Professores de casa às costas e longe da família
O atribulado percurso de muitos professores até chegar a ambicionada estabilidade.
O concurso de colocação de professores mobiliza milhares de docentes e vira do avesso as vidas dos que ficam longe de casa. Vítor Canteiro organizou-se para um novo ano lectivo a 400 quilómetros da família. Ana Miranda fez as contas aos gastos e rejeitou a colocação. Para ambos o ano lectivo teve sempre o prazo de validade de um ano.
Fazer diariamente mais de 200 quilómetros entre Santarém e Alcabideche, concelho de Cascais, ou pagar um quarto a 400 euros e somar-lhe as despesas da residência onde mora com o filho. Fazendo contas, Ana Miranda, de 40 anos, professora de primeiro ciclo e educação especial diz que “ia ter de pagar para trabalhar”. Ainda ponderou, mas acabou por recusar a colocação este ano. “E não foi uma decisão de ânimo leve”, em nenhuma das quatro vezes que se viu “obrigada a rejeitar uma colocação”, em prol da estabilidade familiar.
“Nos primeiros anos andei com o meu filho de um lado para o outro, agora percebi que não posso continuar a sujeitá-lo à mudança de casa, de escola e amigos”, diz, justificando o facto de se ir “sujeitando aos horários incompletos”, que apanha mais perto de casa, em ofertas de escola e que concilia com o trabalho de segurança numa empresa de carnes, em Rio Maior.
Concorrer é uma incerteza na qual Ana Miranda e milhares de professores contratados caem ano após ano. “Psicologicamente afecta-nos. Torna-se difícil conseguir uma vida estável quando não sabemos se conseguimos colocação e se estamos em condições de a aceitar”. Se já pensou desistir de vez? “Claro, mas chega a Julho e dou por mim a concorrer, porque ser professora continua a ser o meu objectivo de vida”.
“Todos os anos andamos a saltar de um lado para o outro”
Este ano o Ministério da Educação conseguiu divulgar mais cedo as listas de colocação de professores de mobilidade interna e contratação inicial, dando mais tempo para se prepararem para o arranque do ano lectivo. E Vítor Canteiro, de 44 anos, não deixou escapar a oportunidade. Pôs a sua capacidade logística à prova e mudou de vida em três semanas.
Natural de Bragança, o professor de primeiro ciclo e educação especial mudou-se para um anexo, com um quarto e uma casa-de-banho (215 euros), a 400 quilómetros de casa, para poder leccionar durante este ano lectivo, no concelho de Alenquer. A mulher, que também é professora, conseguiu colocação no Porto, cidade onde vive com a filha de ambos, de nove anos.
“Todos os anos andamos a saltar de um lado para o outro. É muito difícil um professor contratado ficar mais de um ano na mesma escola, mas de certa forma já me conformei”, confessa Vítor a O MIRANTE, depois de já ter passado por escolas em Torres Novas, Aveiras de Cima e um pouco por todo o Alentejo. Resignado, sabe que este ano vai ser passado como tantos outros: longe, a visitar a mulher e a filha uma vez por mês e a restante família duas vezes ao ano, porque “não dá para mais, com o balúrdio em que ficam as viagens” entre combustível e portagens.
Mas o tempo que é dado aos docentes para mudar de vida é, muitas vezes, “praticamente nenhum”. No caso de Ana Miranda, a colocação saiu a 1 de Setembro de 2021 e tinha até dia 3 do mesmo mês para se apresentar na escola e começar a trabalhar. “Era suposto em tão pouco tempo arranjar estadia?”, questiona, vincando que mesmo que o ordenado permitisse sustentar duas residências “ninguém se organiza em tão pouco tempo”.
Professores começam a escassear nalgumas áreas
Efectivar em quadro de zona pedagógica (QZP) ainda é uma miragem para estes dois professores, cujos contratos vêm sempre com um ano de prazo de validade. Mais do que isso, “mesmo para quem está dentro da carreira e é efectivo num agrupamento de escolas a profissão não é atractiva” bastando, para isso, olhar para os modelos de avaliação, onde “o décimo e último escalão é [também ele] uma miragem”. O alerta é deixado pelo director do Agrupamento de Escolas Templários, em Tomar, e antigo dirigente sindical do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa, Paulo Macedo.
“Não faz sentido os professores passarem as passas do Algarve a mudar de casa e separar da família por um ordenado que não justifica” e é por isso que “muitos prejudicam as próprias carreiras não aceitando a colocação”, diz o dirigente escolar.
Na opinião de Paulo Macedo, o problema tende a piorar caso o “sistema muito pouco atractivo mesmo para os jovens professores”, que ainda não têm filhos ou grandes encargos financeiros, não sofra uma reviravolta. No agrupamento que dirige, uma turma de alunos passou um ano lectivo sem professor de francês e “se pensarmos na média de idades dos docentes, a sangria de professores que se vão reformar daqui a dois ou três anos vai ser catastrófica”. Não vai haver, vinca, professores “experientes para entrar”.
Não há falta de professores, há falta de incentivos
Experiência é na verdade uma qualidade que se torna difícil de alcançar para um professor. Vítor já esteve cinco anos sem colocação a “viver da agricultura e construção civil”. Ana Miranda esteve quatro anos sem concorrer, depois de ter andado de casa às costas entre Santarém, Vila Nova de Gaia, Chelas e Valongo.
Da primeira vez que aceitou uma mudança drástica, Ana Miranda “estava no fim da relação com o pai do filho”, na altura de quatro anos. “Só pensei no tempo de serviço que ia ganhar na esperança de um dia ficar mais perto de casa e poder vincular. Nessa altura estava na terceira zona de prioridade, já se passaram anos de serviço e ainda não cheguei à primeira”, diz.
Rejeitando a ideia de haver falta de professores - o que falta são “apoios e incentivos” para se poderem deslocar para sul, onde ficam a maior parte das vagas - Ana Miranda defende que o “Ministério da Educação precisa de repensar o sistema e dar qualidade de vida para que [os docentes] sintam gosto pela profissão”. Ao invés, completa, de se verem obrigados “a exercer algo completamente diferente” ou a mudar a sua vida e por arrasto mudar a das suas famílias.
Apoios de autarquias podem ser resposta ao problema
Professores, directores e sindicatos estão unidos na defesa da atribuição de apoios para o pagamento de despesas de professores deslocados, à semelhança do que acontece com juízes médicos. Subsídios de deslocação e habitação, programas de alojamento acessível ou um regime fiscal que contemple despesas com viagens e alojamento são algumas das propostas defendidas.
Para o presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE), Manuel Pereira, a solução passaria pela acção dos municípios onde faltam professores e que poderiam ponderar avançar com apoios. É na região de Lisboa e Vale do Tejo onde ficam mais vagas por preencher, resultado de baixas médicas e da aposentação de docentes.