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A operação especial que roubou Santarém aos mouros
Luís Mata recebeu O MIRANTE na Casa do Brasil cuja vista é um quadro vivo do património da cidade

A operação especial que roubou Santarém aos mouros

Cidade foi protagonista de muitos episódios marcantes da História de Portugal. A reconquista de Santarém ficou para a posteridade como um dos pontos de charneira da criação do nosso país. A propósito das comemorações do Dia de Portugal, O MIRANTE ouviu o historiador Luís Mata para perceber o papel da cidade e da região ao longo da nossa História enquanto nação.

Na história medieval e na história militar portuguesa, a conquista de Santarém foi uma operação pioneira, “hoje chamar-lhe-íamos uma operação especial”, refere entre risos o historiador Luís Mata, técnico superior do município. A forma como foi protagonizada constituiu uma quebra de todas as lógicas da guerra medieval que era bastante formal, tinha um período próprio, normalmente entre Maio e Setembro, durante o dia, e com grandes contingentes de homens.
Nada disso aconteceu na conquista de Santarém, uma operação com cerca de 250 homens que se deu na madrugada de 14 para 15 de Março de 1147 e exigiu um planeamento cuidadoso e um reconhecimento prévio. Este reconhecimento atribui-se a Mem Ramires, figura pouco conhecida, mas com um papel fundamental na reconquista. “Pode ter sido um moçárabe, outros julgam que foi uma figura inventada e que era na realidade o rabi mor de Santarém”, conta-nos o historiador. A comunidade judaica era muito importante e terá tido um papel activo na preparação da reconquista, a ponto de, anos mais tarde, D. Afonso Henriques conceder permissão ao rabi para usar brasão, como agradecimento pelo seu papel na tomada de Santarém.
Apesar de ter sido um acontecimento episódico uma vez que, durante os tempos, Santarém ia alternando o domínio cristão com o domínio muçulmano, a conquista de Santarém aos mouros, em 1147, ficou para a posteridade como um dos pontos de charneira da construção do reino de Portugal. Dentro do seu projecto de alargamento do território D. Afonso Henriques procurou reconquistar a cidade e tentou-o anos antes, um facto pouco conhecido.
Luís Mata revela que em 1142, no ano em que deu foral a Leiria, é muito provável que D. Afonso Henriques tenha procurado conquistar Santarém. Por ser uma praça-forte bem protegida, percebeu que tinha que mobilizar meios consideráveis para a conquistar. Como não possuía esses meios fez um pedido ao Papa que enviasse cruzados.
Só anos mais tarde houve um conjunto de acontecimentos que favoreceram a conquista, como a queda de Edessa em 1144, um apelo do Papa para uma nova cruzada e a chegada de um núncio papal a quem o rei fez um pedido formal de ajuda.

A um passo de ser capital
Suficientemente próxima do mar para ser facilmente acessível e longe quanto baste para impedir investidas, protegida naturalmente e com um domínio visual abrangente sobre uma extensa região das mais ricas e mais férteis do país, Santarém tinha todas as características para se ter tornado na capital do país. Luís Mata lembra que, na altura, eram raras as capitais europeias situadas no litoral. “Basta olhar para Espanha ou Inglaterra para perceber que as suas capitais estão no interior, longe da exposição a ataques”, refere o historiador.
Santarém não se tornou capital, mas teve um papel fundamental na formação do reino. Luís Mata destaca como símbolos dessa importância o contributo activo da Igreja de Santa Maria de Alcáçova para a criação dos Estudos Gerais em Coimbra e lembra que a primeira universidade do país foi feita com a colaboração da Colegiada de Santarém.
Também na região foi preparada, em segredo, a expedição a Ceuta que marcou o início do Império Português. No território da antiga Scalabis foi criada a Ordem de Cristo, sendo a sua sede, entre 1147 e 1160, a Igreja de Santa Maria de Alcáçova, Capela Real até aos finais da monarquia e construída por Frei Arnaldo, um dos homens mais importantes dos templários. Mais tarde, D. João II foi coroado nestas terras.

O período negro de Santarém
Com a morte de D. João II e com a subida ao trono de D. Manuel mudou a lógica de governo. Os reis deixaram de vir tanto a Santarém e deixaram de ir ao resto do país, porque a corte deixou de ser itinerante e passou a estar fixa em Lisboa.
Contudo, é precisamente no reinado de D. Manuel que são feitas as alterações mais importantes da então vila. Foi esse monarca que levou a cabo uma campanha de obras da Igreja de Marvila, Igreja Matriz de Santarém, que teve, desde sempre, uma grande rivalidade com a Igreja de Santa Maria de Alcáçova. Durante o período manuelino construíram-se os novos paços do concelho e o novo pelourinho.
No século XVII Santarém teve a “ousadia” de apresentar o seu próprio pretendente ao trono de Portugal, D. António Prior do Crato. Um século mais tarde teve início a construção da Sé Catedral e ganhou força uma academia literária onde figuravam algumas das mais altas individualidades do país. Mas foi também nesse século que começou o período negro de Santarém que foi terrivelmente afectada pelo terramoto de 1755. Quando estava a reerguer-se dos escombros vieram as invasões francesas. Logo seguidas pelas guerras liberais, particularmente violentas neste território, que se colocou do lado dos miguelistas.
Os liberais venceram e a nova legislação determinou a extinção das ordens religiosas que, em Santarém, teve um aspecto particularmente devastador. “Chegaram a haver aqui 16 mosteiros. Esses espaços ocupavam uma parte substancial da povoação a ponto do Frei Luís de Sousa dizer, com uma certa piada, que no meio de tanto frade e de tanta freira parecia impossível que coubesse mais alguém em Santarém”, comenta Luís Mata.
Quando desaparece o peso dos grandes latifundiários e do clero, Santarém fica esvaziada à procura da sua identidade. “É disso que penso que ainda não recuperou totalmente. Falta alguma identidade que tem que se encontrar naquilo que é a história milenar de Santarém ligada à fertilidade agrícola e de ideias”, refere o historiador, apontando como um eventual caminho resolver o desafio da água, o reaproveitamento do rio e o voltar às culturas tradicionais trazidas pelos fenícios como a oliveira, o trigo e a videira.

Uma cidade com potencial e qualidade de vida
Durante toda a história de Santarém até aos nossos dias a sua prosperidade explica-se por dois eixos: por um lado a riqueza agrícola, por outro lado ser acessível. São essas características que, segundo o historiador, marcam o que é a sua essência, “o espírito do lugar”.
“Santarém tem muitas potencialidades, está bem localizada no país, oferece uma qualidade de vida muito razoável, é uma cidade interessante para investir, suficientemente perto de Lisboa, sem os preços da capital”, aponta Luís Mata, realçando que falta capitalizar estas potencialidades através de uma estratégia definida, que pode também passar pela história do touro e do campino. “Não tem que se radicalizar entre quem gosta e quem não gosta de tourada. Campino e touro são um sedimento da identidade regional”, remata.

Vestígios não resistiram à passagem do tempo

“O drama de Santarém é que os vestígios materiais dos tempos passados, sejam romanos, islâmicos ou judaicos, desapareceram completamente. O que sabemos é pela documentação”, desabafa Luís Mata. O território do planalto, no qual assenta a cidade antiga, foi sempre o mesmo e sempre intensamente ocupado. Os lugares sagrados mantinham a lógica de ocupação, ainda que com diferentes religiões, com construção em cima de construção. Segundo o historiador, “ficaram marcas imateriais, como toda a lógica de aproveitamento de águas da Lezíria, ou a própria palavra Lezíria, de origem árabe (vem de al-jazira, que significa ilha)”.

Reflectir sobre o passado e perspectivar o futuro

Luís Mata, técnico superior de História na Câmara de Santarém, é natural de Coimbra, onde se formou como mestre em História da Idade Média. Tem 50 anos e vive e trabalha em Santarém há cerca de 30. A exposição dos 150 anos da elevação de Santarém a cidade foi comissariada por si, juntamente com Carlos Amado e procura, reflectindo sobre o passado, perspectivar o futuro.
Por ter chegado tarde ao comboio das cidades, Santarém teve que acertar o passo muito rapidamente o que significa que durante os últimos 150 anos houve um conjunto de mini-revoluções que passaram por áreas como as infra-estruturas, saneamento ou a rede de transportes. São essas grandes alterações que se mostram numa exposição que, segundo o historiador não é uma visão nostálgica, “pretende sobretudo ajudar a cidade a reencontrar-se”.

A operação especial que roubou Santarém aos mouros

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