Quando um apelido se torna um mistério de família
Não fosse o nome Isaac e José Maria não denunciava a sua origem judia. O MIRANTE falou com um descendente de uma família judaica, numa altura em que a parte mais triste da história do povo judeu é invocada. No dia 27 de Janeiro assinala-se o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto.
Tem na mão o quipá, espécie de touca utilizada pelos judeus, mas a sua relação com o objecto é de mera curiosidade, a mesma que o leva a visitar as sinagogas dos sítios por onde viaja. Não é praticante da religião judaica mas não nega as origens e exibe o nome Isaac com orgulho. Para José Maria Isaac de Carvalho, director de Finanças em Santarém, Isaac é o apelido que herdou do avô materno José Rodrigues Isaac.
A origem da família, do lado materno, perde-se no tempo. José Maria sabe que o bisavô era tecelão na Covilhã, que o avô nasceu em 1897, também na Covilhã, onde trabalhou na área dos lanifícios e que ainda novo se mudou para Castanheira de Pêra, onde manteve o ofício. Ali teve cinco filhos, todos Isaac de apelido.
A mãe e os quatro tios de José Maria nasceram na década de 30 do século XX, numa época em que ainda não tinha deflagrado a Segunda Guerra Mundial e que não se falava de anti-semitismo em Portugal. Na altura de registar os netos o caso mudou de figura. Os dois que nasceram em Lisboa foram registados com o sobrenome Isaac, mas os sete que nasceram em Castanheira de Pêra, na década de 60 do século passado, perderam o nome de família com origem judaica.
Quando perguntamos qual a sua opinião sobre o Holocausto, Isaac diz que fica especialmente sensibilizado por ter o nome que tem. “Por vezes questiono-me o que podia ter acontecido se a minha família estivesse, por exemplo, em França na altura da Segunda Grande Guerra... O nome denunciar-nos-ia e teríamos sido perseguidos de certeza”.
Muitos nomes ligados ao judaísmo foram-se perdendo
Segundo a historiadora Esther Mucznik, estudiosa de temas judaicos, há vários nomes de origem judaica que se foram perdendo ao longo do tempo em Portugal. Muitos nomes ligados ao judaísmo não constam dos registos actuais, não porque tenham morrido sem deixar descendência, mas porque se deu uma assimilação. A especialista refere num artigo publicado na Revista História, em Junho de 1999, “a extremamente bem conseguida integração social dos judeus portugueses, nos séculos XIX e XX, que levou à assimilação pura e simples pela sociedade católica, nomeadamente através da conversão pelo casamento”.
Terá sido este o caso dos primos de Isaac? José Maria lidou com o avô até aos 20 anos e através dele nunca teve contacto com nenhuma tradição judaica. “Era um católico falso. Fingia-se católico para não ser perseguido, mas no fundo não tinha qualquer religião”, conta o neto a O MIRANTE.
A teoria mais consensual na família para a queda do apelido é a de que tenha havido algum estigma por parte do notário que fazia o registo. Terá o notário recomendado que não se desse o nome às crianças para não virem a ser estigmatizadas, numa época em que os ventos do anti-semitismo já tinham chegado a Portugal, ou terá simplesmente proibido o uso de um nome “estrangeiro” numa pequena vila do interior? Esse é um mistério que Isaac diz permanecer na família, embora não seja tema recorrente. O orgulho no nome Isaac, muito popular entre os judeus e que significa filho da alegria, é tanto que um dos netos de José Maria o exibe como nome próprio. “Também utilizo o nome Isaac muitas vezes como se fosse nome próprio, isto revela que não tenho qualquer problema com a minha origem”. “Há também quem diga que tenho o nariz grande e que isso é herança judia, acho graça”, remata José Maria.
A origem da família
É provável que a origem da família de Isaac se integre na comunidade judaica da zona da Covilhã, que foi desde o século XII e até início do século XX uma das maiores e mais importantes do país. Dedicava-se fundamentalmente ao comércio e ao artesanato, mas também às actividades agrícolas, tendo sido grande impulsionadora da indústria dos lanifícios. Grande parte dos judeus que hoje vivem em Portugal são descendentes dos que chegaram ao país nos princípios do século XIX, altura em que se deu um enfraquecimento da Inquisição e a consequente abolição em 1821.
Direitos Humanos são mote para as comemorações do Holocausto
O Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto assinala-se a 27 de Janeiro e, um mês depois da comemoração dos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, tem como tema escolhido pela Organização das Nações Unidas (ONU) a reflexão sobre a defesa dos Direitos Humanos de todos os que foram vítimas desse capítulo negro da história.
O genocídio levado a cabo pela Alemanha nazi teve como vítimas os opositores ao regime, deficientes físicos e mentais, homossexuais, ciganos, mas sobretudo judeus. Cerca de seis milhões foram exterminados nos diversos campos de concentração, principalmente na Polónia e na Alemanha. Foi nessa altura, década de 40 do século XX, que muitos judeus acabaram por chegar a Portugal pela mão do prestigiado diplomata português Aristides de Sousa Mendes (cônsul de Portugal em França), que salvou 30.000 vidas do Holocausto, emitindo vistos e desobedecendo às ordens impostas por Salazar.
A 27 de Janeiro de 1945 teve lugar a libertação de Auschwitz, principal campo de concentração nazi, localizado na Polónia, pelas tropas da União Soviética. O Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto foi criado por acção da Assembleia Geral das Nações Unidas a 1 de Dezembro de 2005.