Sociedade | 24-03-2020 15:00

Luís Peazê é um aventureiro que vive ancorado na marina de Vila Franca de Xira

Luís Peazê é um aventureiro que vive ancorado na marina de Vila Franca de Xira

Luís Peazê é escritor, jornalista, tradutor e empresário, mas acima de tudo é um aventureiro que deixou o Brasil para viver estacionado num veleiro, na marina de Vila Franca de Xira.

A bordo do lar que montou em cima de água, falou a O MIRANTE da sua vida de aventuras pelo mundo que começou há mais de trinta anos. Na conversa não faltam as referências à região e ao Tejo “sacrificado” onde a sua casa flutua.

Passamos o Jardim Palha Blanco até ao portão de acesso à marina de Vila Franca de Xira. São dez da manhã, o sol abriu timidamente e o vento agita as águas do rio Tejo. Luís Peazê estica-nos a mão para subirmos ao convés e convida-nos a descer até ao compartimento habitável do barco baptizado de Sonar.

Descalça-se à entrada e apresenta-nos Helga Leal, companheira de aventuras com quem casou no Brasil, em 1981. Casou mais duas vezes, uma na Austrália, outra nos Estados Unidos da América, sempre com Helga. No dedo anelar traz apenas duas alianças, a primeira está pregada à camisola, em forma de âncora. “Derreti-a e transformei-a num talismã”, diz. Para se lembrar sempre de Helga, o seu “porto seguro” e ter sempre presente o amor pelo mar.

Há um ano que Luís e Helga habitam o Sonar, uma embarcação de 11 metros que no dia em que ficámos lá dentro cerca de três horas, fazia lembrar um barco em alto mar devido à ondulação. O barco tem 34 anos e foi comprado em Alcântara, Lisboa, por cerca de 30 mil euros. “Leva tempo até nos acostumarmos com uma nova casa”, comenta Luís. Helga tem 57 anos e é brasileira, filha de pai português, Luís também tem nacionalidade brasileira com raízes lusas, do Alentejo, e conta 62 anos.

Luís é escritor, tradutor, jornalista, empresário e marinheiro a meio tempo. Já percorreu o mundo a viajar e a trabalhar, mas sempre teve a curiosidade de morar num país onde se fala a sua língua embora com sotaque diferente. “Sempre estive ligado a Portugal pela literatura. Fernando Pessoa, Eça de Queirós, Luís de Camões, são uma inspiração. Portugal é como um pedaço do Brasil, uma nova namorada. Quando cheguei senti-me nu, agora visto-me de portugueses”, diz.

Explica porque escolheu Vila Franca de Xira. “Vim à procura de um barco para comprar. Era Inverno e a cidade estava vazia”. Logo lhe agradou a quietude, a biblioteca à beira rio e o museu do Neorealismo. Antes, experimentou as marinas de Cascais e Alcântara. “Em Vila Franca a proximidade com o povo é maior”. Outra vantagem, reconhece, é que a despesa na marina é menor. Poupam-se uns euros por ano em electricidade incluída e outras despesas obrigatórias.

O percurso profissional de Luís Peazê mistura-se com as aventuras que coleciona em 12 livros editados e memórias escritas nunca publicadas. Fala da ida do Brasil para os Estados Unidos da América (EUA), em 1985. “Comprei um ferro velho e percorri todos os Estados. Vendi pizzas na Califórnia, trabalhei numa loja de roupa, isto depois de ter sido executivo no Brasil”, de se ter tornado analista de sistemas e programador informático sem ter entrado numa Universidade. Foi durante esta estadia de dois anos nos EUA que aprendeu um estilo de vida anti-materialista que é a lição número um para se viver a bordo.

Ginástica na arrumação

Como o espaço numa embarcação é reduzido os livros foram sendo doados a bibliotecas, os presentes de casamento deixados para trás, as roupas passaram a ser as estritamente necessárias. “Aprendi a perder, para ganhar mais. A bordo não se pode carregar bens o tempo todo. Um viajante tem de saber largar”. No entanto, Luís Peazê tem consciência que há pessoas que talvez não o entendam. E ele também não entende outros, os que “têm três casas e um iate que usam uma vez por ano”. “É o quê e para quê? É status, capital social, vontade de competir com Deus que tem tudo e sabe tudo”, questiona.

Helga não cede aos seus princípios e gosta de ter tudo organizado. Ambos têm de fazer cedências para co-habitar harmoniosamente na casa flutuante. “Ele tem de cumprir as minhas listas de afazeres”, afirma, convicta. Guarda os seus pertences num pequeno armário e ele em arrumações incorporadas na mesa. Num momento mais divertido da conversa, Luís Peazê reconhece que no fundo são dois preguiçosos que demoram horas até saltarem da cama de manhã, enquanto vão planeando o dia, até chegarem ao sofá que também é assento para a mesa de refeições onde decorreu esta conversa.

Depois de terem morado num apartamento no Rio de Janeiro, que ainda hoje mantêm arrendado, e de terem construído em quatro meses uma pequena casa em tijolo em Porto Seguro, o casal decidiu mudar-se para um lar mais reduzido. Puseram mãos à obra e construíram o primeiro barco, tal era a sede de viver dentro de água. “Foi uma ideia que surgiu e que virou um desafio”, explica Helga.

“Não precisamos de ser da família do Rambo para construirmos um barco e para nos lançarmos ao mar”, completa o escritor. E ambos concordam: “É mais perigoso conduzir na autoestrada ou entrar numa rotunda do que navegar no mar. O mar avisa, não muda tão abruptamente. Dá tempo para perceber a direcção do vento, modificar as velas e mudar de rumo”.

Primeiro veleiro e histórias do mar inspiram livro

Alvidia foi o primeiro barco de ambos, um veleiro construído por eles na Austrália, onde viviam na altura, e lançado à ondulação do mar em 1995. “Fomos habitá-lo inacabado até 1997. Queríamos velejar até ao Brasil apesar de, na altura, a experiência ser pouca. Não conseguimos. Senti várias vezes que ia morrer no mar com a Helga”, conta Luís Peazê. Apesar do medo e dos enjoos, que ainda hoje atormentam Helga, navegaram oito mil milhas a bordo do Alvidia - que dá nome ao livro editado em 2000 e conta a relação do homem com o mar. “Quando sinto medo abro aleatoriamente o livro e lembro-me que se não tivesse arriscado, não tinha vivido tanto”, afirma. O Alvidia entretanto foi vendido e ainda está ancorado algures na Austrália e já vai no terceiro dono.

O casal sabe que um barco dá trabalho a toda a hora. Até porque Luís já se esqueceu de fechar uma válvula num dia em que fazia a manutenção e meteu água. Literalmente. “Achei que ia afundar e perder tudo o que tínhamos”, lembra. Mas, apesar dos imprevistos e trabalhos de manutenção continuam a afirmar com certezas que não vão largar a vida a bordo.

Ter sede de viajar o tempo todo, mas estar parado

O barco só vai para o mar se for para viagens longas. Querem conhecer a Madeira e chegar ao estreito de Gibraltar. “Ainda não houve oportunidade”, diz Luís. Afinal o Sonar está praticamente parado desde que atracou na marina vilafranquense. “Não paramos o tempo todo, mas a trabalhar”, esclarece Helga. Em terra firme, na oficina que abriram no Bom Retiro, dedicam-se a construir pequenas embarcações e artesanato inspirado na náutica.

No Bom Retiro, dizem, já criaram “mais laços de amizade do que quando viviam no Brasil”, mas quando não há trabalho para fazer na oficina vivem a fazer curtas viagens até Lisboa. É habitual cumprimentar quem passa, inclusive os vizinhos da marina. “Mas há um código: quem vive a bordo tem de ser discreto e despojado, mas deve estar sempre atento e preocupado com os outros e oferecer a sua ajuda quando é precisa”, afirma Luís Peazê.

A aventura amorosa de Helga e Luís, da qual resulta um filho fora do casamento, durante uma separação do casal, confunde-se com algumas linhas dos livros do autor. Perdeu a conta, admite, às mulheres que conquistou, antes de a conhecer e nos anos em que a perdeu, mas voltou sempre para os braços de Helga. E ela deixou-se sempre reconquistar. Nunca tiveram filhos mas têm o barco que é como “um filho adoptado”. A vontade de ambos é chegar ao fim da vida sempre a bordo de um barco, experimentar novas aventuras e inspirar pessoas. “Não deixar que a vida nos prenda e nos impeça de sonhar até morrermos”, diz o poeta e jornalista nascido em Canoas, no Rio Grande do Sul.

Um homem dos sete ofícios e pau para toda a obra

Uma parte da história de vida de Luís Peazê está retratada num livro com o título de Alvidia que pode ser comprado na Amazon, também editado em inglês. O autor diz que está lá uma boa parte do que viveu e sonhou. Falta contar algumas memórias de vida, a exemplo do seu autor preferido, o norte-americano, Ernest Hemingway. Luís Peazê traduziu para português o livro “Por Quem os Sinos Dobram” e essa tradução marcou a sua vida. A história de “O velho e o Mar” de Hemingway ainda hoje navega na sua cabeça.

Mas quando foi para os EUA pela primeira vez, a ideia era fazer a viagem de Jack Kerouac. Depois de lá chegar, com a idade de todos os sonhos, conheceu figuras famosas da época, algumas ligadas à história da América que criaram seitas como “A Irmandade do Amor Eterno”. Algumas dessas histórias de Luís, podem ser lidas no blogue “Converssanopier”. “Se toda a gente soubesse como às vezes é bom cair do pedestal. Os livros foram os meus mestres. Mas toda a aprendizagem tem as suas armadilhas. Nesse tempo de juventude cheguei a usar uma gravata vermelha da Hermès que custava uma centena de dólares. Aprendi programação, trabalhei em marketing, fui presidente de uma empresa de papel, tudo em pouco tempo. Esse era o segredo. Eu era aquele que queria chegar a todo o lado”.

A experiência de voltar aos EUA para montar uma fábrica de reutilização de plásticos foi a mais marcante da sua vida. Anos depois o sócio quis terminar a sociedade e Luís viajou até à Austrália onde replicou a ideia. Trabalhou como um escravo durante quatro anos. Depois resolveu fazer-se ao mar. Daí para cá a história de Luís Peazê e de Helga Leal, nunca mais deixou de ganhar novos episódios. “Sou um aventureiro, mas o que sinto é uma vontade de me libertar das amarras da vida e sinto medo de chegar um dia em que não seja capaz”.

“Não se mora num barco, vive-se num barco. Neste processo de gostar tanto de barcos aprendi a construí-los. Fui sempre assim. Sou um homem dos sete ofícios. Quem me conhecer depressa percebe que eu sou pau para toda a obra”.

Luís Peazê é um oceanógrafo que já fez conferências e ajudou a criar um curso universitário no Brasil. Mas gosta é de referir que o avó português era tão bom a contar-lhe histórias que a avó, de olhos neles, assim que percebia que o avô exagerava avisava com a sua voz sabia: não enfatizes tanto a história para não estragares a cabeça do rapaz.

Algumas destas memórias também estão em livro. Luís Peazê não é só escritor e jornalista e oceanógrafo também é, desde sempre, um bibliógrafo. Entusiasma-se e tem orgulho nos cuidados da dona Alice que vive no Bom Retiro, que quando não o vê na oficina durante uns dias fica logo preocupada.

Na conversa com O MIRANTE falou-se de enjoos, de dar nós às cordas, poesia, autores, viagens, trabalho, família, barcos, índios, ecologia, e tanto mais que não cabe nas páginas de um jornal. Quase no final da conversa, quando um de nós perguntou sobre umas luzes do barco que apagavam e acendiam, ouviu-se esta frase: “Todo o cuidado é pouco quando se vive na água dentro de um barco”. Por isso, é que os jornalistas, autores deste texto, nunca levaram a sério aquele balanço de berço que no final da longa conversa já convidava a uma sesta na proa do Sonar.

Ter ‘casa’ num rio sacrificado e lidar com toiros à porta

Luís e Helga ainda estão a descobrir o Ribatejo e as suas tradições. Com a tauromaquia já contactaram de perto durante a festa do Colete Encarnado e Feira de Outubro que decorrem mesmo ali à porta de casa. Luís atira-se ao tema e deixa a opinião: “As tradições têm de ser preservadas de alguma forma. E as touradas são como o telemóvel, não dá para não ter”, diz, mas defende que têm de ser “reinventadas”. Não o incomodam mais do que a pobreza, a poluição o assoreamento do rio Tejo, onde assenta a sua ‘casa’.

O casal diz-se céptico em relação aos que se acham donos de um rio, aos que têm o poder de abrir e fechar comportas, de construir e gerir barragens. “O Tejo é um rio sacrificado e não será fácil resolver os problemas de assédio populacional nas suas margens desde a indústria, turismo, e má utilização deste recurso”, afirma Luís Peazê, defendendo que um rio merece maior cuidado e atenção. “Os rios têm que correr livres para o mar e os seus leitos devem ser respeitados porque são fontes sagradas de vida”, completa.

Veleiro baptizado nas águas do Tejo

O primeiro veleiro construído por Luís e Helga na oficina do Bom Retiro, baptizado de Dinghy Peazê foi entregue às águas do Tejo um dia depois de a nossa reportagem ter estado a bordo da ‘casa’ do casal. Testado e aprovado por Joaquim Augusto da secção náutica do União Desportiva Vilafranquense, gestora da marina de Vila Franca, o veleiro de velas içadas atraiu a atenção dos mais curiosos que se passeavam pelo jardim Constantino Palha.

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