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“O socorro não pode depender da boa vontade dos bombeiros voluntários”
Humberto Morgado é comandante dos Bombeiros Municipais de Tomar há cerca de oito meses

“O socorro não pode depender da boa vontade dos bombeiros voluntários”

Humberto Morgado assumiu pela primeira vez, em 24 anos de serviço, o cargo de comandante nos Bombeiros Municipais de Tomar. Natural de Abrantes, mas a viver em Leiria há mais de quinze anos, trouxe rigor a uma corporação que gostava de tornar mais profissionalizada.

Humberto Morgado, 42 anos, considera-se um homem prestável e com vontade de deixar a sua marca por onde passa. O rigor com que assumiu, há cerca de oito meses, a função de Comandante dos Bombeiros Municipais de Tomar permitiu-lhe dar uma volta de 180 graus na corporação que, nas suas palavras, estava desleixada e sem condições de trabalho para os cerca de 60 elementos que a compõem.

A visita de O MIRANTE ao quartel serviu para mostrar o que já foi feito e o que ainda falta fazer. Pai de uma filha, garante que está numa missão e que nos próximos anos pretende aumentar o efectivo, principalmente em termos de bombeiros sapadores. O seu tempo de serviço nas corporações de Abrantes, Santarém e Leiria foi mais do que suficiente para afirmar, com convicção, que a classe deve ser mais profissionalizada e que o socorro não pode depender da boa vontade dos voluntários depois de ouvirem o toque da sirene.

Nesta entrevista, critica a discrepância que existe nos apoios da administração central às associações humanitárias de bombeiros, em relação às municipais, sublinhando que o prejuízo vai todo para as autarquias. O comandante fala ainda do aumento significativo das mulheres nos efectivos e assume que não gosta de ser considerado um “soldado da paz” pela condescendência que a expressão carrega.

Quando se fala em bombeiros é comum usar-se o termo heróis. Sente o peso dessa responsabilidade?

Não sinto porque não considero que somos heróis. Somos, isso sim, profissionais que têm tarefas para cumprir, como todas as pessoas que trabalham.

Então não gosta da expressão “soldado da paz”?

Não gosto, embora perceba que pudesse já ter feito sentido. Não tem de existir condescendência pelo que fazemos, como muitas vezes acontece. Temos uma carreira, direitos e deveres. Temos de olhar para os bombeiros de uma forma profissional para que a própria classe sinta responsabilidade em servir e servir bem. Também acho que os corpos de bombeiros se devem abrir à população. Ainda há muita gente que pensa que não temos nada para fazer e isso é mentira!

Devia haver mais bombeiros profissionais?

Antes de lhe responder a isso deixe-me dizer-lhe, e em relação à imagem que passamos para fora, que um dos aspectos que mudei desde que cheguei foi mudar o fardamento. O antigo estava velho e não fazia jus ao que pretendemos fazer aqui: ter mais profissionalismo, formação e competência.

Não foi um preciosismo?

Não, e explico-lhe porquê. A anterior farda pertencia aos corpos dos bombeiros voluntários e nós somos um corpo misto, que integra bombeiros sapadores e voluntários. Sendo este um corpo do município, tanto profissionais como voluntários regem-se pelas mesmas regras. É um “pormaior” que transmite uma mensagem e a doutrina que queremos seguir.

Sobre a profissionalização dos bombeiros…

Defendo-a com unhas e dentes! Por alguma razão temos actualmente, e durante seis meses, uma formação em Lisboa para capacitar os nossos elementos. Há os corpos profissionais e os mistos, que são suportados pelas autarquias, e as associações humanitárias de bombeiros voluntários, que recebem ajudas do Estado e dos municípios. Na minha opinião acho que todas as corporações deviam ser profissionais, complementadas pelo serviço voluntário. O socorro não pode estar à espera da vontade dos voluntários em aparecerem ou não ao toque da sirene. As pessoas têm o direito de serem socorridas de forma eficaz 24 horas por dia, 365 dias por ano.

Na época de incêndios isso é mais difícil de conseguir?

Isso é um flagelo e obviamente que os voluntários são um reforço importantíssimo. Mas o socorro existe durante todo o ano e não podemos estar à espera da boa-vontade dos voluntários. Até porque a formação de um bombeiro profissional demora 1.100 horas, enquanto a de um voluntário são 250 horas. Por isso defendo a profissionalização, termos pessoas mais capazes para lidar com as adversidades que alguns socorros implicam.

O concelho de Tomar tem dimensão para suportar um corpo profissional?

Tem dimensão a mais em termos territorial, o problema é que a autarquia não consegue suportar os custos, porque a nível populacional é um concelho muito reduzido. Dou-lhe um exemplo: em Coimbra o corpo é totalmente profissional e serve uma população com 140 mil habitantes e 320 km2. Em Tomar a área é maior, com 350 km2, mas apenas 36 mil habitantes. Implicaria custos enormes.

Já encontrou a razão para haver cada vez menos voluntários nas corporações?

Não sei responder em concreto. Na nossa corporação inscreveram-se 11, compareceram 5 e um também já desistiu. A sociedade está mais exigente, os salários são baixos em qualquer emprego e é muito difícil motivar gente para aderir à causa voluntária. Percebo que o tempo, nestas condições, valha ouro. Ainda assim, a nossa companhia tem 62 bombeiros, em que 28 são sapadores e os restantes estão em regime de voluntariado.

São elementos suficientes para dar resposta?

Há uma clara falta de efectivos, por isso temos 17 bombeiros a fazer formação para se tornarem profissionais. Já apresentei como sugestão à presidente da câmara, Anabela Freitas, termos a curto-prazo 60 sapadores e 30 voluntários para o serviço que temos.

Acontece muitas vezes virem corporações de fora prestar auxílio?

Infelizmente ainda acontece muito, principalmente porque ainda há défice de veículos e equipamentos. Tem sido feito um esforço muito grande para dotar a companhia de novas condições porque ainda temos muitos EPI (Equipamentos de Protecção Individual) a precisar de renovação. Vão ser necessários cerca de 115 mil euros de investimento.

“TEMOS TIDO CADA VEZ MAIS INCÊNDIOS URBANOS”

Qual é o grosso das vossas ocorrências?

Os bombeiros estão inseridos na divisão da Protecção Civil, onde se inserem o serviço municipal, o gabinete técnico florestal e o gabinete médico-veterinário. Muitas vezes depende de nós, principalmente fora do horário de expediente, fazer recolha de animais feridos. O serviço de ambulância no socorro a acidentes é o mais requisitado. Em relação aos incêndios há um facto curioso; no mês de Setembro tivemos oito incêndios urbanos e sete florestais. Um dado estatístico muito pouco comum.

Os municípios deviam investir mais na atribuição de apoios sociais aos bombeiros?

Isso já está a acontecer para quem é voluntário uma vez que prestam um serviço gratuito e é uma forma de motivação. Segundo sei, o município de Tomar também vai apostar nos apoios ao nível do IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis). Também já existem algumas regalias da ANPC (Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil) e da Liga dos Bombeiros Portugueses. Por exemplo, quem é estudante tem apoio no pagamento das propinas e quem tem filhos tem ajuda nas mensalidades da creche.

É injusto que as associações de bombeiros voluntários tenham mais apoios do Estado a que as corporações municipais?

Há realmente uma grande discrepância na atribuição de verbas entre os dois tipos de regime, a meu ver, pouco perceptível e muito desigual. Os municípios com corpos profissionais são penalizados a 100%, embora já exista algum financiamento para aquisição, sobretudo, de viaturas. O problema é que as associações humanitárias recebem apoios directamente do Estado e ainda são contempladas no orçamento anual das autarquias.

Como olha para o papel das mulheres nas corporações?

Na nossa equipa já temos duas bombeiras sapadoras e quatro bombeiras voluntárias. No curso para sapadores temos cinco e no voluntário temos uma. Ou seja, está a evoluir em termos de adesão. Se formos falar em mulheres comandantes, não é assim tão simples porque é um lugar por concurso.

Desde que chegou qual foi a situação mais delicada que viveu?

Em 24 anos de serviço nunca tinha visto nada como o incêndio que ocorreu em Agosto, na antiga Serração Freitas Lopes, nas Calçadas. Claro que já vivi outras mas, como agora sou comandante, as situações aumentam em termos de intensidade e impacto psicológico. Gostava de deixar palavras de agradecimento às corporações que nos vieram ajudar.

Quais são as ocorrências que mais marcam um bombeiro?

Os acidentes que envolvem crianças e em que somos os primeiros a chegar ao local. É traumatizante.

Quantas vidas já salvou?

Isso não se conta! Trabalhei muito em transporte de ambulância e presenciei acidentes muito graves. Um bombeiro deve limitar-se a fazer o seu trabalho, sem pensar que tem obrigatoriamente de salvar uma vida, porque isso é uma pressão muito grande. Por isso insisto que os bombeiros devem ter formação especializada e serem o mais profissionais possíveis.

“Vim para Tomar para completar uma missão”

Continua a viver em Leiria. Tomar não é apetecível para a sua família?

Já pensei nisso mas estou em comissão de serviço temporária, renovada a cada três anos. Mantenho a minha carreira e todas as regalias que tenho como funcionário público na Câmara de Leiria, só que vim numa missão para Tomar. Conto estar aqui pelo menos cinco anos. Considero que o comando dos bombeiros deve ser renovado de tempos a tempos para não ganhar vícios e dar oportunidade a novas visões.

Já teve tempo para conhecer o concelho?

Sou natural de Abrantes e fui bombeiro naquele concelho de 1995 a 2001. Depois fui para os Sapadores de Santarém até 2004 e pedi transferência para Leiria, onde me mantive, como chefe de serviços, até vir para aqui em Janeiro de 2021. Respondendo à sua pergunta, já conheço este lindo concelho há muito tempo (risos).

É a sua primeira experiência como comandante. Como classifica o seu estilo de liderança?

Gosto muito do rigor e de cumprir com a doutrina. Sendo um corpo de bombeiros hierarquizado considero que se deva adoptar um estilo um pouco autoritário uma vez que tudo depende de ordens de serviço e de normas internas. No entanto, como as equipas são multidisciplinares tem de haver tolerância e compreensão desde que continue a existir o respeito entre todos os elementos.

Quer dizer que dá muitos puxões de orelhas?

Muitos e não tenho problemas nenhuns com isso (risos).

Dá-se bem com o poder político de Tomar?

Nunca fui grande fã de política, muito menos alguma vez ambicionei sê-lo. O meu objectivo é melhorar o socorro e a prevenção em todo o concelho de Tomar. Tenho interesse na política na medida em que preciso da ajuda de todos os intervenientes para conseguir alcançar os objectivos.

Porque quis ser bombeiro?

Na altura estudava no liceu e, se calhar, mais de duas dezenas de alunos eram bombeiros. Queria sair da minha zona de conforto e conviver com outras pessoas. Os tempos eram outros e havia remunerações para os voluntários (ganhava 275 escudos). Actualmente só há uma gratificação na altura dos fogos.

Deixou os estudos de parte?

Na primeira fase da minha vida sim, mas entretanto recuperei. Quando cheguei a Leiria fiz a licenciatura em Protecção Civil depois, em Castelo Branco, fiz licenciatura em Engenharia de Protecção Civil e mais recentemente, fiz um mestrado na Universidade de Coimbra de Segurança Contra Incêndios.

Consegue conciliar a sua vida pessoal e profissional?

O desafio tem sido enorme porque é a minha primeira assumpção como comandante. Nos primeiros sete meses do ano tive muitos dias em que chegava ao quartel às 08h00 e saía à meia-noite. Agora já entrou tudo em velocidade cruzeiro.

No que consiste o trabalho de um comandante?

No que diz respeito à Protecção Civil é um trabalho que incide muito na prevenção e em acções de sensibilização. Em relação aos bombeiros é quando surgem as dores de cabeça: veículos, escalas de serviço, formações, entre muitas outras coisas. É um trabalho com muita burocracia e pouco operacionalidade…infelizmente!.

“O socorro não pode depender da boa vontade dos bombeiros voluntários”

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