uma parceria com o Jornal Expresso

Edição Diária >

Edição Semanal >

Assine O Mirante e receba o jornal em casa
31 anos do jornal o Mirante
Saúde mental: fechar os olhos aos sintomas não acaba com a doença
Ricardo Luciano é psicólogo nos Consultórios Médicos do Jardim em Almeirim e na Susana Brites Nutrição Clínica Saúde e Bem-Estar em Santarém. Elsa Teixeira ignorou os sintomas de depressão durante anos

Saúde mental: fechar os olhos aos sintomas não acaba com a doença

Elsa Teixeira quebrou o silêncio para falar de depressão, ansiedade e bipolaridade a propósito do Dia da Saúde Mental. O psicólogo Ricardo Luciano alerta que faltam respostas consistentes e clínicos num país onde a “saúde mental é maltratada”. Portugal é o segundo país europeu com maior prevalência de doenças psiquiátricas.

Dois filhos amados, uma casa, trabalho e um marido atencioso. Elsa Teixeira parecia ter tudo para ser feliz, mas não conseguia libertar-se de uma tristeza profunda acompanhada de uma revolta interior. Nos dias em que se ia mais abaixo não queria sair do quarto, tomar banho, trabalhar e nem os filhos conseguiam ser motivo de alento. Só queria “ficar no escuro, sozinha”. Durante anos ignorou todos os sintomas: os tremores, a dor no peito, o choro constante, o cansaço e o primeiro ataque de pânico que a derrubou.

“Não sabia o que me estava a acontecer. Fiquei toda encarquilhada, não conseguia mexer os braços, babava-me e urinava. Estava numa paragem de autocarro e achei que ia morrer naquele dia”. Ficou dois dias internada no hospital, mas depois de sair Elsa Teixeira, agora com 41 anos, não procurou ajuda. O motivo? A resposta divide-se entre o pensar tratar-se de uma fase passageira e o medo de “ser considerada maluca”.

Em Portugal mais de um quinto da população (22,9%) sofre de uma perturbação mental, sendo o segundo país com a mais elevada prevalência de doenças mentais da Europa. E apesar de “a pandemia ter trazido um outro tipo de leitura à sociedade acerca das patologias”, na opinião do psicólogo clínico e da saúde, Ricardo Luciano, “a saúde mental continua a ser maltratada”.

“Toda a gente me dizia que estava a ficar maluca”

Depois de tantos sintomas ignorados e desvalorizados chegou o dia em que Elsa Teixeira decidiu que ia suicidar-se. Escreveu cartas aos familiares e às autoridades, deu banho aos filhos e deitou-os. Depois ingeriu uma quantidade significativa de álcool e tomou um cocktail de 90 comprimidos. “Não era uma chamada de atenção e foi revoltante [não ter morrido] porque era o que queria”, conta Elsa Teixeira, sentada no sofá de casa em Castanheira do Ribatejo. Hoje lamenta “não ter pensado nos filhos nem no marido” e ter-se focado apenas em acabar com o seu sofrimento.

Este episódio, que foi replicado várias vezes, levou finalmente Elsa Teixeira a procurar ajuda psiquiátrica. Foi diagnosticada com ansiedade, depressão e mais tarde com bipolaridade (psicopatologia grave), das três a patologia mais difícil de lidar e compreender. Em Portugal existem aproximadamente 200 mil pessoas com este tipo de perturbação, que causa alterações muito incomuns de humor, energia, níveis de actividade e na capacidade para fazer tarefas do quotidiano.

“Toda a gente me dizia que estava a ficar maluca, mas hoje não tenho vergonha de mostrar o que sou. Vergonhoso seria ter estas patologias e continuar sem pedir ajuda”, reconhece partilhando que já passou por três internamentos em psiquiatria.

O não querer parar para pensar e admitir, o ter que trabalhar para sustentar a família, a falta de literacia em saúde mental ou o próprio estigma que permanece instalado na sociedade são motivo para adiar ou nunca procurar ajuda. E “o perigo em não tratar situações de psicopatologia moderada ou ligeira, como a depressão, é fazer com que a mesma se torne crónica, muito grave e mais difícil de se tratar”, alerta Ricardo Luciano, explicando que com o arrastar da doença a pessoa se vai sentindo “cada vez mais incapaz”.

Faltam psicólogos nos cuidados de saúde primários

O difícil acesso aos cuidados clínicos em saúde mental são, nalguns casos, outro motivo. Há cinco meses que Elsa Teixeira sente necessidade de falar com o psiquiatra, tendo como suporte “apenas a medicação” e consultas com a psicóloga de tempos a tempos. O acesso, diz, “é difícil no público e no privado é muito caro”, com as consultas a rondarem os 100 euros.

O que é preciso para mudar este paradigma, sublinha o psicólogo, é “garantir o acesso atempado aos cuidados e criar modelos de respostas consistentes na saúde mental”, porque “a resposta que existe não tem em conta os impactos psicológicos duradouros existentes na pessoa, com reflexo na produtividade e nos custos da saúde que resultam muitas vezes de crises económicas”. As pessoas não podem, por isso, “continuar a ser acompanhadas de uma forma estanque e sem supervisão”.

Mas para garantir um acompanhamento adequado e igualitário são precisos meios humanos, que não se coadunam com os “250 psicólogos que existem nos cuidados de saúde primários”, que se traduzem em “aproximadamente dois psicólogos por 100 mil habitantes”. Com parte das verbas da “tão falada bazuca europeia” devia-se, defende, criar “planos integrados de intervenção que passam também pelas redes sociais de cada concelho, sendo obviamente necessários mais recursos humanos”.

Estar alerta aos sintomas, que podem começar na infância

Passar muito tempo sozinho, ter falta de interesse na interacção social, sentir cansaço, ter dificuldade em adormecer e dormir bem, dores de barriga ou de cabeça sem explicação física, ser agressivo contra si próprio ou os outros, ingerir álcool ou drogas e mudar bruscamente de humor. Se estes sintomas persistirem por mais que duas semanas, alerta o psicólogo, é importante procurar ajuda.

E desengane-se quem pense que a psicopatologia se aplica apenas a adultos. “Existem nas crianças sintomatologias idênticas e a que os pais devem estar também atentos e procurar ajuda não devendo esperar para que a situação se resolva”. Só através de um diagnóstico e plano terapêutico é que a criança vai aumentar as suas “defesas psicológicas para que no futuro consiga lidar com o mundo real e as possíveis angústias”.

No caso de Elsa Teixeira a ajuda só veio na idade adulta, mas algumas das causas e sintomas acompanham-na desde a infância. Criada no seio de uma família de seis irmãos, onde predominava a violência doméstica, o álcool e a falta de afecto, sempre se sentiu revoltada. “Nunca fui uma criança feliz. Achava que merecia mais”. Hoje sabe que tem mais, mas também sabe que o caminho para a cura ainda é longo. “A doença não me deixa muitas vezes ver as coisas boas da vida. Mas hoje levanto-me com vontade de viver e se feliz”, conclui.

Saúde mental: fechar os olhos aos sintomas não acaba com a doença

Mais Notícias

    A carregar...

    Capas

    Assine O MIRANTE e receba o Jornal em casa
    Clique para fazer o pedido