Sociedade | 04-06-2020 10:00

Desleixo de moradores e autoridades facilita surto de Covid em bairro de Azambuja

Desleixo de moradores e autoridades facilita surto de Covid em bairro de Azambuja

Atitude passiva das autoridades perante as denúncias de incumprimento das recomendações sanitárias pode ter contribuído para o alastrar do contágio no Bairro da Quinta da Mina.

Albertina Pereira mora há 10 anos no Bairro da Quinta da Mina, em Azambuja, onde em tempos as autoridades só entravam à força. Ganha coragem e desce à rua para falar sobre o que a atormenta agora: o medo de ser infectada pelo coronavírus que anda à solta no bairro. Um medo sempre presente desde o início da pandemia. “Para dizer a verdade sempre estiveram na rua a conviver e nunca usaram máscaras”, conta referindo-se aos moradores do bloco 6, em frente ao seu, onde teve início o foco de infecção que já conta com 19 casos no bairro e tornou-se notícia nacional.


É de lá que saem gritos ameaçadores para que volte para dentro de casa. “Aqui não se pode falar de nada, está a ver?”, diz enquanto se aproxima da porta da entrada. “Eu cá estou sempre no meu canto, só saio para passear a cadela”, diz Albertina antes de desaparecer escadas a cima.


De acordo com os dados conhecidos à data de fecho desta edição há 19 casos de infecção naquele bairro, resultado dos 36 testes realizados na terça-feira, 2 de Junho. No dia anterior a esta testagem, já nove pessoas estavam positivas à Covid-19, mas no bairro ninguém sabia de nada. “Autoridades? Nem vê-las. Tem havido sempre movimento na rua e a GNR nada de aparecer. Ficámos desprotegidos”, conta Patrícia Adrião. Alertou várias vezes para a situação, mas de nada adiantou.

Confinamento não foi cumprido

O presidente da Câmara de Azambuja, Luís de Sousa, sabe que se trata de um bairro onde é difícil manter a ordem, motivo que o leva a defender uma espécie de cordão sanitário ao bloco 6, onde moram nove famílias de etnia cigana. Uma medida descabida, na opinião do delegado regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, Mário Durval. “Não há cercos a blocos, há isolamento das pessoas. É essa a determinação das autoridades da saúde”, afirmou a O MIRANTE.


Mas quem ali vive sabe que a palavra isolamento não encaixa. Durante o estado de emergência aconteceram convívios na rua, as crianças brincaram normalmente e o fundo das escadas do bloco 6 encheu-se de gente sentada a conversar. A 1 de Junho, quando foram anunciados os primeiros casos, houve quem saísse de saco às costas, com certezas de que tudo ia piorar. “Vou-me embora, aqui não fico”, afirmou um jovem morador, assustado.


Há muito tempo que a presidente da Junta de Azambuja, Inês Louro, sabia que este bairro era uma bomba-relógio prestes a rebentar. “Recebemos muitas denúncias na junta de freguesia a alertar que uma pessoa infectada [funcionária da Avipronto] não estava a cumprir o confinamento obrigatório. Os cafés junto ao bairro estiveram sempre cheios”, sem controlo, diz. A informação que lhe chegou da GNR, depois de pedir reforços para vigiar as famílias do bairro, foi que “não havia militares suficientes”, até porque alguns tiveram de passar a fazer vigilância na estação do Espadanal, após o foco na empresa de distribuição, Sonae MC.


Um pedido que Luís de Sousa garantiu, na reunião do executivo de 2 de Junho, que iria reforçar junto das autoridades, salientando que o mais provável é que esta comunidade não vá acatar a ordem de isolamento. O autarca adiantou ainda que está a discutir com a Autoridade Regional de Saúde (ARS) a possibilidade de todos os habitantes do bairro serem testados.

Recém-nascido com mãe e pai infectados

Duas mulheres, ambas funcionárias da Avipronto e residentes naquele bairro estiveram infectadas pelo novo coronavírus, mas já recuperaram. Uma delas que regressa a casa vinda do trabalho faz uma pausa no percurso e esclarece: “Fiz o teste três vezes e deu negativo. Estou bem, não tenho nada a ver com isto”. É a ela que todos apontam o dedo e acusam de não ter cumprido a quarentena.


Não se sabe ao certo qual a origem dos novos casos de infecção no bairro, mas sabe-se que o primeiro a ser detectado foi o de uma mulher de 27 anos, residente no bloco seis, durante uma ida ao hospital por causa da gravidez. A mulher já teve o bebé, na tarde de 1 de Junho, mas desconhece-se se está ou não infectado, sabendo-se apenas que deverá permanecer no hospital uma vez que o pai e os quatro irmãos estão infectados.

Não há uma receita única para as empresas

A Avipronto, empresa de produção e comercialização de aves situada a 650 metros da Sonae MC na zona logítica de Azambuja, fechou portas quando tinha 38 casos positivos entre os 300 trabalhadores. No entanto, o entreposto da Sonae continua a laborar 24 horas por dia, quando tem 189 trabalhadores positivos à Covid-19. Sobre esta disparidade, Mário Durval, diz que as decisões das autoridades de saúde “têm a ver com o tipo de trabalho”, sublinhando que “não há uma receita única para todas as entidades”.


“A Avipronto tinha uma percentagem maior de infectados” entre o número total de trabalhadores e “havia maior proximidade” entre eles durante a execução das tarefas diárias. Já na Sonae defende que não havendo qualquer perigo de contágio não faz sentido parar o trabalho.

Hábitos de convívio e culturais facilitam o contágio

Admitindo que é nos bairros mais pobres que existe maior probabilidade de contágio, o delegado regional de Saúde, Mário Durval, diz a O MIRANTE que Azambuja não é a grande preocupação do distrito de Lisboa. Loures, por exemplo, inspira maior cuidado, até porque é lá que residem muitos dos infectados que trabalham na plataforma de logística.


O que não nega é que nos bairros sociais, como o de Azambuja, as “pessoas têm hábitos de convívio e culturais que facilitam o contágio”. “Diz-se que o vírus não conhece nem ricos nem pobres e que ataca todos. É verdade, mas sabemos que nos que vivem em condições de habitação mais precária ataca mais. O padrão epidemiológico de que são os pobres que adoecem mais está a acontecer”, afirma.


É precisamente esta ideia que o delegado de saúde continua a defender também para explicar os 189 casos de infecção por Covid-19 na Sonae MC, na plataforma logística de Azambuja. “Continuo a manter essa posição porque no local de trabalho não há qualquer possibilidade prática de se infectarem”, pois cada um toma conta de uma empilhadora e andam a dezenas de metros uns dos outros. “O mais provável é que [a origem] venha da comunidade de onde vêm”, diz.

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