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“Não tenho esse sentido do artista torturado. Para mim escrever é um trabalho”
Indiferente às críticas, José Saramago dizia sobre si próprio ser uma pessoa coerente

“Não tenho esse sentido do artista torturado. Para mim escrever é um trabalho”

José Saramago esteve na Golegã a conversar com os leitores do seu concelho

“Cada acto cometido à nossa volta, quer pelos nossos parentes, quer pelos nossos amigos, quer pelos nossos inimigos, influi de maneira decisiva na nossa vida. Os livros que escrevi existem por esta razão muito simples: porque o meu pai foi para Lisboa quando eu tinha três anos. Se não fosse assim eu, provavelmente, tinha ido para a loja do senhor Vieira vender açúcar ou para a loja defronte vender chitas e riscados. Era agora o José Saramago da Azinhaga, digno cidadão, mas não existiam os livros que escrevi”.
José Saramago, esteve na segunda-feira, 10 de Agosto de 1992, nas piscinas da Golegã e falou de si e dos seus livros. Natural de Azinhaga, freguesia daquele concelho, o autor de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, foi o principal convidado do FTM - Encontros de Arte Contemporânea.
Falou durante mais de duas horas para perto de uma centena de pessoas. Respondeu a perguntas, contou histórias e irritou-se por duas vezes com observações, a despropósito, de um espectador. Chamam-lhe vaidoso e escritor de livros chatos. A conversa começou por aí. Sobre a pluralidade que existe em cada um de nós. Sobre quem é o José Saramago. O autor visto pelos outros e o autor visto por ele próprio.
“Cada um de nós, fisicamente, é apenas um, mas contudo, se olharmos para dentro de nós, encontramos várias pessoas e o grande esforço que fazemos ao longo da vida é para que os outros nos vejam como um só. É o esforço para controlarmos a nossa pluralidade”.
Faz uma pausa, reflecte, e retoma a resposta. “Tenho uma péssima reputação neste país. Não porque tenha roubado ou assassinado, mas sou tido como uma pessoa antipática, presunçosa, complicada, orgulhosa. Aqueles que me querem mesmo mal até dizem que sou muito vaidoso. O que posso dizer de mim é que, pelo menos, sou uma pessoa bastante coerente. Quase me apetece dizer que eu sou de uma coerência total. Não renego nada do que fiz”.
Saramago foi minucioso nas respostas, como é minucioso nos livros. Nunca se importou de se alongar até sentir que todos tinham compreendido exactamente o que tinha para dizer. Deu conselhos sobre leituras, confessou que está a ler George Steiner e o último livro de contos de Gabriel Garcia Marques e lembrou e citou outros escritores: Fernando Pessoa, Camilo Castelo Branco, Gil Vicente, Alexandre O’Neil.
“Alexandre O’Neil dizia, com muita graça e com muita inteligência, dirigindo-se aos autores, aos escritores: “Não contem a vidinha. A vidinha não tem importância nenhuma”. Trato de ir procurar os meus temas, não na minha própria vida pessoal, mas na visão que tenho do mundo, da sociedade, do homem, da história e da cultura. É aí que procuro os meus temas”.
Numa conversa com José Saramago era quase inevitável falar do livro “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” e da polémica que causou (em Abril de 1992, o subsecretário de Estado da Cultura, Sousa Lara, vetou o livro para o Prémio Literário Europeu). Saramago reconheceu que a Igreja portuguesa foi bastante discreta relativamente ao assunto e considerou que a atitude de Sousa Lara, o seu censor, foi uma atitude a nível puramente pessoal.
Acerca da obra disse ser fundamentalmente um livro sobre a culpa. “A culpa do pai de Jesus, José, que tendo sabido, conforme se conta nos evangelhos, pela visita de um anjo, que Herodes ia mandar matar os meninos de Belém, não fez aquilo que era natural, que era bater à porta dos vizinhos e dizer-lhes para porem os filhos a salvo”.
Com a noite a arrefecer, arrefeceu também a conversa. Apesar disso o escritor ainda respondeu a algumas outras questões sobre a maneira como escreve, para quem escreve e qual a relação entre escritor e leitores. “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” foi o único livro em que Saramago contrariou o seu hábito de escrever apenas de tarde. A meio do livro teve um problema numa vista, estava em Roma e esteve em risco de cegar. Depois recuperou. Recuperou da vista e da escrita que praticou em ritmo intensivo. De resto, confessa, não dramatiza no acto de escrever.
“Não tenho esse sentido do artista torturado. Escrever é uma coisa que faço, da parte da tarde, sem romantismo nenhum. Para mim escrever é um trabalho. Um trabalho com a matéria. Um trabalho com a palavra. Não estou à espera que o Espírito Santo me venha segredar ao ouvido como é que vou escrever”.
Acrescenta que também não pensa nos eventuais leitores. “Não escrevo para ninguém. A ideia de que o escritor tem em mente um público, é uma ideia que considero absurda. Não há um público para o autor. O que se estabelece depois entre o escritor e os leitores é o afecto. Afecto no sentido de que para o leitor, aquele autor é necessário. A grande tarefa do leitor não está em perceber a história que está a ser contada, mas reconhecer que em cada livro vem uma pessoa, que é o autor, que é preciso conhecer”.
Reportagem de Joaquim António Emídio e Alberto Bastos, Texto publicado na edição de O MIRANTE de 15 de Agosto de 1992, texto editado

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