Arquivos trabalham para o século XXI sem esquecer a história

Para democratizar acesso aos arquivos estão a ser digitalizados milhares de documentos.
Embora considerado por muitos um lugar morto, um arquivo é um lugar de vida que guarda tudo o que de bom e de mau se fez num determinado território e que nos define enquanto sociedade. O MIRANTE visitou os arquivos municipais de Vila Franca de Xira e de Abrantes e o Arquivo Distrital de Santarém e deixa-lhe algumas curiosidades.
Se todas as estantes do arquivo de Vila Franca de Xira fossem colocadas em fila indiana teriam perto de cinco mil metros lineares de comprimento, o suficiente para irem à vizinha freguesia de Alhandra e voltar. São milhões de documentos divididos em três edifícios municipais, o principal dos quais situado na Rua Reynaldo dos Santos.
A ideia de mergulhar num arquivo de tal dimensão pode desmotivar mas esse obstáculo irá desaparecer. Actualmente está em curso uma operação massiva de digitalização dos conteúdos para democratizar o acesso a quem necessite, de forma livre, universal e gratuita. Actualmente, a título de exemplo, mais de 50 mil fotografias podem ser consultadas online.
A informação é dada por Manuela Ralha, vereadora com o pelouro da cultura e uma das responsáveis por dar uma nova vida ao arquivo municipal. “Este trabalho que estamos a desenvolver permitiu-nos ser aceites como arquivo aderente à Rede Portuguesa de Arquivos e em breve estaremos referenciados no Portal Português de Arquivos, onde só estão onze municípios portugueses”, destaca a responsável. Isto possibitará também que o arquivo vilafranquense fique agregado à Europeana, o arquivo europeu que permitirá a qualquer cidadão da Europa consultar documentos de Vila Franca de Xira.
Entre os documentos mais antigos guardados no arquivo municipal está o foral novo de Vila Franca, datado de 1510 e um pergaminho a dar conta da instituição do Morgado da Póvoa de Santa Iria, de 1358.
O arquivo conserva documentação dos períodos moderno e contemporâneo, já que muita da documentação medieval se perdeu nos terramotos de 1531 e 1755. À sua guarda destacam-se, além do arquivo da própria câmara municipal, a documentação dos extintos concelhos de Alhandra, Alverca, Castanheira e Povos. Incluindo ainda documentação produzida por entidades judiciais, empresariais, eclesiásticas e associativas, incluindo toda a imprensa local, onde se inclui O MIRANTE.
Durante anos o edifício onde está instalado foi-se degradando e esteve em muito mau estado mas desde 2019 tem sofrido obras e está hoje irreconhecível e de cara lavada, com sistemas de controlo da humidade, controlo de pestes, portas e sistemas anti-fogo, novas pinturas e novo mobiliário para dar mais condições a técnicos e visitantes.
Em curso está um procedimento para um novo edifício de arquivo municipal que o dotará de capacidade para 20 mil metros de documentação em depósito. Para isso será adaptado um edifício já existente.
Utilizar o papel apenas no essencial
O documento mais antigo do Arquivo Municipal Eduardo Campos, em Abrantes, é um foral do século XIII e está preservado no edifício inaugurado em 2009. A equipa de técnicos do Arquivo recuperou recentemente um livro datado de 1600, onde estão registadas todas as informações consideradas importantes que aconteceram no concelho naquela época.
Desde 2011 os funcionários e técnicos do Arquivo estão a digitalizar os processos relacionados com o município e também com o arquivo histórico. Todos os processos de licenciamentos de obras municipais da União de Freguesias de Abrantes e Alferrarede, a maior do concelho, estão já digitalizados. Uma tarefa que terminou há cerca de duas semanas. A intenção é digitalizar todos os documentos e utilizar o papel apenas no essencial.
A construção do edifício do arquivo municipal, na Zona Industrial de Alferrarede, teve como objectivo preservar e divulgar os documentos locais e contou com um investimento de cerca de 1,3 milhões de euros, financiados, em parte, pelo Programa de Apoio à Rede de Arquivos Municipais.
Paulo Rêgo, chefe de divisão de Sistemas de Informação e responsável pelo Arquivo, explica a O MIRANTE que a partir de 2021 será disponibilizado online um repositório da informação do arquivo municipal, sobretudo informação histórica. “Se queremos difundir a história do nosso concelho não devemos obrigar as pessoas a virem ao arquivo municipal”. Apesar da crescente digitalização, Paulo Rêgo garante que os documentos em papel estão bem preservados.
“Trabalhamos para o século XXI mas continuamos a olhar para a história”. O acesso aos documentos é restrito e condicionado uma vez que estão armazenados em salas com condições climatéricas adequadas. Qualquer pessoa pode aceder ao documento que pretende desde que autorizada a fazê-lo. A maior parte (80%) dos pedidos feitos para consulta estão relacionados com licenciamento de obras.
Os desafios do digital
O desafio para o futuro será saber preservar a memória que se encontra em formato digital. “Hoje podemos consultar a primeira edição da Gazeta de Lisboa nos arquivos da Biblioteca Nacional, mas muitos conteúdos do Diário Digital (o primeiro jornal online do país, fundado em 1999) desapareceram completamente”, refere Manuela Ralha, vereadora da Câmara de Vila Franca de Xira, acrescentando que não é verdade que o que está online fica online.
“O digital também desaparece sem deixar rasto e no futuro teremos de saber como o poderemos preservar”. Leonor Lopes, directora do Arquivo Distrital de Santarém, crê que os arquivos físicos têm os dias contados, independentemente da digitalização, que apenas veio facilitar o acesso à informação. A grande questão, garante, coloca-se com os arquivos que já nascem digitais.
Brasileiros procuram assentos de nascimento de antepassados para obter cidadania
“Os limites dos nossos interesses não são os limites geográficos de um município”, conta Leonor Lopes. Para a directora do Arquivo Distrital de Santarém esta instituição funciona como uma pequena Loja do Cidadão onde, num só local, se facilita o acesso a documentação sobretudo relativa a identidade e propriedade com referência a uma entidade geográfica mais vasta que o município.
Durante anos os “clientes habituais” eram os genealogistas, investigadores de história local, alguns académicos, mas também o cidadão comum, advogados, solicitadores, cartórios notariais, entre outros. Com a maior parte dos registos paroquiais online a procura física é cada vez menor. Ainda assim, segundo a directora do arquivo, apenas uma décima parte da documentação está digitalizada.
Os particulares, tal como as instituições, procuram documentos que justifiquem a titularidade de propriedade, os limites e a transmissão da mesma. Tem surgido também uma procura crescente por parte de cidadãos brasileiros que pesquisam assentos de nascimento que justificam a ascendência portuguesa, para obtenção de cidadania.
O documento mais antigo guardado no Arquivo Distrital de Santarém data de 8 de Junho de 1263. Trata-se da Carta de Confirmação de Afonso III, rei de Portugal, do privilégio papal concedido ao Convento de Santa Clara de Santarém.
Para Leonor Lopes as principais ameaças ao papel são a humidade e a temperatura. Particularmente em Santarém é difícil controlar as altas temperaturas que se registam no Verão uma vez que o edifício, inicialmente construído para ser um Museu Municipal e não para albergar um arquivo, não tem as condições necessárias. A construção dos anos 70 do século passado, na Rua Passos Manuel, perto da Torre das Cabaças, possui grandes janelas envidraçadas que não facilitam a ventilação do espaço uma vez que, por motivos de segurança, praticamente não se abrem ao exterior.
O Arquivo Distrital de Santarém é um serviço dependente da Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, dirigido por Leonor Lopes desde 2003. Ali se guarda a memória de arquivos paroquiais e civis, notariais e dos tribunais. Formada em História com uma pós-graduação em Ciências Documentais, opção de Arquivo, Leonor Lopes passou também pela Torre do Tombo e pelo Arquivo Histórico da Santa casa da Misericórdia de Lisboa.
À margem
Para que nunca nos falte a memória
Numa reportagem em que falamos de arquivos e da sua importância na preservação da memória não podemos deixar de puxar a brasa à nossa sardinha. O MIRANTE, em circulação há 32 anos, tem sido testemunho dos acontecimentos da região ribatejana e tem dado espaço às suas gentes e colectividades na sua edição em papel e, mais recentemente, desde 2002, na edição online. Com um acervo documental que ultrapassa as 500 mil fotografias e muitos milhares de textos, que ocupam um terabyte (um milhão de megabytes), o jornal aproxima-se das 1.500 edições, guardadas religiosamente em papel, para que nunca nos falte a memória.