“Ultrapassei aquilo que encontrei nos meus melhores sonhos”
Marco Chagas, 62 anos, é o português que mais vezes venceu a Volta a Portugal em bicicleta. Conseguiu-o em quatro ocasiões, na década de 1980, conquistando por mérito próprio um lugar na galeria de ídolos do desporto nacional. Continua a viver na vila de Pontével, no concelho do Cartaxo, terra onde nasceu e hoje tem um clube de ciclismo com o seu nome. Continua a pedalar e diz que as pantufas e o sofá, por enquanto, podem esperar.
Como é ser uma lenda viva do desporto nacional?
Não penso muito nisso. Acho engraçado as pessoas pedirem-me para tirar uma fotografia, para falar comigo ou aperceberem-se que sou eu até pela voz, pelo facto da ligação à RTP como comentador de ciclismo nos últimos anos.
Lidar com o final da carreira, após tantos triunfos e alegrias, foi um momento doloroso?
Nada! Digo isto de forma muito clara e algumas pessoas até poderão pensar que estou a exagerar. Quando tomo uma decisão, mesmo que por vezes não seja a mais correcta, está tomada. No final da época de 1989 disse à então minha mulher que a minha carreira ia terminar no ano seguinte. E até fiz uma época interessante, com 5º lugar na Volta a Portugal, andava bem, andava na frente, mas estava decidido e ponto final. No dia 5 de Outubro de 1990 despedi-me definitivamente do ciclismo como atleta profissional.
E não tem saudades desse tempo? Não é uma pessoa nostálgica?
Não me dá nenhuma saudade. Isso pode tocar mais às pessoas que acham que ficaram com algo por fazer. Acho que ultrapassei aquilo que alguma vez nos meus melhores sonhos tinha pensado, quando era miúdo. Achava que se um dia ganhasse uma etapa da Volta a Portugal já era um grande herói. Como venci quatro Voltas a Portugal e consegui ganhar muitas outras coisas e estar no Tour por duas vezes, aos 33 anos decidi parar.
Tinha outros desafios em mente? Apetecia-lhe fazer outras coisas na vida?
Principalmente, achava que era altura de mudar de vida. Levantar todos os dias e saber que há muitas horas de bicicleta para fazer, muito treino, é um desafio duro. As competições são a parte melhor da vida de um atleta. O problema é o que se tem que fazer para chegar até lá. E pelo facto de ter começado muito jovem também já começava a faltar alguma motivação.
Como são os seus dias hoje?
Sou uma pessoa muito dinâmica por natureza...
Ou seja, sofá e pantufas não é consigo.
Não! Só mesmo ao fim do dia e nem sempre. Por vezes, à noite vou andar de bicicleta com amigos e faço isso com grande prazer. A minha vida é muito activa, gosto de ter sempre alguma coisa para fazer.
E em termos profissionais, ainda tem a empresa de vending?
Não, agora é só mesmo a ligação à RTP como comentador e faço também alguns trabalhos para uma produtora que também trabalha no ciclismo. Devido a problemas de saúde que me afectaram há uns anos, em que necessitei de ter uma vida mais descansada, entendi que era melhor afastar-me daquela actividade, que me preenchia muito, e decidi vender o negócio.
Viveu o ciclismo como uma espécie de sacerdócio, com a privação de muitas coisas boas da vida. Desforrou-se depois?
Nunca é tarde para se viver aquilo que não se pôde viver antes, mas nunca fui muito de exageros, porque viver a vida com saúde deve ser das melhores coisas que há. Foram 18 anos de entrega total à modalidade, passando ao lado daquilo que é a vivência normal de um jovem. Até aos 33 anos não pude ser muito bom marido e muito bom pai devido às ausências frequentes a que estava sujeito. Só tenho uma filha e ela não teve um pai muito presente. Tem mais hoje do que quando era miúda.
E já é avô?
Já. Tenho dois netos, o Martim e o Diogo. O Martim joga futebol nas escolas do SL Cartaxo e o Diogo ainda está pouco definido em relação ao desporto pois só tem cinco anos.
Ganhou bom dinheiro com o ciclismo?
Ganhei algum dinheiro mas a minha geração passou os tempos mais difíceis do ciclismo, embora ainda tenha apanhado um pouco dos tempos melhores que vieram nos anos 90. Quando deixei o ciclismo havia uma melhoria substancial das condições. Passei grandes dificuldades e se não fosse a ajuda que os meus pais me deram no início não tinha conseguido ser corredor de bicicleta. Eu e os meus colegas dessa época passámos muito mal. Há histórias quase inacreditáveis sobre o que passávamos para levar por diante a paixão de ser corredor.
Como por exemplo?
No primeiro ano em que fui à Volta a Portugal, em 1976, estava numa equipa, a Costa do Sol, em que o senhor que a fez apenas nos deu um subsídio de dois meses. A equipa foi criada por um apaixonado do ciclismo da zona do Estoril mas sem condições financeiras para isso. Passámos o ano todo sem receber mais dinheiro nenhum. Comíamos aquilo que a esposa dele nos cozinhava, fazíamos estágios entre nós e uns tempos antes da Volta a Portugal andámos a pedir dinheiro por aquelas empresas de mármores da zona de Pero Pinheiro, onde havia muita gente que gostava de ciclismo e que era do Sporting - nós, maioritariamente, tínhamos vindo do Sporting, que tinha suspenso a modalidade. Foi assim que fomos para a Volta. O meu tio, que tinha um táxi e um café aqui em Pontével, deixou tudo e foi no carro de outro amigo fazer apoio à nossa equipa na Volta a Portugal. Hoje, são coisas impensáveis...
O estigma do doping ficou também colado à sua carreira. É uma situação que o incomoda ou vive bem com isso?
Foi uma coisa que me marcou e que marcou alguns dos meus contemporâneos também. O ciclismo está muito associado ao doping, muitas vezes de forma injusta. Senti-me muito mal com isso, porque tinha e tenho a consciência tranquila em relação a duas de três situações. Na outra reconheço que posso ter tido uma quota parte de responsabilidade. Nas outras duas situações, em 1984 e 1987, tive controlos positivos na Volta a Portugal que me impossibilitaram de disputar a vitória. Foi exactamente com a mesma substância que eu continuo a garantir que, de forma deliberada, nunca vi ou tomei. Mas o que é um facto é que me apareceu na urina. Chama-se norefedrina, um derivado da efedrina que se encontra supostamente em xaropes para a tosse e problemas respiratórios.
Procurou explicações para o sucedido?
Suspeito que esteja relacionado com algum suplemento, tipo alimento líquido, que ingeríamos. Coisas excelentes que vinham dos Estados Unidos mas que nalguns casos, e aconteceu a diversos atletas de nível mundial, estavam contaminados com pequenas quantidades dessa substância. Havia lá vestígios como dizia na altura o responsável do controlo anti-doping. Mas eram vestígios que davam positivo. E eu, de uma forma inocente, acabei por me ver muito marcado por essas situações.
É natural de um concelho com história no ciclismo e de onde saíram grandes ases do pedal, como Alfredo Trindade, José Maria Nicolau, Francisco Valada e Marco Chagas. O concelho tem sabido honrar essa memória?
Diria que sim. O Cartaxo tem a particularidade de ser o concelho do país com mais vitórias na Volta a Portugal. E para além dos nomes que referiu houve outros belíssimos corredores, como o meu tio Martins, que esteve nos Jogos Olímpicos de Roma, o Gonçalo Amorim, que também esteve nos Jogos Olímpicos, o Luís Domingos, o Xavier...
Não se justificava a criação de um museu dedicado ao ciclismo, tendo em conta o espólio existente e o currículo de tanta gente ilustre da modalidade com raízes no Cartaxo?
Penso que fazia sentido. Inclusivamente, doei o meu acerco, que tem alguma riqueza, há já alguns anos à Junta de Freguesia de Pontével, mas ainda não foi possível encontrar um espaço e criar as condições para as pessoas poderem ver o que doei. As coisas estão algures guardadas em caixas.
Continua a viver em Pontével, a sua terra natal. É um homem agarrado às raízes?
Gosto muito de ser de Pontével e das suas gentes. Gosto muito de ter esta proximidade com as pessoas. Nunca pensei viver noutro lugar. Fui emigrante um ano, quando estive a competir em França com o saudoso Joaquim Agostinho, e as ausências custavam muito, até porque a minha filha tinha nascido há pouco tempo. Quando vinha a casa ela não me conhecia e isso marcou-me muito.
O português com mais vitórias na Volta a Portugal
Marco Chagas é uma lenda viva do desporto nacional, sendo o ciclista português que mais vezes venceu a Volta a Portugal em bicicleta. Ao todo foram quatro triunfos, nos anos de 1982, 1983, 1985 e 1986, sendo só superado pelas cinco vitórias do espanhol David Blanco.
Natural de Pontével, concelho do Cartaxo, onde nasceu em 19 de Novembro de 1956, Marco Chagas mantém-se ligado ao ciclismo como comentador televisivo de provas velocipédicas. Foi um dos que ajudou a romper com o preconceito de que os ciclistas eram todos homens rudes incompatibilizados com o bom português. As leituras que o acompanham desde a infância deram-lhe lastro. Lamenta não ter estudado mais. A vida modesta da família não o permitiu. Começou a trabalhar novo.
O seu primeiro emprego foi numa casa fotográfica que havia no Cartaxo. Recebia de salário 300 escudos por mês, que eram uma ajuda para o magro orçamento da família. Foi com o dinheiro ganho a trabalhar que comprou a sua primeira bicicleta de corrida, aos 14 anos. Depois foi sempre a pedalar, pela montanha da vida acima, até chegar ao topo naquilo que fazia.
As privações a que se submeteu nos melhores anos da juventude levam-no a dizer que ser ciclista naquela altura era quase um sacerdócio. Marco Chagas sagrou-se pela primeira vez campeão de Portugal de profissionais pelo Sporting em 1974, com apenas 18 anos, feito que repetiria na época seguinte. Do Sporting foi para o Costa do Sol e depois para o Águias/Clock, vencendo em 1978 a prova portuguesa de perseguição em estrada. No ano seguinte mudou-se para o Lousa e ganhou a Volta a Portugal em bicicleta. Dias depois a vitória foi-lhe retirada por uso de doping.
Desanimado, foi correr para França, ao lado de Joaquim Agostinho. Regressou a Portugal e vence a Volta em 1982 (FC Porto) e 1983 (Mako Jeans). Em 1984, de novo com a camisola do Sporting, preparava-se para vencer nova volta mas acusou doping. Desforrou-se em 1985, vencendo a volta e sagrando-se campeão de Portugal. Em 1986 conseguiu a quarta Volta a Portugal.
No seu currículo destacam-se ainda vitórias na Volta à África do Sul em 1978, Volta da Independência do Brasil em 1982, Volta à Madeira em 1983 e a clássica Porto-Lisboa, Volta ao Alentejo em 1984 e G.P. do Minho em 1987. Deixou o ciclismo profissional em 1990.
Marco Chagas, pai de uma filha e avô de dois netos, é também fundador e dirigente do clube de ciclismo com o seu nome, onde continua a pedalar e a promover a prática do ciclismo nas suas diversas vertentes, tendo como parceira de pedaladas a sua actual companheira. O seu percurso de vida e apego às raízes levaram o município do Cartaxo a homenageá-lo, em Dezembro de 2016, durante as comemorações dos 200 anos do concelho.