Sociedade | 12-04-2019 10:00

Ciganos: O sapador florestal elogiado pelo chefe e a mãe que está no ensino superior

Ciganos: O sapador florestal elogiado pelo chefe e a mãe que está no ensino superior

José Lima e Bruna Silva são dois bons exemplos da nova geração de ciganos.

A propósito do Dia Internacional do Cigano, que se assinala a 8 de Abril, O MIRANTE falou com dois jovens que têm orgulho em ser ciganos e que, apesar dos preconceitos, se sentem cidadãos de pleno direito. Ambos lutam pelos seus sonhos. José Lima entrou para os sapadores florestais da Câmara de Azambuja e Bruna Silva trabalha no Programa Escolhas, em Tomar, trata da família e está a tirar um curso superior.

O chefe do sapador florestal José Luís diz confiar nele para os trabalhos mais difíceis

Entre a centena e meia de ciganos que reside no concelho de Azambuja, há um que lhes quer mudar a sina e mostrar que é possível a integração na comunidade. José Lima tem 20 anos e trabalha como sapador florestal na Câmara de Azambuja.
A proposta de trabalho foi-lhe apresentada pela Câmara de Azambuja e o jovem aceitou-a sem hesitar porque lhe pareceu ser uma boa oportunidade. De etnia cigana, não tinha qualquer experiência profissional na área e vivia há ano e meio do Rendimento Social de Inserção (RSI). A O MIRANTE diz que aquele trabalho o ajudou a perceber que é possível a integração das pessoas da sua etnia, desde que os preconceitos fiquem de lado.
No bairro da Quinta da Mina onde vive desde que nasceu, a sua família olha-o já como um exemplo a seguir. Aplaudiram a sua conquista profissional e é dele que falam aos mais novos para os incentivarem a ir à escola.
Casado e com um filho, José Lima quer para o seu descendente uma infância diferente da que ele teve. Sonha comprar uma casa mais confortável mas de preferência fora do bairro, para que ele cresça num ambiente sem as confusões provocadas por rivalidades que acontecem com alguma regularidade.
Confessa que, de início, não lhe foi fácil activar o despertador do relógio para as seis da manhã, hora a que se levanta de segunda a sexta-feira para ir trabalhar. “Agora já apanhei o ritmo e já nem me imagino em casa a ver filmes e a olhar para o telemóvel, sem nada para fazer. Gosto daquilo que faço e sinto-me motivado. Não sabia nada quando fui aceite neste trabalho e foram eles [a equipa de formadores] que me ensinaram tudo. Estou muito feliz por terem acreditado em mim”, afirma.
José Lima é o elemento mais recente da equipa de sapadores do município e já está completamente inteirado do trabalho que tem de fazer. Mantém uma boa relação com os colegas e tem iniciativa própria. Quem o diz é o chefe de equipa, José Bronze, que não duvida que a sua contratação foi uma aposta ganha e vê nele alguém com quem pode contar para os trabalhos mais difíceis.
A responsável pela aposta no jovem foi a vereadora com pelouro da área social, Sílvia Vítor, que conhecia José Lima e a sua família. “Acreditei nele por o considerar um jovem com muitas qualidades. Temos de dar oportunidade às pessoas para mostrarem aquilo que valem e até agora estamos muito satisfeitos com o trabalho dele”, diz.
A infância de José Lima não foi fácil. Não chegou a conhecer o pai por este ter falecido dois meses antes do seu nascimento e não tem contacto com a mãe que voltou a casar e se mudou para Santarém quando ele ainda era criança. Foi criado com a avó que sempre o aconselhou a ir à escola. Diz que não era preciso a avó insistir porque gostava de aprender mas as coisas não eram fáceis.
“Havia colegas que diziam que vinha lá o cigano e se afastavam. Outros nem se aproximavam. Também havia alguns que quando se metiam em confusões se aproximavam para terem as costas quentes. O pior era quando desaparecia algum material na escola e a culpa era logo do cigano ou quando levava alguma coisa nova e achavam que era roubada. As pessoas não ciganas acham que não podemos comprar o que elas compram, assumindo logo que se temos é porque roubamos”, desabafa.
Frequentou o ensino profissional até ao nono ano e chegou a ser durante dois anos delegado de turma. Fez vários cursos vocacionais, entre outros, de bar e restauração, mas conseguir estágio foi uma dor de cabeça. “Ninguém queria pôr um cigano atrás de um balcão com uma máquina registadora à frente. Tinham medo que fosse para lá roubar e, por isso, nunca me aceitavam”, conta.
A situação resolveu-se porque a Escola Secundária de Azambuja o admitiu como estagiário no bar e refeitório dos alunos. Depois chegou a ser chamado seis vezes pela Segurança Social para preencher propostas de emprego mas nunca o chamaram. Nem sequer para uma entrevista.
Tem orgulho em ser cigano mas gosta de conviver com toda a gente. Está a tentar ter um futuro melhor e por isso afasta-se de confusões e tenta manter a calma se acontece alguma situação que o enerve. Gostava que houvesse menos preconceitos e acha que o seu caso e o de muitos outros ciganos pode contribuir para isso. “Há pessoas que não são ciganas que também cometem erros e roubos, por exemplo. E os ciganos também não são todos maus”, sublinha.

São raras as crianças ciganas negligenciadas ou vítimas de mais tratos

Paula Borralho é Presidente da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens

Presidente da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Santarém, desde 2014, Paula Borralho é conhecedora da situação das famílias ciganas e diz que ao nível das crianças e jovens o principal problema é o abandono escolar.
“A comunidade cigana não valoriza muito a escola e isso acaba por provocar o absentismo, os maus resultados e o abandono escolar. A maioria das crianças e jovens de etnia cigana sinalizadas junto da CPCJ são-no por essas questões e não por estarem expostas a violência doméstica ou a qualquer outra situação de perigo. Por vezes podem ser sinalizadas por negligência ou por falta de cuidados, mas essas situações são raras”, explica.
E acrescenta: “Podem não existir condições habitacionais mas a criança está integrada e há afectividade. Não podemos tirar uma criança deste contexto para ir para uma instituição só porque vai ter um tecto e horários a cumprir”, acrescenta, lembrando que a missão da CPCJ não é retirar crianças aos pais.
Paula Borralho revela que “há, por exemplo, famílias que se recusam a matricular os filhos e que, para manterem essa situação, vão andando de local em local. Como o sistema tem falhas, chega a haver famílias que conseguem que os miúdos não estejam na escola um ano ou dois. Quando se percebe essa situação e os serviços começam a fazer pressão junto dos pais, eles tentam fugir”.
Também há outros casos mas são raros. “Lembro-me de uma situação de negligência grave em que a criança estava com os avós e houve uma explosão, porque o pequeno teve acesso a combustível. A criança ficou muito queimada e houve ordem do tribunal para que fosse para acolhimento”, refere.
Quanto à questão dos casamentos em idades muito jovens, Paula diz que à luz da Lei não são casamentos, uma vez que estes só são reconhecidos a partir dos 16 anos e com consentimento dos pais. Confirma, contudo, que em resultado desses casamentos prematuros há também situações graves de abandono escolar.
“É complicado. Temos situações em que o tribunal não legitima o casamento mas legitima o abandono escolar dizendo que a criança está integrada na comunidade, tem uma relação de compromisso com alguém, tem uma vida normal, com boas relações sociais e familiares. Há também situações de crianças filhas de pais menores que são acompanhadas por uma equipa do Rendimento Social de Inserção, e têm uma vigilância apertada o nível da saúde neo-natal”, explica a O MIRANTE.
Paula Borralho lembra que a comissão a que preside não tem meios extraordinários para resolver as situações, funcionando com uma rede de parcerias com instituições como a Segurança Social, o Ministério da Educação ou o Ministério da Saúde.
Acrescenta que cabe às escolas cumprir o estatuto do aluno e, sempre que se verifiquem situações de absentismo, com faltas acumuladas, por exemplo, a escola deve comunicar a situação à CPCJ. “Com as famílias de etnia cigana que temos no concelho não tenho a sensação, nem de que a escola não esteja atenta nem de que tenha receio de represálias dos pais. Há famílias ciganas que estão no concelho há muito tempo e já são conhecidas dos diversos serviços sociais”, refere.
De acordo com dados da Câmara Municipal de Santarém residem no concelho 261 ciganos.

Bruna Silva é mãe de dois filhos, trabalha e está a tirar um curso superior

Bruna Silva é mãe de um rapaz com onze anos e de uma menina com seis. É cigana mas apesar de pertencer a uma comunidade com uma cultura própria, que dá poucas oportunidades e liberdade às mulheres, sempre lutou por estudar e ter uma vida melhor. Não foi fácil mas agora, aos vinte e sete anos, está a frequentar o primeiro ano do curso de Gestão de Recursos Humanos, no Instituto Politécnico de Tomar.
Nasceu em Coimbra e viveu lá até aos 15 anos, altura em que veio para Tomar, onde conheceu o marido. Casou aos 16 anos e foi mãe com essa idade. Concorda que as raparigas ciganas casam muito cedo mas diz que as jovens não ciganas também namoram cedo.
“Acho mais incorrecto uma rapariga de 14/15 anos namorar com mais do que um rapaz do que uma cigana casar com 16 anos e ter só o marido. Algumas jovens não ciganas engravidam e depois não têm o apoio do pai da criança, são mães solteiras. As jovens ciganas crescem mais cedo. Somos adultas mais cedo, lutamos na vida muito cedo e sabemos mais cedo quais são as dificuldades que vamos enfrentar, do que as jovens da nossa idade que não são ciganas e vivem protegidas pelos pais”, afirma.
O que Bruna considera errado é as ciganas deixarem de estudar assim que casam. Na sua opinião as mulheres podem casar e continuar a estudar e a formarem-se. “Os estudos são o mais importante e é o conhecimento que nos pode levar mais longe”, sublinha.
Refere que durante todo o seu percurso escolar nunca sentiu preconceito por parte dos seus colegas e actualmente não sente que os seus filhos sejam alvo de discriminação pelo facto de serem ciganos. Apesar disso, considera que ainda existe muito preconceito, de parte a parte.
“A comunidade cigana ainda é olhada de lado e com desconfiança. Alguns ciganos fazem coisas erradas e depois pagamos todos pelos erros de alguns e esse é o problema. Eu não posso pagar pelo erro de um cigano que anda a roubar. Não podemos ser todos colocados no mesmo patamar. Temos que encontrar uma solução. O preconceito e racismo tem que acabar, de todos os lados”, realça.

O marido também voltou a estudar
O marido de Bruna tem 32 anos e voltou a estudar com o seu apoio. “Ele percebe que se tivesse estudado teria tido mais oportunidades por isso está a esforçar-se. Ter estudos permite-nos ir mais além na vida. Incentivo o meu marido e os meus filhos a nunca deixarem de estudar. Com estudos podemos ir a todo o lado”, refere.
Quando casou, aos 16 anos, Bruna Silva tinha apenas o 7º ano. Nessa altura engravidou e esteve cerca de ano e meio em casa a cuidar do filho e da família. Depois voltou a estudar. Tirou o 9º ano e começou a trabalhar. Tirou o curso de auxiliar de acção educativa, tendo estagiado na Escola dos Templários. Fez também um curso de cabeleireira e um curso de digitalização de imagens. Conciliava os estudos com o trabalho e a família.
Entretanto entrou para o Programa Escolhas, coordenado pela Câmara de Tomar e gerido pela Cruz Vermelha Portuguesa. Bruna ajuda a envolver a comunidade cigana e outras minorias que vivam no concelho para que as crianças vão à escola, tenham mais habilitações e qualificações.
Como o programa, que é financiado pela Direcção Geral de Educação e pelo Instituto de Segurança Social, terminou em Dezembro do ano passado, decidiu tirar um curso superior. Entretanto, em Março, o programa foi novamente aprovado para continuar em Tomar e Bruna foi chamada para as mesmas funções. Garante que, apesar do tempo muito ocupado, não vai desistir da universidade. “Com regras consigo conciliar tudo”, diz. A maioria da comunidade cigana em Tomar ainda não está integrada na sociedade e Bruna tenta ajudar a mudar isso. Sabe que é difícil mudar mentalidades mas que aos poucos é possível.
Durante a conversa com O MIRANTE
estava vestida de preto mas explica que gosta de vestir cores alegres. “Estou de preto porque estou de luto por um cunhado que faleceu recentemente. Gosto de cores vivas e de me maquilhar. É uma ideia falsa pensar-se que os ciganos vestem sempre de preto”, explica.

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