Aborto espontâneo: o drama de perder um filho ainda no ventre
A perda gestacional é comum, sobretudo no primeiro trimestre da gravidez, mas pouco se fala das cicatrizes, físicas e emocionais, que deixa numa mulher. Carla Alcaparra e Inês Mendes contam a O MIRANTE a dor silenciada, do luto e incerteza, depois dos bebés que perderam. Um luto que a deputada não inscrita Cristina Rodrigues quer ver plasmado na lei.
O aborto espontâneo é uma complicação na gravidez mais comum do que se pensa e uma experiência de dor para a mulher, muitas vezes envergonhada, incompreendida e vivida em silêncio. O aborto espontâneo acontece numa em cada quatro gravidezes. Sem aviso prévio a felicidade de estar à espera de um filho transforma-se num pesadelo traumático.
Carla Alcaparra tem 31 anos, teve três gravidezes e duas delas terminaram antes de tempo, com a morte dos bebés às cinco e 28 semanas. Se lhe perguntarem dirá sempre: “Tive três filhos e senti amor por todos”.
Acompanhada de uns sapatos de lã cor-de-rosa do tamanho dos seus dedos, Carla Alcaparra espera-nos no jardim das traseiras da sua casa, em Benavente. A conversa não vai ser fácil, avisa logo. “Ainda há muita dor à mistura, mas é preciso falar do luto. Não se esquece a perda de um filho só porque ele não existiu para a sociedade”, diz a O MIRANTE antes de recuar até Agosto de 2019.
“Estava grávida de cinco semanas quando senti dores fortes na parte baixa da barriga e começo a sangrar pelas pernas abaixo. Nesse momento soube que ia perder o meu bebé”, recorda. A confirmação chegou no hospital. “Fui fazer uma ecografia transvaginal - procedimento comum no início da gravidez - e a médica diz-me que fiz um aborto completo. Saí a chorar”.
Passado um mês Carla volta a engravidar. Às seis semanas ouve pela primeira vez os batimentos cardíacos do bebé, ainda embrião e às 13 fica a saber que está grávida de uma menina. “Demos-lhe o nome de Leonor”. Às 22 semanas, numa ecografia dizem-lhe que “há algo de errado com a cabeça do feto”. Enquanto se formava, a pequena Leonor desenvolvia espinha bífida, uma malformação congénita que se desenvolve nos dois primeiros meses de gestação em que ocorre um desenvolvimento incompleto do cérebro, da medula e das meninges.
“Como se reage quando nos dizem que a nossa filha não pode vir ao mundo e que se vier não viverá mais do que uma semana? Morri por dentro”. Carla Alcaparra e o companheiro viajaram até Inglaterra e Bélgica em busca de soluções, mas aos sete meses de gravidez os médicos disseram-lhe que o melhor para a bebé era não a ter. Carla só ouvia dentro da sua mente: “Estás a desistir da tua filha”.
Às 17h00 de 26 de Fevereiro de 2020 entra no hospital para viver a experiência mais dura da sua vida. Entrou grávida de sete meses, mas “sabia que ia sair da maternidade de barriga e braços vazios”. As contracções provocadas pela medicação começaram de madrugada e a sua filha nasceu horas depois com o coração parado. “Vesti-lhe o fatinho branco, embrulhei-a na manta e peguei-a ao colo. Nenhuma mãe deve passar por isto”, diz emocionada. Passaram 13 meses e a mala da maternidade continua feita, intocável, porque desfazê-la é apagar parte da história de vida da bebé que não chegou a viver fora do útero da sua mãe.
“Fiquei muito frágil,
achava que não conseguia ter mais filhos”
Ter dois filhos era o sonho de Inês Mendes, mas antes de conseguir engravidar de Diogo, o seu segundo filho, passou pela dor e incerteza depois de ter sofrido dois abortos espontâneos. Na primeira consulta médica sentiu uma felicidade imensa, porque estava grávida, seguida de uma tristeza profunda porque não havia batimentos cardíacos. Os momentos que se seguiram não foram fáceis. Partilhou a dor com o marido, José Oliveira e escondeu-a da filha, Íris, na altura com oito anos.
A médica disse-lhe para fazer a vida normal e esperar que o organismo expulsasse naturalmente o embrião, o que não aconteceu. Teve que ser internada para lhe ser provocada a expulsão. “Lembro-me que o embrião era do tamanho de uma noz. São momentos difíceis de recordar”, confessa.
Inês Mendes não desistiu apesar do marido ter ficado mais retraído com a hipótese de tentarem novamente ter um filho. Engravidou meses depois, mas só soube no dia em que estava no trabalho e ficou ensanguentada. Não percebia porquê, tinha feito um teste de farmácia dias antes que tinha dado negativo. No Hospital de Santarém foi directamente para a maternidade, onde lhe confirmaram que tinha sofrido um aborto espontâneo. “Nessa altura fiquei muito frágil, achava que não conseguia ter mais filhos. É uma dor difícil de explicar”, afirma.
O marido não queria novas tentativas para não ver Inês sofrer novamente. “Disse-lhe que seria a última tentativa”. E à terceira correu tudo bem. Só contou à filha que estava grávida às 10 semanas de gestação porque não aguentou não partilhar a felicidade com Íris que lhe pedia tanto um irmão. Chorou de felicidade com a novidade.
A menina, de 14 anos, só soube que a mãe sofreu dois abortos antes do nascimento do irmão quando a mãe aceitou partilhar a sua história com O MIRANTE. “São dores tão nossas e tão profundas que não quis que a minha filha se apercebesse de nada. Além disso, não é algo que se fale habitualmente”, explica.
Apesar do parto difícil, Diogo nasceu em Novembro de 2016. Inês tem a família com que sempre sonhou, mas às vezes ainda recorda os “momentos menos bons”, como lhe chama. “Acredito que dou mais valor à vida pelas dificuldades que tive em engravidar do meu segundo filho”, sublinha.
Pais e mães devem ter direito ao luto
Recentemente a deputada não inscrita Cristina Rodrigues entregou no Parlamento um projecto de lei para garantir que os pais e mães que sofram uma perda gestacional tenham direito até três faltas justificadas consecutivas, sem perda de remuneração. Actualmente o Código do Trabalho admite licença de 14 a 30 dias, para a mulher, mas não período de luto. O assunto está em fase de discussão.
Em 2016, a Associação Projecto Artémis entregou no mesmo órgão uma petição assinada por mais de quatro mil pessoas pedindo a criação do Dia Nacional para a Sensibilização da Perda Gestacional (15 de Outubro). Pedido que foi negado com base no parecer da Comissão Nacional da Saúde Materna da Criança e do Adolescente que entendeu “ser preferível a criação do Dia Nacional para a Sensibilização do Luto Parental” com o objectivo de chamar a atenção para as necessidades específicas de apoio às famílias em que ocorra a morte de um filho, “antes ou após o nascimento”.