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Saúde mental em risco se houver prolongamento excessivo do isolamento social

Quanto mais tempo durar a quarentena mais protegida fica a nossa saúde física, mas a nossa saúde mental fica em maior risco. O alerta é deixado por Pedro Afonso, médico psiquiatra natural de Santarém.

Quais podem ser as consequências previsíveis para a saúde mental derivadas deste estado de isolamento social? O facto de não se saber quando termina este período de quarentena pode exponenciar os níveis de ansiedade?

Sim, sem sombra de dúvida. Não são apenas os níveis de ansiedade, já que também podem surgir outros sintomas psicopatológicos, tais como: insónia, alterações do humor, episódios de irritabilidade, perturbações depressivas, aumento dos conflitos interpessoais, nomeadamente entre casais, violência doméstica, pensamentos suicidas, etc... Sublinho que estamos perante uma situação paradoxal: quanto mais tempo durar a quarentena mais protegida fica a nossa saúde física, mas a nossa saúde mental fica em maior risco com o prolongamento excessivo do confinamento. As autoridades de saúde têm que estabelecer um equilíbrio responsável. O convívio social é uma necessidade humana. Não podemos prolongar excessivamente o isolamento social, sob pena de poder causar danos à saúde mental da população. Como psiquiatra, cabe-me fazer este alerta: logo que seja possível, as medidas de isolamento social devem ser levantadas pelas autoridades de saúde de forma cautelosa e responsável.

Premonitoriamente ou não, dizia-nos, numa entrevista publicada em O MIRANTE em Agosto de 2008, que uma depressão demora mais tempo a curar que uma pneumonia, alertando para os consequentes custos sociais, nomeadamente de ausência ao trabalho. Avizinham-se tempos complicados a esse nível?

Se a depressão aumentar na população devido à pandemia isso vai traduzir-se também num aumento do absentismo laboral, com consequências negativas para as famílias e para as empresas. Estas doenças demoram frequentemente vários meses a serem tratadas. Mesmo que a depressão não seja suficientemente grave para afastar a pessoa do trabalho, por motivo de baixa médica, a sua produtividade vai ficar comprometida e irá precisar de ajuda especializada. Não tenho dúvidas que a procura de cuidados de psiquiatria vai aumentar com esta crise. O Governo vai ter de dedicar uma atenção particular também a esta área da saúde.

O que recomenda a quem tem mais dificuldades em lidar com esta situação de falta de convívio social?

O teletrabalho, sempre que for possível, pode ajudar a manter a saúde mental, combatendo o sentimento de inutilidade, mantendo a pessoa activa profissionalmente, ajudando a economia e reduzindo inclusive o risco de despedimento nalguns sectores produtivos. Quem tem filhos em casa pode aproveitar para elaborar com eles um “horário de quarentena”. Esse horário pode incluir tempo para estudar, brincar, ver filmes, etc…, mas também deve incluir a partilha de tarefas domésticas, aliviando os pais e ajudando a criar um espírito de entreajuda na família. Os passeios higiénicos de curta duração, feitos de forma individual próximo de casa, podem ajudar a aliviar a tensão e o aborrecimento. As novas tecnologias de comunicação devem ser utilizadas para se falar com a família e os amigos. Não é a mesma coisa do que a conversa presencial, mas pode ajudar a mitigar o sentimento de solidão, principalmente nos mais idosos.

A situação pode tornar-se mais complicada para quem tinha uma vida social muito activa?

As pessoas que têm uma vida social muito activa obviamente sofrem mais com esta reclusão forçada. Mas, para pessoas que “raramente estão em casa”, esta pode ser uma experiência importante, reforçando a vida familiar. Por exemplo, a maior presença dos pais em casa é muito positiva para as crianças. Posso adiantar aos leitores de O MIRANTE, através de informações obtidas por contacto telefónico recente com as famílias, que várias crianças com atrasos de desenvolvimento estão a beneficiar da maior presença dos pais em casa, adquirindo novas competências e obtendo melhoria clínica. Portanto, nem tudo é negativo. Este aspecto faz-nos valorizar e reflectir sobre a importância de os pais estarem mais presentes na vida dos filhos.

“As nossas fragilidades foram desmascaradas”

Este tempo estranho em que vivemos pode ser também uma oportunidade de parar para pensar e redefinir prioridades e/ou estilos de vida?

Nos últimos anos temos vivido numa sociedade demasiado consumista e materialista. Todos desejámos fazer férias no estrangeiro, trocar de telemóvel, comprar um novo automóvel, actualizar o guarda-roupa, etc... De repente percebemos que essas coisas podem perder valor e serem-nos retiradas. As nossas fragilidades foram desmascaradas. Basta olhar para o ar desolador das praças vazias e das cidades quase sem pessoas. As crises como aquela que estamos a viver, em que subitamente tudo desabou por causa de um vírus, podem ser muito úteis para reflectirmos e estabelecer algumas mudanças nas nossas vidas. Podem ser uma ocasião para escutarmos os nossos sentimentos mais profundos: Quem sou eu? Para onde vou? Que sentido tem a minha vida? Porque perdi a minha fé? Esta crise também é uma boa oportunidade para redefinir prioridades, valorizar mais a família e a solidariedade, pois ninguém é auto-suficiente.

Acha que o nosso modelo de sociedade vai sofrer alterações substanciais depois desta crise?

Esta crise é também uma enorme lição para as empresas. Apesar da crescente informatização e da automação nada se consegue sem pessoas. Veja-se como tudo parou por causa de um vírus. As empresas têm de valorizar mais os seus colaboradores, oferecendo-lhes maior flexibilidade de horário, permitindo o teletrabalho, garantindo deste modo que conseguimos ter mais tempo livre e, acima de tudo, mais tempo para a família. A maior parte da população portuguesa vive nos grandes centros urbanos e a qualidade de vida tem vindo a deteriorar-se. Basta lembrar o tempo passado nas deslocações para o trabalho, o stress constante do dia-a-dia e a solidão e a falta de apoio social que se vive nas grandes cidades. É tempo de parar, reflectir e de fazer algumas mudanças na forma como se vive e trabalha. Por fim, este é o tempo da medicina e da ciência recuperarem o seu legítimo protagonismo e de terem a confiança da população. Os movimentos radicais antivacinas e os mitos de falsos tratamentos sobre várias doenças, propagados pela Internet, sofreram com esta crise um rude golpe e ainda bem. Neste momento, a confiança nos médicos é essencial para se salvar vidas.

A frase “Vai ficar tudo bem”, mensagem de esperança e resiliência nascida em Itália e que tem sido acolhida noutros pontos do mundo, inclusive Portugal, faz sentido? Porque a sensação com que se fica é que vai ficar tudo mal...

Temos de cumprir duas missões importantes nesta pandemia. A primeira é procurar salvar vidas humanas, controlando a transmissão da infecção. A segunda missão é tentar salvar a economia, o rendimento das famílias e o emprego. Preocupo-me muito com as consequências na saúde mental da população, decorrentes de uma possível vaga de desemprego. Presenciei os efeitos da última crise económica e acompanhei muitos casos de depressão relacionados com as dificuldades económicas e com o desemprego. O Governo precisa de avançar já com medidas fortes e urgentes (e não anunciar a conta-gotas) para tentar salvar as empresas e as famílias que vão ter uma enorme quebra de rendimentos. É muito difícil tratar uma depressão de alguém que está sem rendimentos e que caiu na malha do desemprego. Mas, mesmo para essas pessoas, é preciso transmitir esperança, dizendo-lhes que hão-de vir dias melhores e que não estão sozinhas.

Como tem vivido estes dias?

O meu dia-a-dia mudou muito, tal como aconteceu com a maioria dos portugueses. Estou a realizar muito menos consultas presenciais devido à quarentena. Mas continuo a trabalhar, enviando receitas aos meus doentes, dando-lhes apoio através do telefone ou usando o WhatsApp. Os doentes com doença psiquiátrica constituem um grupo de risco, já que podem agravar as suas patologias, devido ao stress, ao medo associado à pandemia, bem como ao isolamento social devido à quarentena. Não posso abandonar os meus doentes num momento tão difícil. A profissão médica obriga a grandes sacrifícios e a uma enorme disponibilidade para cuidar dos outros, garantindo o bem-comum. Mais do que nunca este é o momento para os médicos protegerem a saúde da população e darem um bom testemunho; é o que tenho procurado fazer.

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