A minha obra tem todas as limitações da própria natureza humana, mas é digna

A pretexto do lançamento do XII volume da História de Portugal, a rádio pública Antena 1 entrevistou Joaquim Veríssimo Serrão no programa Lugar à História. A entrevista foi realizada em 24 de Agosto de 1990, publicada em duas partes, e realizada pela jornalista Maria Clara. Quando não sabe, diz que não sabe, e aponta caminhos de investigação para outros, é uma das conclusões da longa conversa em que Joaquim Veríssimo Serrão fala da sua Obra, mas também de muitas matérias ligadas à História e à vida em sociedade.
“A minha História de Portugal é, essencialmente, uma narrativa assente numa base documental, que procurei que fosse o mais extensa possível, onde apresento, tanto os aspectos que considero gloriosos, como também os factos a que podemos chamar negativos. Na vida de um povo verifica-se a mesma coisa que na existência de uma pessoa. Há as altas e as horas baixas. Momentos de grandeza e fases de declínio ou de abaixamento moral.
Não há nenhuma história integral completa que possa abarcar tudo. É evidente que uma obra como a minha terá lacunas, pontos que não foram desenvolvidos, e até conterá versões que necessitem de ser ratificadas. Mas eu tenho um grande orgulho neste meu livro em muitos volumes, porque, com todas as limitações que são próprias do espírito humano, esta obra é considerada hoje, por autores isentos, como a mais ampla, a mais abrangente de todas as histórias de Portugal que até hoje foram escritas.
E com, ainda, um facto importante de assinalar. É que há muitas histórias de conjunto e algumas delas mesmo colaborativas, escritas por professores eminentes. Mas cada um atacou o seu sector, o seu campo de especialização, ao passo que eu não tive receio de procurar abarcar a História de Portugal no seu conjunto.
Numa perspectiva geral, se me é permitido utilizar o exemplo da Medicina, posso dizer que agi perante a História de Portugal como um médico de clínica geral. Quer dizer, alguém que se formou no campo clínico para tentar curar todas as doenças. O que não significa que não haja especialistas consagrados em domínios restritos do saber humano.
Estou a falar na medicina; no conhecimento físico e psíquico. Mas também, cada vez faz mais falta, um conhecimento global da História que nos apresente todo o passado de um povo nas várias perspectivas da sua existência colectiva.”
* Entrevista ao programa “Lugar à História” da Antena 1, dia 24 de Agosto de 1990, a propósito da edição do 12º volume da História de Portugal.
Sou severo com pessoas que traem os princípios da lealdade e respeito
Veríssimo Serrão em discurso directo com base na entrevista à Antena 1
Nunca me zango com as pessoas porque dou sempre aos outros o direito de pensarem de um modo diferente do meu. Agora posso zangar-me, e ser até muito severo, quando se trata de assuntos que levam à degradação de carácter. Pessoas que não têm carácter e traem aquilo que são os princípios da lealdade e do respeito que devem aos outros. Nesses casos, sou implacável, corto e corto de vez. Mas, poucos casos tenho, na minha vida, a que se possa aplicar este exemplo.
Sem valores morais o homem não pode viver, nem sobreviver
“A evolução do homem não pode ser só no ponto de vista técnico; de aperfeiçoamento material. Tem que ser também de salvaguarda dos valores morais e ecológicos. Pois quando digo valores morais, a defesa da natureza e o valor da natureza, a ecologia é um valor moral. A defesa da pessoa humana é um valor moral. Sou do tempo em que na escola primária havia uma cadeira chamada Educação Moral e Cívica, em que se ensinava às crianças a não bater nos animais, a não deitar abaixo as árvores, a estimar os velhinhos e a proteger os indefesos. Quer dizer, nós viemos para a vida, com dez, onze anos, com um profundo sentido de amor à natureza e aos homens.
Todo o actual progresso técnico alterou os quadros do pensamento. Hoje, na televisão, estamos constantemente a assistir à morte de pessoas. Assassinatos, mortes provocadas por violência ou por envenenamentos. Com tudo isto as pessoas começam a ficar indiferentes perante aquilo que é a mais nobre condição da vida e que é a essência humana. De modo que, os valores morais têm que ser repensados numa base de honestidade, dignidade, coerência; de tudo aquilo que nos permite afirmar que vale a pena viver. Não apenas o progresso técnico, mas também os valores morais sem os quais o homem não pode nem viver, nem sobreviver.”
“Tomaram os senhores saber o que o Alexandre Herculano não sabe”
A propósito de o Homem não ser mais do que uma pequena ilha no oceano de conhecimentos que o envolve, Joaquim Veríssimo Serrão contava uma história sobre o escritor e Historiador Alexandre Herculano, passado numa altura em que ele já vivia na Quinta de Vale de Lobos, em Azóia de Baixo, no concelho de Santarém.
“Numa noite de Inverno, agasalhado no seu capote ribatejano, e sem ninguém o conhecer, foi jantar ao restaurante Irmãos Unidos, no Rossio. Na altura estava acesa a polémica, sobre a verdadeira dimensão do comportamento de Herculano, ao ter-se retirado para Vale de Lobos, tornando-se agricultor.
Para uns, era um acto de nobreza moral afastando-se de uma sociedade porca, a sociedade que não o podia compreender na dignidade do seu exemplo. Para outros, Herculano não era mais do que um vaidoso que tinha querido, daquele modo, atrair sobre ele as atenções do mundo.
Herculano sentou-se a uma mesa e, sem ser reconhecido, notou que na mesa ao lado estavam dois jovens, um dos quais era a seu favor e outro contra. O primeiro dizia que ele era o maior homem de Portugal. Pela obra e pelo exemplo. Ao que o outro retorquia que ele não passava de um velho vaidoso, porque se fosse um verdadeiro trabalhador das letras, continuava a escrever e não se refugiava numa quinta para não ter que afrontar uma sociedade que ele detestava.
O Historiador jantou e quando ia levantar-
-se, ouviu o seu apoiante dizer para o amigo adversário: ‘Vamos acabar com a conversa. Tomaras tu saber o que o Herculano sabe”.
E Alexandre Herculano, nesse momento, já de pé, sem se dar a conhecer, pôs a mão em cima do ombro do seu defensor e disse: “Tomaram os senhores saber o que o Herculano não sabe”.
Tenho medo que o sonho europeu venha a desfazer-se
O mundo abriu-se depois da Segunda Guerra Mundial. O mundo anterior, e eu sou desse tempo, era um mundo muito nacional, em que os povos se fechavam nas suas fronteiras. Não havia pactos militares, não havia, sobretudo, acordos. Ou podemos dizer que os que havia eram apenas em campos muito reduzidos da actividade das nações. Acordos de comércio; acordos sobre intercâmbio diplomático, ou um ou outro acordo cultural.
Mas isso apenas se cada um dos intervenientes buscava lucros ou vantagens dessa aproximação. Podemos dizer, quase, que as nações voltavam às costas umas às outras. Foi preciso, infelizmente, vir a Segunda Guerra Mundial, para que as nações compreendessem que tinham de se unir em torno de coisas fundamentais.
Mas essa Europa unida para os mesmos objectivos políticos, económicos, culturais, de aproximação entre os vários países, de um baixar de fronteiras para que os cidadãos deste mesmo continente se aproximem, é uma realidade em muitos pontos artificial, e está em confronto com velhas nações que têm heranças de séculos de que não querem abdicar.
E eu receio muito que, se quisermos ir para uma Europa política, a chamada Europa una politicamente, esta Europa se esboroe. Poderá ter interesses colectivos no ponto de vista económico, no ponto de vista cultural, mas limitar ou diminuir a independência de vários países, criando uma autoridade supranacional, como se os órgãos de cada país de soberania praticamente não existissem, ou fossem limitados, isso é algo a que não estamos habituados e colide com as raízes do sentimento nacional. E tenho medo que a Europa nunca venha a unir-se e que, pelo contrário, o sonho europeu, que é um sonho de esperança, venha a desfazer-se.
Há Historiadores de grande categoria, mas humanamente intragáveis
Lembro-me de ser jovem e ler Alexandre Herculano pela maneira como distinguia a ciência da fé. Como queríamos uma história documentada, baseada em fontes, provada, cientificamente provada. Uma História que não desse lugar nem à magia, nem aos enredos fantasistas.
Depois deixei-me também apaixonar por essa figura tão mal estudada, ou, pelo menos, mal compreendida, que é Oliveira Martins, o Historiador artista, o homem que sabe transformar a história em belas imagens. Porque, como disse um grande Historiador francês da nova vaga: não basta escrever História, é preciso escrevê-la bem.
Durante muito tempo, o conceito era que, quanto mais fastidiosa e mais pesada, mais essa história se impunha. Quer dizer, no fundo era uma história que não se compreendia mas, porque era pesada, todos achavam que era a suma potência do conhecimento do passado. De modo que Oliveira Martins foi uma das minhas paixões, mas as lindas imagens que ele tinha para caracterizar o passado nacional nem sempre eram justas.
Chamar a Afonso Henriques, por exemplo, um poltrão, um bandido; chamar a D. Pedro I, gago; chamar a um outro rei, um impotente ou chamar a D. João V o rei freirático, quando ele teve uma aventura com uma freira, que foi a única freira que ele conheceu, como se ele fosse o Senhor de todas as freiras do país, são exageros que ele praticava naquele poder colossal que tinha de criar imagens.
Depois da minha primeira estada em França, a partir dos anos de 50, passei a interessar-
-me pela nova História. Uma História integral, tanto quanto possível, que não é só política, económica nem social. É uma História que procura abarcar tudo aquilo que diz respeito ao homem na sua longa trajectória humana. E sim, Georges Lefebvre é um dos meus ídolos. Continua a sê-lo.
Mas, para mim, o problema das influências não está apenas naquilo que os Historiadores escreveram, mas também na mensagem humana que eles deixam, porque há Historiadores de grande categoria, mas humanamente intragáveis, vaidosos, petulantes, convencidos que têm a verdade nas mãos, sem a noção da humildade que faz falta nos comportamentos humanos.
Mas há Historiadores, e infelizmente entre nós, que têm a megalomania de que têm a verdade nas mãos e desprezam os outros, quando todos nós somos abelhas da mesma colmeia que fabricou algo, seja mau ou de boa qualidade.
Uma das condições fundamentais que um Historiador deve ter, é ser humilde, sabendo que está a traçar uma história em permanente revisão. Uma história que pode amanhã ser corrigida. Uma história que ele tem de saber de antemão, sujeita a uma nova visão dos problemas e das coisas.