Sociedade | 18-07-2005 14:49
O último tanoeiro do Cartaxo
Dezenas de aros de diferentes tamanhos estão encostados a uma velha parede, ao lado do portão da oficina de Francisco Carvalho. No degradado barracão do largo do Rossio, no Cartaxo, trabalha o último tanoeiro do concelho. Sessenta e sete anos de vida e cinquenta e cinco de profissão. Construir e reparar vasilhame em madeira para armazenamento de vinho. O trabalho é artesanal. Tal qual era feito quando começou a dar os primeiros passos na profissão. Algumas ferramentas têm meio século. A oficina é um autêntico museu vivo. A arte vai desaparecer do Cartaxo quando ele parar de trabalhar. A luz entra pelas gretas do abaulado telhado. O tanoeiro observa atentamente uma cartola (recipiente que leva 240 litros de vinho). Passa-lhe a mão calejada e mascarrada para sentir as reentrâncias da madeira. Depois pega numa aduela que está num monte com outras de vários tamanhos. A tábua curvada foi retirada de cartolas velhas que se acumulam sem nenhuma ordem pela oficina.Mede-a, olha-a de vários ângulos, e coloca-a em cima da bancada cheia de mossas, cortando-lhe as pontas até ficar do tamanho pretendido. A seguir aplica-lhe a plaina. Faz um intervalo para contar que começou a trabalhar com 12 anos. Aprendeu com o irmão e com um tanoeiro já desaparecido, o Joaquim Vidal. Percorriam as adegas da zona a fazer arranjos. E também fabricavam vasilhas quando havia encomendas. Há 32 anos abriu a oficina, onde ainda trabalha. Um local onde o progresso ficou sempre à porta. Ainda hoje não tem electricidade. “Nunca quis luz porque depois tinha a tentação de estar a trabalhar até altas horas da noite. Assim, quando escurecia tinha que me ir embora”, explica enquanto coloca uma aduela. Bate no aro de metal apertando as tábuas. Faz rodopiar a vasilha como se estivesse a dançar com uma mulher e retoma a conversa.Quando Francisco Carvalho começou a trabalhar havia mais de quarenta tanoeiros no concelho do Cartaxo. Agora os armazenistas estão a usar os depósitos de inox, os sacos herméticos dentro de caixas de cartão. O vasilhame de madeira só é usado para os bons vinhos tintos. Os produtores compram-no a empresas do Norte do país, em França ou nos Estados Unidos da América onde a arte se industrializou. Onde se faz um barril num ápice comparados com o tempo que um artesão demora. O tanoeiro só faz reparações. A última vasilha que construiu foi um balseiro (capacidade para 20 litros) há mais de dez anos. Para envelhecer aguardente. “Fiz este em mogno”, diz apontando para um recipiente ao lado de um saco com lascas de madeira de carvalho. “O carvalho bebe muito, absorve a aguardente, por isso fiz em mogno e depois a pessoa mete umas lascas destas lá dentro porque é o carvalho que vai dar a cor amarelada à bebida”, explica. Enquanto martela fala da dureza da profissão. “É um ofício violento. É tudo feito à força de pancadas. À força de braços. À noite estou todo partido”, desabafa embalado pelo som metálico das marteladas. Mas reconhece que podia utilizar uma ou outra ferramenta eléctrica. Uma plaina ou uma lixadeira. Berbequins, serras eléctricas. Isso é que não. “Com tantas máquinas ninguém é artista e os barris para serem perfeitos precisam do toque das mãos”, salienta, dando o exemplo de uma cartola que um cliente lhe levou para arranjar uma aduela partida. “Estas são feitas no norte com madeira ainda verde porque é mais fácil de vergar. Depois secam e começam a abrir gretas”. Depois vão parar à oficina do mestre, enquanto este ainda tiver forças. Natural do Cartaxo, Francisco Carvalho vê com tristeza o desaparecimento da actividade no concelho. Não há ninguém para pegar na profissão, que apoiada e modernizada poderia ter futuro como aconteceu noutras zonas do país. “Há uns dois anos apareceu-me aqui um rapaz a dizer que queria aprender o ofício. A primeira coisa que perguntou foi se eu lhe pagava 150 euros por mês”, recorda, acrescentando que não houve acordo.
Mais Notícias
A carregar...