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O Lar de Santo António em Santarém acolhe meninas desfavorecidas há 150 anos
Maria Rufino está ligada aos órgãos sociais do Lar de Santo António em Santarém há 25 anos

O Lar de Santo António em Santarém acolhe meninas desfavorecidas há 150 anos

Maria Emília Rufino é presidente do Lar de Santo António, mais conhecido como Lar das Raparigas, desde 2007 e espera que este seja o seu último mandato, pois defende a renovação das equipas. A professora aposentada explica que antigamente as crianças e jovens são encaminhadas sobretudo por situações de violência ou desestruturação familiar. A instituição está a celebrar século e meio de existência e já não é só um lar para meninas, cuidando também de grupos de irmãos

Quais são as principais diferenças das causas para a institucionalização das jovens no lar relativamente há algumas décadas?

Antigamente vinham mais crianças órfãs e por questões de pobreza. Não havia Segurança Social nessa altura. Li várias actas antigas desta instituição e normalmente vinham a pedido das famílias, porque não podiam ter as filhas em casa, não havia dinheiro para as criar. Hoje já não é a pobreza que faz com que as crianças venham.

Deve-se a quê?

Hoje é mais a desestruturação familiar, a necessidade de proteger as crianças de vários factores, como a violência. Por vezes, também há alguma incapacidade da família em lidar com as crianças. Actualmente a entrada depende da Segurança Social, das CPCJ e dos tribunais. Nenhuma criança vem para cá que não tenha tido uma equipa que previamente estudou o problema e que optou por esta solução, normalmente com o apoio da família.

Quais são os principais traumas de algumas crianças e jovens?

Todos os pais gostam dos filhos. Uns demonstram melhor esse amor do que outros. É muito complicado definir. O que tenho sentido ao longo dos anos é que quem sai daqui com sucesso são crianças que, apesar de tudo, se sentem amadas pelos familiares. Se não se sentirem amadas é muito complicado.

Há crianças amadas pela família que precisam de ser institucionalizadas?

Tivemos um caso em que a mãe morreu e o pai ficou sozinho com os filhos e não tinha qualquer apoio de retaguarda familiar. Por isso, até foi o pai que pediu ajuda. Saber pedir ajuda quando é preciso é um acto de amor.

As crianças devem vir para as instituições o mais cedo possível...

Há casos em que seria preferível as crianças terem vindo mais cedo. Há uns anos recebemos uma jovem sinalizada desde muito cedo. Emocionalmente havia já uma grande instabilidade e aí é sempre difícil. Ela poderia ter sido acompanhada mais cedo e seria mais fácil ajudá-la. Quanto mais tarde vêm, mais mágoas e instabilidade essas meninas sofrem e torna-se mais difícil reabilitá-las. Neste caso, era uma menina com uma capacidade intelectual muito boa, que foi prejudicada pela falta de estrutura familiar.

Como se poderia resolver estes casos mais complicados?

É preferível ser feita uma intervenção mais cedo. Tentar trabalhar as famílias a partir daí. O nosso trabalho não é afastar as famílias, só em casos de violência. De resto, o nosso papel é trabalhar com as famílias para se reconstituírem e melhorarem processos.

Ainda existe estigma por serem crianças e jovens institucionalizados?

Ainda existe. Tentamos, o mais possível, que não exista e estão integrados nas escolas. O problema é que, por vezes, as escolas até dão protecção excessiva. Gostaríamos que fossem tratados tão normalmente quanto possível. Nem sempre acontece.

Como se combate esse estigma?

É difícil. Houve situações que até eu própria levei algum tempo a perceber.

Como por exemplo?

As jovens dizem que estão no colégio e não num lar. É uma forma de se protegerem. Tentamos amenizar a situação. Mostrar que são acolhidas e cuidadas mas não proteger em demasia e não as apresentar como meninas de lar como acontecia antigamente.

Estas instituições deveriam ser mais valorizadas?

Confesso que me sinto muito magoada e incomoda-me quando ouço falar das instituições como o pior de tudo. As instituições são da sociedade civil, são um modo da sociedade civil mostrar que se preocupa com os seus membros mais frágeis. Quem está no terreno pode errar, certamente que erra, mais do que deseja. Mas qual é o pai ou mãe que não erra? A nossa intenção é ajudar. Estas casas têm experiência de muitos anos e isso deve ser valorizado.

“Estas casas acarretam muita responsabilidade”

É presidente do Lar de Santo António desde 2007 e está em cargo de direcção na instituição há 25 anos. É o seu último mandato?

Espero que sim, porque é sinal de que existem pessoas para sucederem a esta direcção. Sempre defendi que deve haver renovação frequente dos cargos, sobretudo em instituições como estas. Estas casas são muito importantes mas acarretam muita responsabilidade a vários níveis, ainda por cima por ser um trabalho voluntário.

Está todos os dias na instituição?

Venho todos os dias porque gosto e porque moro perto. O Lar de Santo António, com uma organização tão grande, não precisa de mim todos os dias. Neste momento tenho maior disponibilidade e gosto de aqui estar, ver como estão todos e sobretudo as crianças e jovens do nosso lar. Estou reformada, mas quando trabalhava e era presidente tratava dos assuntos do lar durante a noite. Desde que se goste arranja-se tempo. É uma questão de organização.

Quando foi convidada para os órgãos da instituição foi uma surpresa?

Não estava à espera mas tinha cá estado antes e fiquei a achar que a instituição precisava de apoios. Além disso, tinha uma aluna que me preocupava e quando surgiu o convite do doutor Victor Bezerra pensei que seria uma oportunidade.

Como assim?

A aluna vivia nesta instituição e a atitude dela e a sua relação com os estudos preocupavam-me. Estas meninas têm vidas que não são fáceis e nesses casos as escolas ressentem-se, porque as mágoas das jovens reflectem-se na sua pouca vontade de estudar. Encarei como uma hipótese de poder ajudá-la mas hoje é uma mulher formada, com a vida organizada e tem a sua própria família. Ela não sabe da minha preocupação com ela mas sinto orgulho por ter conseguido vencer na vida.

Continua a acompanhar as crianças e jovens do Lar de Santo António?

Continuo mas já é de uma maneira que, pessoalmente, não gosto. Como tenho funções de maior responsabilidade não tenho tanto tempo para estar com elas. Quando trabalhava vinha dar aulas e explicações e tinha outro contacto, muito mais próximo, do que consigo ter hoje. No entanto, faço questão de estar todos os dias com todos, nem que seja só por um bocadinho.

A professora apaixonada por África que não esquece o assassinato do irmão

Maria Emília Rufino nasceu em Catumbela, Angola, mas viveu no Lobito até aos 17 anos, altura em que foi para Coimbra estudar Filologia Germânica, curso que não existia em Angola. As boas memórias da vida na ex-colónia portuguesa ficaram para sempre ensombradas pelo assassinato de um dos seus irmãos, em 1977. Rui Coelho era secretário do ministro do Interior de Angola e durante muito tempo as causas e o local da sua morte estiveram envolvidos em mistério. “Para muitos a morte do meu irmão foi a salvação de outros”, afirma emocionada.

Há cerca de dez anos regressou a Angola e garante ter sido uma viagem muito feliz. Emília Rufino assentou arraiais em Santarém por circunstâncias da vida. Conheceu o seu marido, cirurgião, em Alcanena, onde começou a trabalhar como professora de Inglês. Entretanto o marido foi fazer o internato de especialidade em Santarém e acabaram por ficar na cidade. Têm três filhos e três netos.

Está ligada aos órgãos sociais do Lar de Santo António, em Santarém, há 25 anos e é presidente desde 2007. A instituição está a comemorar 150 anos e os responsáveis esperam conseguir celebrar a data no próximo ano. Recentemente, compraram um terreno onde pretendem construir uma creche, na zona da Senhora da Guia. A intenção inicial era criar essa valência nas instalações do lar mas os condicionamentos de construção no centro histórico de Santarém não o permitiram.

O lar de Santo António começou por ser um asilo que albergou oito meninas. Foi crescendo e actualmente não é só um lar de raparigas, porque tem a seu cuidado grupos de irmãos. Neste momento, são 17 crianças e jovens entre os quatro e os 14 anos. “Optou-se por manter os irmãos juntos para não terem uma perda afectiva tão grande”, explica Emília Rufino.

A presidente diz que tentam que o lar seja uma casa de família. Durante a pandemia não foi fácil mas os jovens entenderam e Maria Emília Rufino agradece a toda a equipa do lar que, garante, foi inexcedível para que tudo corresse pelo melhor.

Nos tempos livres, Maria Emília Rufino gosta de trabalhos manuais e de ler. “Tenho a felicidade de fazer o que gosto e isso é um privilégio”, assume. A residir em Santarém há 44 anos, a professora aposentada afirma que faz falta a Santarém que as pessoas acreditem na cidade e apostem nela.

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