”. Pedem mais aumentos salariais e melhores condições de trabalho, tudo porque “a língua os aproxima do patrão”.
Em Cortiçóis, Almeirim, também o empresário agrícola José Nunes diz que dá “todas as condições aos trabalhadores”, mas o problema é que “os portugueses não querem trabalhar na agricultura”. Resultado, tem de “andar a arranjar estrangeiros”, conta o produtor de tomate, que actualmente tem seis trabalhadores romenos e moldavos a seu cargo.
É nos imigrantes que António Cristina, produtor em Benfica do Ribatejo vê o futuro da agricultura, pois são os que “trabalham a qualquer hora sem se queixar”. Nos seus campos a língua predominante há muito que também deixou de ser o português, tendo a seu cargo quatro imigrantes e apenas dois portugueses.
A apanha do tomate, agora facilitada com as máquinas ‘colhedoras’, emprega menos trabalhadores do que há uns anos, mas ainda assim não sobrevive sem a mão que planta, rega, colhe, ou guia a maquinaria necessária. Até meados de Outubro, altura em que está prevista a conclusão da apanha do tomate, as vozes que se ouvem nos campos vão continuar a soar em várias línguas.

Na apanha do tomate a língua predominante já não é o português

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