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O desespero invadiu os hospitais da região
Bárbara Rodrigues, enfermeira no Hospital Distrital de Santarém. Sónia Gonçalves, enfermeira no Hospital de Abrantes. Seomara Oliveira, enfermeira no Hospital Vila Franca de Xira

O desespero invadiu os hospitais da região

Profissionais de saúde dão tudo por tudo mas isso começa a não ser suficiente.

O cenário é dramático e comum a três hospitais da região, em Santarém, Abrantes e Vila Franca de Xira. Três enfermeiras falam a O MIRANTE do “desespero” de não se poder salvar todos e da ginástica que se faz para poderem receber mais doentes. Mas há um limite: “Enfermeiros não se multiplicam e as camas não tratam doentes”.

Numa altura em que Portugal é o pior país do mundo nas taxas de infecção e mortalidade por milhão de habitantes, o número de internamentos dispara e instala o caos nos hospitais. Estica-se o número de camas até ao limite, mas os profissionais de saúde continuam a ser os mesmos. Na Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) do Hospital de Santarém o “cenário é de desespero”. O serviço está lotado, “os doentes são exigentes” e “não há mãos a medir”, alerta a enfermeira Bárbara Rodrigues, que está desde a primeira hora na linha da frente.
“Os doentes agora estão a chegar-nos pior do que na primeira vaga e estamos a falar de doentes muito mais novos (na casa dos 50 anos), que quando chegam aos cuidados intensivos já estão em falência multiorgânica e é muito difícil recuperarem”, diz a enfermeira a O MIRANTE, duas horas antes de entrar para um turno de oito horas, sabendo de antemão que o mais provável é sair bem mais tarde.
Nas onze camas desta UCI - Covid-19, todos os doentes estão ligados a ventiladores. Quando chegam são sedados com fármacos, os olhos tapados para “não fazer úlceras” e colocados de barriga para baixo para que a ventilação funcione mais facilmente. Há tubos, cateteres e fios ligados a máquinas a envolvê-los. “São doentes muito exigentes, temos que estar constantemente a vigiar a ventilação e sinais vitais”, explica Bárbara, contando que, se tiver sede, não pode sair para beber água nem ir à casa-de-banho se tiver vontade. “Ainda não chegámos ao ponto de usar fralda, mas há enfermeiros a usá-las”.
Na urgência o cenário não é mais animador, tal como em muitos outros hospitais do país. “Os relatos que ouço dos colegas é de doentes que têm de ser ventilados no chão porque não há macas. Isto é o princípio do fim que não queríamos que acontecesse”, lamenta, antes de se indignar porque numa urgência não há condições para manter um doente com um nível de exigência tão grande.
No Hospital de Santarém o caos obrigou a que começassem, na semana passada, a ser instaladas duas estruturas modulares para reforçar a capacidade de resposta das Urgências, geral e pediátrica, aos utentes suspeitos ou infectados com o novo coronavírus.
Com a UCI lotada, os profissionais de saúde acabam por entrar em desespero quando não se consegue responder a todos, ou salvar todos. “Sentimos a impotência de darmos tudo e o nosso tudo já não ser suficiente”, diz, criticando que fora do hospital “não se esteja a dar tudo” para travar esta catástrofe. “Há enfermeiros sem férias desde Março. Estamos todos cansados”, diz, esperando que as novas medidas do Governo ajudem a curva de infecções a diminuir.

“Não somos super mulheres, somos falíveis e temos limites”
Depois de 10 meses no Covidário da unidade hospitalar de Abrantes, Sónia Gonçalves meteu baixa em Janeiro. “Sentia um cansaço enorme, comecei a ter parestesias nos pés, alterações ao nível cardíaco”, conta. Fez exames de despiste, tentou repor energias e no mesmo mês, a 28 de Janeiro, tem marcada a viagem de regresso ao hospital.
“Não somos super homens e super mulheres, somos falíveis e temos limites. Fala-se que está difícil, mas não é de agora. Nós, profissionais de saúde, já levamos meses de trabalho nestas condições. Sim, estamos cansados”, revolta-se a enfermeira, antes de explicar que há cada vez mais doentes e cada vez menos recursos humanos para os tratar.
O trabalho é exigente e muito duro do ponto de vista físico e psicológico. Levantam-se e viram-se doentes que pesam o dobro do peso e que a Covid-19 deixou tão fragilizados que requerem o dobro dos cuidados e uma máquina para os ajudar a meter ar nos pulmões. “Para dificultar, estarmos fardados dos pés a cabeça torna tudo mais penoso”, elucida.
Sónia Gonçalves tem 37 anos e 15 de enfermeira. Os meses de pandemia foram os únicos em que lhe faltaram as forças para sair de casa e ir trabalhar. “Quase todos os dias, mas vão-se buscar”, diz, arriscando depois a generalização: “Já todos pensámos que não queremos mais ser enfermeiros porque estamos fartos disto tudo”.
Por causa da pressão, o Centro Hospitalar do Médio Tejo (CHMT), que agrega as unidades hospitalares de Abrantes, Tomar e Torres Novas, já aumentou a capacidade de internamento para doentes com Covid-19 para as 130 camas (mais 26). Nos cuidados intensivos acrescentaram-se mais cinco às onze que já existiam, obrigando o CHMT a transferir profissionais de saúde para a medicina intensiva e a suspender a actividade cirúrgica, à excepção de cirurgias urgentes.
“Só a fechar serviços se torna possível receber mais doentes Covid-19”. Mas há limites: “Os médicos e enfermeiros não se multiplicam e as camas não tratam doentes”, alerta, exemplificando que numa ala de Medicina “se no turno da noite descompensarem dois doentes ao mesmo tempo, os três enfermeiros não conseguem sequer olhar para os outros 24”.
Nesta unidade de Medicina, os doentes são maioritariamente idosos. Os mais novos estão na UCI, por serem os que têm “mais hipóteses de recuperação”. No último mês e meio é assim, priorizam-se cuidados. “Se tem que se decidir salvar um doente com noventa anos ou alguém mais novo que seja autónomo, trabalhe e tenha filhos dependentes é por este último que optamos. Por isso, é que o meu serviço está com doentes mais velhos. Os mais novos e urgentes vão directos para os intensivos”, explica.
Em todos os casos há algo em comum: “o medo de morrer, de nunca mais ver a família, de não haver despedida”. E isso acontece, embora neste hospital, na unidade de medicina, as recuperações sejam superiores aos óbitos. Para diminuir a tensão, a equipa de enfermagem faz a partir de tablets do hospital chamadas de vídeo para as famílias dos doentes. “Mas o tempo é tão escasso e somos tão poucos que muitas vezes a chamada tem de ficar para o dia seguinte”. Por vezes, já não há dia seguinte.
Há sempre um nó na garganta em alguém que ouve uma destas chamadas. “Lembro-me de um senhor que achava que nunca mais ia ver a mulher. Não tinham filhos e morria de medo de a deixar sozinha”, conta a enfermeira que prefere recordar os casos difíceis, mas felizes”. Como o da mulher de 36 anos, doente com Covid-19 e obesa. “Estava ventilada, não sabia quem era, qual era o seu nome ou o dos filhos. Deixou de conseguir levantar-se ou até virar-se na cama, mas houve um dia em que teve alta e saiu daqui a andar”, conta.

“Chegamos ao final do turno alagados em suor”
No Hospital Vila Franca de Xira a capacidade de internamento de doentes com Covid-19 atingiu o limite. As doze camas dos cuidados intensivos estão ocupadas e das 126 camas em enfermaria as vagas oscilam entre as duas e as três. Desde 13 de Janeiro que a enfermaria de pediatria passou a “receber adultos sem Covid-19”, havendo casos que, dias mais tarde, acabam por se confirmar positivos e “são transferidos para o Covidário”, dá conta a enfermeira de pediatria Seomara Oliveira. Alerta que “a equipa é de pediatria com cuidados direccionados para crianças e não adultos”, mas que tiveram que se adaptar a esta nova realidade.
“Até há uma semana estávamos a conseguir controlar, mas neste momento a equipa de pediatria está a perceber como é que os restantes colegas estão”, diz a enfermeira, residente em Santo Estêvão, que na noite anterior saiu do turno às 00h30 e às 07h30 já estava a caminho do hospital. “Já pomos em causa o que estamos a fazer. Às vezes dou por mim a confirmar três vezes a medicação que estou a dar ao doente”, conta, tentando imaginar como estará um profissional que esteja há quase um ano a trabalhar no limite.
Criticando as medidas brandas do Governo no Natal e Passagem de Ano, mas ainda mais aqueles que se aproveitaram para se juntar em grandes grupos, a enfermeira lamenta que faltem ao respeito “aos profissionais de saúde que estão esgotados e em número insuficiente” para controlar o caos. “Chegamos ao final do turno alagados em suor e do lado de fora as pessoas não conseguem perceber o quão caótico está o hospital. Só peço, por favor, que fiquem em casa”.
Com os hospitais em situação de catástrofe e as equipas de enfermeiros abaixo das dotações recomendadas, a Ordem dos Enfermeiros declara que estes profissionais “não se encontram em condições de garantir a prestação de cuidados em segurança e com qualidade, nem a vida das pessoas”. Nesse sentido, para “acautelar a eventual responsabilidade disciplinar, civil ou mesmo criminal dos doentes a seu cargo a Ordem disponibilizou a 19 de Janeiro uma declaração de exclusão de responsabilidade.

Todos os dias, três mães deixam os filhos para mergulhar na catástrofe

Seomara Oliveira tem três filhos, Bárbara Rodrigues tem um, tal como Sónia Gonçalves. Todos os dias as enfermeiras deixam os filhos entregues ao pai ou aos avós para mergulharem numa catástrofe. O tempo para a brincadeira diminuiu, a paciência também, só o amor continua igual.
“Sou enfermeira mas não deixei de ser mãe. Durante dois meses tive que ver o meu filho do cimo de uma escada”, afirma a enfermeira do Hospital de Santarém e mãe solteira que diz ter a sorte de poder contar com a ajuda do seu pai e madrasta. Agora, com a escola fechada durante 15 dias, pondera meter baixa para ficar com o filho, de nove anos, por “falta de alternativa”.
Para Seomara Oliveira não é fácil, e por mais que tente chegar a casa descontraída, nas últimas semanas está “demasiado cansada para lhes dar atenção”. Com duas filhas de seis e quatro anos e um filho de apenas dois, a enfermeira de Santo Estêvão encontra no marido, pais e sogros “o grande apoio”.
Sónia Gonçalves, divorciada e a residir no Tramagal, tem de recorrer aos seus pais para ficarem com o filho quando os turnos são nocturnos ou quando o serviço se atrasa. No início, o filho pedia-lhe para não ir trabalhar. Sónia foi sempre, mesmo quando o medo de ser infectada pelo vírus desta pandemia era avassalador. Há um ano que não beija os pais, nem se senta numa esplanada de café.

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