uma parceria com o Jornal Expresso

Edição Diária >

Edição Semanal >

Assine O Mirante e receba o jornal em casa
31 anos do jornal o Mirante
“A primeira vez que calcei sapatos foi no exame da quarta classe”
António Simplício é uma cara conhecida de Santo Estêvão, a terra que o viu nascer e ainda hoje vive

“A primeira vez que calcei sapatos foi no exame da quarta classe”

António Simplício, 69 anos, presidente da assembleia-geral do Centro de Bem-Estar Social de Santo Estêvão.

Natural de Santo Estêvão, Benavente, António Simplício é um rosto conhecido da comunidade. Já foi tesoureiro da junta de freguesia, líder da comissão de festas e está ligado há 22 anos ao Centro de Bem-Estar Social de Santo Estêvão. Pintor de profissão, quando esteve na junta doava o seu ordenado mensal a associações da terra. Não guarda boas memórias da infância e sempre recusou ser uma pessoa derrotista, tendo sempre lutado para ter trabalho e construir uma vida melhor. Lamenta que a sociedade se esqueça frequentemente dos mais velhos e diz que se lhe saísse o Euromilhões doava a verba para construir um lar em Santo Estêvão.

Não guardo boas memórias da minha infância. Sou natural de Santo Estêvão mas tive uma infância muito dolorosa e passei por muitas dificuldades. Umas vezes havia trabalho, outras vezes não havia nada. Vivia-se muito com a ajuda de familiares. Saí da escola com 11 anos e fui logo trabalhar. Hoje em dia até nos esquecemos das dificuldades. Quando conto aos meus filhos e netos eles não acreditam que isso fosse possível. Vivi na pele ter de dividir uma sardinha pelos três irmãos, quando havia. A maioria dos dias comia-se um bocadinho de toucinho frito com batatas. A primeira vez que calcei sapatos foi quando fui fazer o exame da quarta classe. Prefiro esquecer essas recordações.

Comecei por ajudar a guardar gado. Depois servi à mesa num restaurante e aos 15 anos comecei a aprender o ofício onde trabalhei o resto da vida: pintor de construção civil. Ainda fui trabalhar dez anos e meio para a Suíça. Nunca fui uma pessoa derrotista. Quando não havia trabalho na pintura pegava num tractor e dedicava-me à agricultura. Até aos 30 anos vivi sempre com dificuldade mas sempre fui honesto. Não devo nada a ninguém e não tenho inimigos. Gosto de dormir sossegado. Sermos honestos e sérios deve ser o que nos define.

Santo Estêvão era um lugar só de famílias da terra e tínhamos sempre a porta aberta. Havia muita entreajuda e toda a gente se conhecia. Hoje já não é assim. Fechamos a porta à chave logo que entramos em casa. A maioria das pessoas que hoje vive aqui não é de cá. Somos um dormitório e por isso fico triste de não ver a solidariedade e união de antigamente. Todas as pessoas são bem vindas à minha terra, mas de certa forma isto veio prejudicar-nos muito inflacionando os preços da habitação. O que leva a que os filhos da terra quando pensam construir aqui não consigam.

Gosto muito de animais e ainda hoje ajudo um rapaz que tem uma ganadaria a carregar e levar toiros. Faço isso gratuitamente e não cobro um tostão. Gosto de ajudar. O mesmo se passa aqui no Centro de Bem-Estar Social de Santo Estêvão (CBESSE). Quando alguém adoece ou há um problema sou sempre voluntário para ajudar. O que mais me irrita neste mundo é a corrupção. As pessoas valerem-se dos cargos para enriquecer. Sempre trabalhei e fui honesto. Nos dois mandatos que fiz na junta de freguesia nunca fiquei com o ordenado. Dei sempre o dinheiro a associações da terra que precisavam. Foi assim que conseguimos construir o que temos.

Toquei clarim num regimento de cavalaria e apesar de ter sido chamado para o Ultramar fui um privilegiado. Não tive arma atribuída, passei o tempo no quartel. Quando acabei a recruta havia vagas para clarim e corneteiro e inscrevi-me. Não é que a música me puxasse mas quando fui para lá, como já tinha uma filha, arrisquei. Fui primeiro na escola de cabos e na formação. Escolhi Tancos e 15 dias depois estava mobilizado para ir para Moçambique. Houve colegas que passaram mal mas felizmente não morreu nenhum por lá. Tivemos a sorte de ir já na fase final da guerra.

Há 22 anos que estou ligado ao CBESSE. Na altura as coisas não estavam a correr bem, havia dívidas e foi nessa altura que eu e outras seis pessoas decidimos meter mãos a isto e fizemos um peditório para ajudar a pagar algumas despesas. Ainda hoje digo aos filhos e netos: antes de entrarem numa associação pensem bem. Porque para entrar é fácil, depois para sair é que é difícil. Ou porque não temos vontade de sair por ganharmos amizade às pessoas e às coisas ou porque depois temos medo de deixar a associação nas mãos de pessoas que podem estragar o que de bom foi sendo feito. Hoje temos a associação estável, sem dívidas e com boa capacidade financeira.

Poucas associações conseguem viver hoje à tona das dificuldades. A maior parte delas anda com a cabeça debaixo de água. Felizmente aqui as coisas têm corrido bem. O CBESSE tem uma grande importância na comunidade. Somos também a maior entidade empregadora de Santo Estêvão. Temos cinco valências, sobretudo o apoio a idosos, o apoio domiciliário, a creche e as actividades de tempos livres para os mais pequenos e serviço de deslocação dos utentes ao médico. Somos uma instituição fundamental para as nossas gentes. Nas últimas eleições para os órgãos sociais não apareceu ninguém para nos render.

Temos de saber desculpar-nos uns aos outros quando as coisas correm menos bem. O meu sonho era sair-me o Euromilhões para fazer instalações no CBESSE para acolher idosos dia e noite. Isso ia dar-me um gozo imenso. A sociedade em geral esquece-se muitas vezes dos mais velhos e da necessidade de termos mais lares. Muitas vezes até são os filhos os primeiros a esquecer-se dos mais velhos. Somos muito egoístas hoje em dia. Infelizmente, temos também muitos lares ilegais e era preciso alguém olhar para este problema rapidamente.

“A primeira vez que calcei sapatos foi no exame da quarta classe”

Mais Notícias

    A carregar...