Cavaco Silva: falar e escrever para o boneco
Aníbal Cavaco Silva é o exemplo do país de manhosos em que vivemos. Cavaco diz que vivemos num país com uma “democracia amordaçada”, mas não fala dos “Pandora Papers”, das Fundações, dos políticos que usaram a banca para traficare influências e muito menos fala do seu falhanço como primeiro-ministro durante 10 anos. Curiosamente, um dos maiores actos de censura foi durante um dos seus governos e calhou a José Saramago. E ninguém esquecerá jamais a recusa da pensão a Salgueiro Maia, o herói do 25 de Abril.
A opinião de Cavaco Silva sobre o estado do país foi notícia a nível nacional. O artigo de opinião do ex-primeiro ministro e ex-Presidente da República, que marcou uma época em Portugal, ocupou uma página do jornal Expresso da passada semana e está cheia de opiniões mesquinhas que são o espelho da sua personalidade como político.
Cavaco Silva queixa-se de vivermos num país com uma “democracia amordaçada” onde o “controlo do aparelho de estado e a subserviência da comunicação social” contribuem para o “silenciamento e o empobrecimento” do país. Mas foi num Governo de Cavaco Silva que José Saramago conheceu a censura que o impediu de concorrer a um prémio literário.
Quem viveu para contar o tempo em que Cavaco Silva dirigiu três governos durante uma década, e falhou redondamente a reforma administrativa do país, não pode ficar calado com tamanha pornografia opinativa. Miguel Cadilhe, que dirigiu o ministério das finanças durante cinco anos, acusou publicamente o seu líder de ser o pai do “monstro”, ou seja, do défice, um dos epítetos pelos quais ficou conhecida a dimensão da ruptura das contas públicas portuguesas. Segundo Miguel Cadilhe, foi durante o Governo de Cavaco Silva que a Administração Pública portuguesa se transformou na terceira mais cara da Europa. Curiosamente, foi também o Expresso a publicar as declarações de Cadilhe que só podem ficar na História para quem acompanha a vida política das marionetas portuguesas. O facto de Cavaco Silva ainda hoje fazer opinião, ainda que ao nível de um Comendador, e de Miguel Cadilhe se ter eclipsado da vida pública e política, só abona a favor deste último, já que Cavaco Silva governou Portugal durante uma década (1985 a 1995) e só deixou alcatrão, algum dele pouco utilizado, que custa os olhos da cara ao Estado português, que tem que pagar às concessionárias a falta de receitas do tráfego automóvel. Faltam os estudos para sabermos quantos milhares de milhões é que ainda custam estes investimentos que apagaram do mapa as políticas de aposta nos caminhos-de-ferro e na navegabilidade dos rios como acontece na maior parte dos países bem governados.
Mais grave ainda; pouco antes da falência do BES Cavaco Silva fez declarações que são uma vergonha para um país onde a justiça ainda não cumpriu o seu papel para com os lesados dos bancos que foram enganados por funcionários ao serviço de uma “máfia”. Cavaco Silva podia e devia usar as páginas dos jornais para criticar os capitalistas associados às notícias dos “Pandora Papers”, ou de outros processos que fazem de Portugal um país de terceiro mundo, onde a responsabilidade política no governo de instituições bancárias, como a Caixa Geral de Depósitos, foi durante anos a fio um instrumento do tráfico de influências políticas, o lugar onde o Estado português se deixou manobrar em nome de uma rede de privilegiados sem honra ou sentimentos de dever público.
É verdade que a imprensa portuguesa está moribunda e aprisionada; falta-lhe o investimento publicitário e, pior que tudo, leitores. Cada dia que morre um velho é menos um jornal que se vende. E, como sabemos, todos os dias morrem velhos. Cavaco Silva sabe que a Google, o Facebook, a Amazon e a Apple tomaram conta do mercado que ninguém regula nem tem ferramentas para regular. Por último: Cavaco Silva não fica na História só por ter deixado censurar uma obra literária do nosso Nobel da Literatura; fica acima de tudo por ter negado uma pensão ao capitão de Abril, Salgueiro Maia, quando pouco tempo depois não negou o mesmo pedido a dois antigos inspectores da extinta PIDE. 20 anos depois, Cavaco Silva redimiu-se com uma homenagem ao homem que partiu de Santarem com as suas tropas para libertar Portugal de um regime fascista mas foi pior a emenda que o soneto: Salgueiro Maia já tinha morrido. JAE.