“A indústria do entretenimento retirou paz interior às pessoas”
Se não fosse padre José Abílio Costa estaria provavelmente ligado ao mundo das ciências, mas na altura de entrar para a universidade escolheu Teologia e entregar-se à graça de Deus. É pároco há mais de meio século tendo passado por várias paróquias na região nomeadamente Rio Maior, S. João da Ribeira, Alcanhões, Vale Figueira, todo o concelho da Chamusca, Alpiarça, Benfica do Ribatejo e Almeirim, onde está actualmente. Afirma que um padre tem de estar de coração aberto e ter uma relação de amor com todos, inclusive os não crentes. Esta entrevista de O MIRANTE revela a personalidade de um homem franco, espontâneo, de mente aberta e que tem uma opinião sobre o Mundo e as relações humanas que vai muito para além do que é ser cristão.
A Igreja Católica é uma coisa antes e depois do Papa Francisco?
Sou do tempo em que houve a grande revolução da Igreja para a tornar fiel a si própria e melhorar a sua missão e relação com o mundo actual. Sou da geração em que a Igreja estava assente apenas no clero. Depois surgiu a Igreja mais interactiva, em que todas as pessoas participam, o chamado povo de Deus. O Papa Francisco tem conseguido renovar o rosto da Igreja para que ela não esteja centrada em si mas vive a sua missão numa atenção permanente aos sinais dos tempos.
Novos tempos que permitem o casamento entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo.
A dimensão sinodal da Igreja é o grande desafio que o Papa Francisco nos lança. Na minha experiência como padre sempre acolhi e escutei homossexuais. Tento perceber os seus dramas e as lutas que travam procurando colocar-me ao serviço deles sem nunca os excluir da comunidade. É isto que o Papa Francisco pede, mais do que limitar-se a discutir se é pecado!
Acha que a sociedade está assente num falso moralismo?
O que está no começo do cristianismo não é uma moral, mas sim um encontro com Jesus Cristo que, na sua palavra e na sua vida, vai trazer uma luz e novos horizontes. Ele passa a ser o centro da minha vida e vai inspirar-me, animar-me, iluminar-me e fortalecer-me. Se não houver esse encontro com Jesus Cristo, se ficar só pelo moralismo, não se pode falar de verdadeiro cristianismo.
Porque continuamos a insistir que não temos capacidade para ser Judas?
É uma pergunta interessante! Tem muito a ver com a mentalidade do perfeccionismo e a mania de algumas pessoas em achar que são perfeitas, que nunca erram. O que é certo é que na figura de Judas está a fraqueza humana, a natureza humana, que em determinadas situações pode errar e até rejeitar o Projecto de Vida que Jesus nos oferece.
Nessas situações como se encontra a graça?
A graça é o dom do amor incondicional de Deus. Deus dá-se a mim independentemente de ser santo ou pecador. Ele quer pegar em mim no ponto em que estou, para depois me ajudar a fazer o caminho para me tornar melhor pessoa. Um pouco à imagem de Cristo, o bom pastor, que vai à procura da ovelha perdida e que se alegra ao encontrá-la.
Estamos preparados para lidar com o mal?
Todos temos dificuldade em lidar com o mal. O mal é algo difuso, está dentro de nós, acompanha-nos. O problema, creio, é que por vezes nos resignamos ao mal, esquecemo-nos que ninguém se salva sozinho. Estamos todos no mesmo barco na viagem da vida e, ou nos salvamos juntos, ou naufragamos juntos. Para quem tem fé esse apoio está sempre cá.
Deus também ama a imperfeição?
Sem dúvida! Jesus foi muito claro: “Não vim para os sãos e para os justos, mas sim para os doentes e para os pecadores”.
Como se lida com a culpa de não ser perfeito?
Só com a experiência de ser amado. Jesus distingue-se por amar, por ser capaz de ver não só a aparência, mas o fundo do coração, onde está o desejo de bem, de verdade, de paz e de harmonia.
“AS PESSOAS SÃO INCAPAZES DE VIVER EM SILÊNCIO”
Alguma vez se sentiu à deriva?
Existem três situações em que me senti perdido. Sempre me senti vocacionado para a área das ciências e aos 18 anos tive de fazer uma opção e seguir a área das letras porque era o que se impunha. Não foi uma decisão fácil porque ia contra a minha vontade inicial. Outra situação teve que ver, quando tinha 23 anos, com as minhas dúvidas em relação à vontade de ser padre. Devido à minha estrutura humana e espírito crítico fui o último a ser ordenado porque precisava de sentir interiormente, de ver mais claramente que este era o caminho. A última vez que me senti à deriva foi há seis anos e meio por causa de um problema de saúde, mas consegui recompor-me. Tiveram de me tirar o intestino grosso e fui para a operação no IPO (Instituto Português de Oncologia) com uma paz interior muito grande, sabendo que podia partir para a eternidade.
Como vive a experiência do luto?
Como qualquer ser humano. Não é fácil lidar com perdas, não é fácil lidar com a dor, com a doença. Vivi isso na minha doença e na do meu irmão mais novo, que durante 25 anos lutou com um cancro nos ossos. A dor e a doença quando são enfrentadas com fé tornam-se mais fáceis de digerir. Em relação ao luto é a mesma coisa. Estava a estudar em Madrid, em 1999, e não acompanhei a parte final da vida do meu pai, o que me deixou alguma mágoa. A minha mãe faleceu quase há ano e meio e também não me consegui despedir dela por causa da pandemia. Ser padre e já ter acompanhado milhares de famílias enlutadas também me ajuda a lidar com o luto.
Não é suposto um católico não ter medo da morte?
Os católicos são seres humanos. A fé tranquiliza-nos, não impede a crise. A doença, a limitação, a perda de autonomia fazem parte da vida dos católicos e dos padres. Claro que a esperança da vida eterna ajuda a viver esses momentos com outra serenidade.
O que pensa da eutanásia?
Concebo a vida como um dom e penso que nenhum de nós fez nada para nascer, a vida foi-nos dada. Portanto, sou um administrador de um dom, não sou dono da minha vida. Perante situações de grande sofrimento, casos extremos de doença incurável, a posição da Igreja é: “sou chamado a cuidar da vida até ao fim e cuidar da vida com dignidade”. A posição da Igreja é sempre a defesa da vida e parte do princípio de que não sou dono dela.
Não é pai biologicamente, mas também se sente pai?
Sinto e é das experiências mais felizes que se pode ter. Às vezes não consigo corresponder em termos de presença, mas em todas as paróquias onde estive, nomeadamente Rio Maior, S. João da Ribeira, Alcanhões, Vale Figueira, todo o concelho da Chamusca, Alpiarça, Almeirim e Benfica do Ribatejo, deixei grandes amizades que continuo a preservar. Continuo a receber gente que me procura, gente que se lembra sempre de mim em datas significativas ou simplesmente me telefona.
Andamos muito distraídos na vida?
A sociedade anda muito distraída porque as pessoas são incapazes de viverem em silêncio. A sociedade criou a indústria do entretenimento que retirou a paz interior nas pessoas. Só no silêncio é que somos capazes de ouvir o apelo do nosso coração e de escutar os outros. A indústria tenta distrair-nos nesse sentido, não quer que pensemos no essencial. Vivemos numa época muito perigosa.
Enquanto padre falam-lhe mais do medo ou da distracção?
Falam-me do medo associado a um certo sentido de vazio interior. As pessoas não mergulham no mais fundo, não permitem a si mesmas essa oportunidade para se encontrarem com a verdade de si próprias. Não têm capacidade para saírem desta cultura do instante, do momento. Não há um projecto de vida, a pessoa procura divertir-se para esquecer.
Porque é que as pessoas vivem do preconceito?
O preconceito em relação às pessoas fez-me sempre muita impressão porque só tem preconceitos quem não conhece, quem não procura o encontro com o outro. O preconceito existe porque há desconhecimento. Aprendi a conviver desde pequeno com ciganos e pessoas de outras raças e etnias por isso é uma realidade que continua a ser muito difícil de digerir.
“Na Bíblia aparecem todos os podres da Humanidade”
Como é que se dirige aos não crentes?
De uma forma natural. Conversamos sobre tudo porque os não crentes vivem o mesmo que eu em termos pessoais, familiares, sociais, culturais e políticos. O grande desafio é criar pontos de encontro em que possamos falar e ouvir-nos respeitosamente. Claro que, por vezes, vivo situações menos agradáveis por ser padre, mas tenho de estar preparado para esse confronto.
Qual é a verdadeira dimensão da Bíblia?
Para aquele que não é crente a bíblia é uma obra literária, uma obra-prima em termos de literatura. Há um poema, por exemplo, do cântico dos cânticos, do Antigo Testamento, que está considerado pelos grandes especialistas em literatura como dos melhores alguma vez escritos. É um texto que terá no mínimo 2.500 anos. A Bíblia é um conjunto de livros, uma pequena biblioteca em que se pode fazer um estudo do que é o ser humano. Quem está à espera de pegar na Bíblia e só encontrar coisas piedosas fica escandalizado porque aparecem os podres todos da Humanidade, mas também aparece toda a beleza.
O papel da mulher na religião católica ainda é de submissão?
Com certeza que essa pergunta se baseia num texto de S. Paulo que diz: “mulheres sede submissas aos vossos maridos”. No entanto, antes dessa frase está “vivei todos em submissão a Jesus Cristo”. O que é que quer aqui dizer a palavra submissão? Não é uma submissão exterior, de alguém exterior a mim, contra minha vontade, que me oprime, que me tira dignidade. Quem ler o texto na íntegra também lê “maridos amai as vossas esposas como Cristo amou a sua Igreja e entregou a sua vida por ela“.
Então qual é o papel da mulher para a Igreja?
Representa uma missão muito importante. Não deixa de ser quase um escândalo que dentro dos discípulos de Jesus, daqueles que o acompanhavam sempre, contra até o costume e cultura da época, havia um grupo de mulheres que o acompanhava. Foram até elas que deram a cara no seu momento mais duro, que foi a sua paixão na cruz. O respeito de Jesus pelas mulheres é claro e atravessa todas as épocas. Na Bíblia, Jesus defende uma mulher apanhada em flagrante a trair o marido. Ele desarmou toda a gente afirmando: “quem não tiver pecados que atire a primeira pedra”. Esta atitude é de uma liberdade tremenda em relação à mulher.
Portugal é um dos países da Europa com mais divórcios. Porquê?
O Papa Francisco disse que a sociedade se habituou a consumir e a deitar fora. Esta cultura consumista transferiu-se para as relações afectivas e as pessoas facilmente tratam o outro como um objecto. Isto é, “agora que encontrei outra fonte de satisfação desfaço-me da actual”. Mas uma das coisas que mais me assusta é a violência entre casais. Outra é o número assustador de divórcios durante a gravidez ou nos primeiros meses da vida de um filho. Investir na estabilidade de uma família é investir num futuro harmonioso, respeitador e acolhedor.
Que lugar deve ter a educação sexual no ensino?
A sexualidade faz parte da nossa vida e tudo o que fazemos tem essa marca. Não somos seres assexuados e, portanto, tudo tem a marca da maneira como nos relacionamos. A educação sexual, há dezenas de anos, aprendia-se às escondidas porque nunca houve naturalidade e abertura para falar do assunto, assim como continua a não haver. O grande risco é quando as escolas dizem que ensinam educação sexual e no fim de contas o que fazem é explicar o aparelho reprodutor e como é que funciona para haver um filho.
“Tive namoradas porque o namoro faz parte do crescimento”
De que forma a infância contribuiu para a sua formação?
Nasci em Paialvo, concelho de Tomar. A minha família era humilde, o meu pai era sapateiro e a minha mãe doméstica. Também trabalhavam na agricultura, em alguns pedaços de terreno que tínhamos. A minha vida, e dos meus dois irmãos, foi sempre pautada pela simplicidade num ambiente de amor, amizade e fé. Recordo-me do meu pai chegar muito cansado do trabalho e trazer a Sagrada Família para orarmos em conjunto. Esse ambiente de oração familiar marcou-me sempre muito, assim como a catequese.
Foi esse ambiente que o fez querer ser padre?
A vocação é sempre um mistério. Como é que Deus se lembra de nós para determinados projectos? Na terceira classe a professora perguntou aos alunos o que queríamos ser em adultos e respondi espontaneamente que queria ser padre. Os meus colegas gozaram, mas faz parte da ingenuidade de ser criança.
Como foram os tempos de seminário?
Andei em quatro seminários: Santarém, Pena Firme, Almada e depois Olivais, em Lisboa. Na parte universitária estudei na Universidade Católica, onde fiz o curso de Teologia. Sempre mantive um espírito crítico, uma atenção à realidade e, sobretudo, um sentido de liberdade muito grande. Por vezes esse sentido crítico trouxe dissabores e ameaças de expulsão dos seminários, mas houve sempre quem me acolhesse e aceitasse a minha forma de ser e estar, nomeadamente o padre Fanhais, muito conhecido pelas suas canções, o padre Fernando Campos, em Santarém, o bispo Albino Cleto e o padre Joaquim Duarte.
Teve namoradas?
Sim, algumas, durante o meu tempo de seminarista. O namoro mais sério já estava na universidade. Não namorava às escondidas porque o namoro faz parte do crescimento e ajuda a interrogarmo-nos sobre o caminho que queremos seguir. A afectividade, a integração da sexualidade são fundamentais para a orientação do futuro de cada pessoa. Felizmente as equipas de padres nos seminários eram muito abertas e compreendiam que as relações entre homem e mulher naquela idade fazem parte do crescimento normal do ser humano.
“Orgulho-me de cuidar dos que estão mais frágeis”
Ser padre é um fardo?
De certa maneira pode ser visto como tal. Agora, quando se fazem as coisas por amor e fé deixa de o ser. Há uma coisa que faço sempre antes de atender alguém, que é rezar. Um padre carrega grandes pesos e grandes responsabilidades e há dias em que não estou bem emocionalmente e preciso de perceber que não vai ser com as minhas forças, inteligência ou conhecimento que vou conseguir ajudar a pessoa. É nesta atitude que depois se experimenta uma tranquilidade interior que permite orientar as pessoas.
Transformou-se num farol para a comunidade católica por onde passou. Quem é que o pega ao colo quando está desamparado?
A primeira conquista é ter coragem de, nesse momento de perturbação, apresentar-me despido diante de Deus e confiar que Ele me ajudará com a sua luz, com a sua graça, com o seu amor. Mas Deus também age através dos outros e claro que tenho colegas mais amigos ou directores espirituais que me ajudam nessas ocasiões. Deixe-me dizer que não me reconheço como um farol. Fui procurando com muita simplicidade ser uma pequenina luz. Comecei a minha vida de padre a cuidar do padre Saramago, que tinha 78 anos e acompanhei-o até aos 95. Foram 17 anos a fazer-lhe tudo aquilo que nunca fiz a um familiar. Depois quando saí fui acompanhar padres que já estavam com idade, como o padre Diogo, na Chamusca. Quando vim para Almeirim também foi assim com o padre Garcia, que agora está num lar, com os seus 89 anos. O que fica desses anos é a frase “vede como eles se amavam, como eles cuidavam um do outro”. Das coisas que mais me orgulho enquanto padre é cuidar daquele que está mais frágil.