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Vai haver mais confusão processual e nos tribunais
foto dR Rui Patrício defende que se devem dar passos no sentido do desbloqueio da justiça

Vai haver mais confusão processual e nos tribunais

Rui Patrício, um dos mais mediáticos advogados do país, não é pessimista ao ponto de prever um colapso da Justiça após a pandemia, mas reconhece que os tribunais terão dificuldade em lidar com o previsível aumento de conflitos relacionados com a degradação das condições económicas e sociais. O advogado nascido em Santarém, cidade à qual continua ligado, prestes a fazer 49 anos, considera mesmo que apesar de a saúde pública estar em primeiro lugar, a justiça, enquanto serviço essencial ao país, devia assumir algum risco.

Que implicações tem para os advogados o facto de a justiça estar praticamente parada?

Para os advogados, em geral, há uma redução de trabalho. Embora existam áreas particulares com aumento de actividade neste momento, como a área laboral, ou outras com aumento previsível a médio prazo, como por exemplo a área da recuperação de empresas, a área dos litígios contratuais ou a área bancária, em certa medida. Por outro lado, há uma necessidade de adaptação, a vários níveis, a esta situação, que é nova, grave, incerta, preocupante e muito desafiadora.

E para os cidadãos?

Para os cidadãos, em especial os que estão envolvidos em processos ou os que precisam de recorrer aos tribunais ou a outras instâncias de administração da justiça, tudo isto implica uma grande incerteza, adiamentos, e até mesmo, em certos casos, falta de tutela ou deficiente tutela de direitos. Por isso, tenho defendido que se impõe, dentro do que for possível e progressivamente, ir dando passos no sentido do “desbloqueio”, fazendo-se tudo o que for possível por meios à distância e até mesmo algumas coisas presencialmente, com condições de segurança razoáveis.

Não concorda com a quase paralisação dos tribunais?

É importante não esquecer que a justiça é um sector essencial do Estado. Nesta área existem especiais obrigações e também uma especial necessidade de ponderação entre os riscos de saúde pública e os imperativos de funcionamento do sistema, sendo que os operadores judiciários também têm nisto especiais deveres, o que comporta, necessariamente, assumir uma certa dose de risco. A saúde pública está agora em primeiro lugar, obviamente, mas não é, nem pode ser, o único valor a ter em conta, sobretudo à medida que o tempo passa. Aqui, como em tudo na vida, é preciso algum equilíbrio e um “meio-termo” sensato. Já foram dados os primeiros passos nesse sentido, embora não totalmente claros do ponto de vista legislativo, mas penso que é preciso, além de clarificar, ir dando mais passos.

Na área criminal em que é que esta pandemia influencia?

Diria que tem pouca influência, directamente, gerando apenas alguns processos por desobediência ou por propagação de doença ou outros ilícitos relacionados com a pandemia e/ou com o estado de emergência. Todavia, indirectamente, pode gerar dois outros tipos de consequências, sobretudo se a situação durar. Por um lado, pode desencadear o aumento de fenómenos ligados à conflitualidade interpessoal, como a violência doméstica, agressões, coação, difamação, ou ligados a uma tentativa de aproveitamento de situações geradas pela pandemia, como crimes informáticos, devassa, burlas, especulação, açambarcamento. Por outro lado, pode gerar adiamento, significativo, em investigações ou em processos em curso, bem como, quando se superar (como todos desejamos) a situação epidémica, uma sobrecarga e até alguma “confusão” processual e nos tribunais.

A crise económica gerada pela pandemia vai entupir os tribunais?

Há uma possível “explosão” de litígios e de sobrecarga processual após a pandemia. Por outro lado, poderá levar (e deveria levar, a meu ver) a repensar algumas coisas, como por exemplo a questão prisional, que tem muito que se lhe diga. Esta crise colocou já na agenda e a descoberto algumas dessas coisas, ou, outro exemplo, até o modo de realização de alguns actos processuais, valorizando-se mais os meios de trabalho à distância. Embora, deva dizer-se, esta última questão é controversa e, especialmente, exige muitas cautelas, porque há valores e aspectos do sistema de justiça que exigem o contacto presencial, do qual se não pode prescindir, muito menos uma vez recuperada a “normalidade”.

A Justiça pode colapsar perante o aumento de conflitos envolvendo empresas?

Não seria pessimista ao ponto de prever o colapso do sistema de justiça. Aliás, ao longo dos meus 25 anos de actividade nos tribunais, já ouvi falar muito de “colapso”, e normalmente, como disse Mark Twain sobre os boatos acerca da sua morte, essas “notícias” têm sido em regra muito exageradas. Mas o certo, no entanto, é que, como se viu durante a crise de 2011-2014, o sistema de justiça tem dificuldades em lidar com o aumento substancial, num lapso de tempo relativamente reduzido, do número de processos pendentes.

Temos um sistema judiciário à conta para a normalidade?

Os recursos e os meios de que os tribunais dispõem, além de já terem problemas em situação de “normalidade” (embora não tantos como se diz, salvo em áreas específicas), não estão projectados para períodos particulares em que, por esta ou aquela razão, se gera um elevado número de novos processos. Na crise de 2011-2014, os juízos de comércio das principais comarcas de Portugal – onde, entre o mais, correm os processos de recuperação e insolvência – foram dos que mais dificuldades revelaram em dar andamento às pendências.

As dificuldades financeiras também vão afectar os advogados?

Tanto quanto sei, os advogados têm muito menos trabalho e alguns enfrentam e enfrentarão situações de grande dificuldade, se não mesmo dramáticas. Não só consequência do que se está a passar agora, mas também das consequências enormes que tudo isto terá na actividade económica, no país e no mundo.

O que é que vai mudar na forma de trabalhar dos advogados?

É difícil prever e dependerá em larga medida de quanto tempo durar e das consequências gerais que tiver. Mas pode influenciar muitas coisas, desde o teletrabalho, até ao modo como os advogados organizam a sua actividade. Pode até mesmo conduzir, por outro lado, ao incremento de algumas áreas de actividade e à erosão de outras. E, no limite, pode evidenciar mais um problema crónico da advocacia portuguesa, que é a escassez de procura para o número global de advogados que existe.

Advogado, professor e administrador

Rui Patrício andou na escola primária de Alcanhões e fez o segundo e terceiros ciclos e o secundário em Santarém. É advogado em Lisboa desde 1996 e, é desde 2005, sócio da sociedade de advogados Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados, onde fez o estágio. Actualmente coordena todo o Departamento de Criminal, Contra-ordenacional e Compliance da Sociedade. Licenciou-se pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa em 1994 e é mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela mesma Faculdade (1999). É professor convidado na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, onde lecciona no Mestrado Forense e Arbitragem.


Rui Patrício, advogado do Benfica e que tem defendido arguidos em mega-processos como Operação Marquês, Face Oculta, Operação Fizz, foi vogal do Conselho Superior da Magistratura, eleito pela Assembleia da República, entre 2005 e 2011, e membro do Conselho de Prevenção da Corrupção, indicado pela Ordem dos Advogados. Actualmente é administrador da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea - Colecção Berardo, por indicação do Ministério da Cultura.

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