Sociedade | 03-07-2020 11:57

Amália: a mulher que era a Musa de todos os portugueses

Amália: a mulher que era a Musa de todos os portugueses
MEMÓRIA

Memória da mulher que foi a maior voz do fado e a figura mais amada dos portugueses.

No centenário do nascimento de Amália Rodrigues lembramos a gravação musicada por Amália de um poema de Vitorino Nemésio, que permanece no espólio da casa de S. Bento, e que merece ser editada nas comemorações do centenário. É um apelo dirigido ao presidente e aos administradores da atual Fundação e Museu.

António Valdemar*

A casa de Amália na rua de São Bento, onde viveu mais de 40 anos, era ela. Ela própria, com todas as euforias e depressões que se alternavam no quotidiano. Também eram os amigos e, evidentemente, as pessoas da família. O resto era a paisagem que enquadrava essa extraordinária personalidade - os painéis de azulejos do século XVIII, lindíssimos e autênticos.

Flores, muitas flores, renovadas todos os dias. O piano de cauda com uma guitarra em cima; alguns móveis, alguns quadros, entre ao quais o inevitável retrato de Eduardo Malta. Sem esquecer, ainda, o busto de Amália do escultor Joaquim Valente que lhe fixou a pose, a atitude, os olhos próximos e distantes, a imagem de marca da consagração nas casas de Fado em Lisboa, que a projetou em Portugal inteiro e, poucos anos depois, estendeu-se às capitais da Europa e das Américas, mantendo os vínculos com a essência de Lisboa. Talvez por isso, Aquilino, num dos seus livros, situou-a entre os mitos de Lisboa, ao falar da «cidade maravilhosa de Ulisses e de Amália». Anos mais tarde – quem o diria? – ambos ficaram no Panteão Nacional.

A TERTÚLIA DE SÃO BENTO

A relação de Amália com o mundo social e alguns artistas que frequentavam a sua casa, com mais ou menos assiduidade, decorreu dos anos 40 ao princípio dos anos 60, através do ator Erico Braga. Agente publicitário de Amália, também organizava as promoções do Diário de Notícias. Colaborei, como repórter, durante vários anos, em algumas dessas iniciativas, tais como o Concurso de Construções na Areia, desde Praia de Âncora até Lagos; e, em Lisboa, o Natal nas Prisões e o Natal nos Hospitais. Assim, e a partir de 1961, comecei a ser recebido em casa de Amália. Prolongou – se até á morte.

Pertenciam Erico Braga, com Pierre Hourcade, Vitorino Nemésio e Moses Amzalak, à direção da Aliance Française. Daí o Diário de Notícias patrocinar a realização, no Teatro / Cinema São Luís, das semanas de teatro francês e da apresentação de cinema francês.

David Mourão Ferreira atraiu para casa de Amália poetas, escritores e outros intelectuais. Muitos deles passaram a fazer parte da tertúlia de São Bento.

Era, ao tempo, David Mourão Ferreira casado com uma sobrinha de Valentim de Carvalho, o editor dos seus discos que, a certa altura, incumbiu João Belchior Viegas para os contactos nacionais e internacionais e a preparação dos espetáculos. O mesmo aconteceu com Alain Oulman que, depois de Frederico Valério, passou a musicar as letras e a selecionar para Amália poetas contemporâneos que terminaram por integrar o seu reportório. Basta mencionar, por exemplo, Manuel Alegre e Alexandre O Neill.

PRESENÇA DE NEMÉSIO

David Mourão Ferreira introduziu Vitorino Nemésio. Foi um dos refúgios, num momento de ansiedade e desespero. Nemésio chegava antes do jantar. Vinha da rua mestre António Taborda, de uma das residências dos jesuítas e sede da redação da revista Brotéria. O Padre Manuel Antunes era um dos que lhe ouvia as confidências.

Subsistia ainda em Vitorino Nemésio a ressaca de uma crise religiosa, resultante de graves problemas familiares e coincidiu com o regresso a uma prática católica repleta de pequenos e grandes excessos. Em vez do encontro direto com Deus, entrando pela porta principal da igreja, mergulhava primeiro no submundo das superstições e na praga das intrigas das sacristias. Data esta fase do início dos anos 50, e ficou documentada em dois livros O Pão e a Culpa, conjunto de poemas ao arrepio de circunstâncias; e Retrato do Semeador, crónicas e artigos de opinião, recuperados da coluna semanal que mantinha no Diário Popular.

Os dois livros desencadearam polémica. Houve quem duvidasse da sinceridade que os ditou, e até os considerasse uma ligação política ao regime, haja em vista a relação promíscua, escandalosa e fascista entre a igreja e o Estado. Foi corajosamente denunciada na Carta do Bispo do Porto D. António Ferreira Gomes a Salazar. Essa carta da maior frontalidade religiosa e da maior coragem política – e que a tornou um documento histórico - custou, a D António Ferreira Gomes, a perseguição da PIDE e longos anos de exilio e de ostracismo.

MARGARIDA VITÓRIA, BRAÇOS ABERTOS

Mas à medida que se ia libertando do que Fernando Pessoa classificou de «pieguice fruste» e «catolicismo campestre», Nemésio voltou a ser outro. Os poemas do Canto de Véspera e de O Verbo e a Morte reataram a amplitude do intelectual e a dimensão humana do crente sem minudências aviltantes.

A paixão escaldante – e amplamente correspondida - por Margarida Vitória, a famosa Marquesa de Jácome Correia, desencadeou, em Nemésio, energias amordaçadas.

Amália gostou imenso de Margarida, grande mulher e grande senhora, --escorraçada e destruída pela sua própria família--, memória inesquecível em todos os que tiveram o privilégio do seu convívio e da sua amizade. Recebeu-a de braços abertos. Incorporou-a, logo, na partilha de hospitalidade.

Foi nesses anos loucos de amor tardio e errático que Nemésio ofereceu a Amália um dos seus livros mais açorianos e mais acessíveis ao seu gosto – Festa Redonda. O título acrescenta: «Décimas & Cantigas de Terreiro oferecidas ao povo da Ilha Terceira por Vitorino Nemésio, natural da dita ilha».

PROJETO DE JOSÉ PRACANA

O acordo de São Luís do Maranhão, celebrado em Novembro de 1989 pelos chefes de Estado e de Governo dos Países de Língua Portuguesa, definiu os rumos da CPLP (Comunidade dos Países da Língua Portuguesa) e fundou o Instituto Internacional da Língua Portuguesa. Estavam lançadas as bases de um possível entendimento comum.

José Pracana projetou um contributo para impulsionar a lusofonia, através de um espetáculo com Amália – apenas a voz e apenas a presença de Amália - a difundir através do lugar simbólico da ilha do Corvo. Ambos me honraram com o convite para escrever o texto de apresentação. Lopes de Araújo, à frente da Televisão nos Açores, deu todo o apoio.

Tinha por objetivo a expansão da língua, da poesia e da música portuguesa, para todo o mundo lusófono, para os países da emigração e, em especial, junto das comunidades açorianas.

A DECISÃO DE AMÁLIA

Para o projeto inicial que se malogrou - derivando para uma incursão na história e na exaltação do Fado, com o patrocínio da Radiotelevisão dos Açores - Amália escolheu a “Décima de Sílvio e Silvana”, poema do livro Festa Redonda, que a emocionou profundamente.

Todavia, Alain Oulman musicava, na altura, versos de Cecília Meireles e não pensava noutra coisa. Amália não desistiu do poema e pediu a colaboração musical do seu guitarrista Carlos Gonçalves, aguardando, para logo que possível, os arranjos de Alain Oulman ou, se ele entendesse, uma versão apenas da sua autoria.

Decorrido algum tempo, porém, falecia Alain Oulman, em Paris e, consequentemente, Amália resolveu gravar a “Décima de Sílvio e Silvana”. Alguns dos amigos que a visitavam conhecem a decisão. Encontro-me entre os que acompanharam, dia a dia, tudo o que aconteceu.

Solicitei-lhe uma cópia da gravação. Acedeu com todo o gosto, dando indicações (quem lembra Theresa Mimoso?) para que me fosse entregue uma cassete. Voltei a pedir. Pedi outra vez. Possivelmente, ainda mais outra vez. Surpreendida de não me ter sido entregue a cassete, Amália voltou a recomendar que me dessem cópia da gravação.

Mas o excesso de zelo da corte que a rodeava e a manipulava era um bloqueio contínuo. De adiamento em adiamento passaram os meses, até que surgiu o ponto final que a sua morte acabou por colocar.

EDITAR A GRAVAÇÂO

Tudo me leva a supor que essa gravação ainda permanece no espólio da casa de S. Bento, atual Fundação e Museu com o seu nome. Dirijo, portanto, um apelo ao presidente ou aos seus administradores, para que essa interpretação, até agora inédita, seja editada por ocasião do centenário.

Amália transfigurava-se. A voz, logo que rompia o silêncio, conjugava o real e o imaginário. Era um suceder de espanto a espanto :« O seu pente é um triste cardo,/a sua vida é chorar (...)/Tens sinais de anjo na cara/e de cabrinha no pé !(...)/ Retraça cachinhos de uvas./A terra dá flores de sangue,/O céu agulhas de prata;/Uma sereia escondida / Canta, canta que se mata:/ “Toca, flauta! E tu, Silvana, /Queima o teu pente dorido… /Sirva-te o mar de cabelo!” /Sílvio - navio perdido…)»

A SAUDAÇÃO DE AMÁLIA

Nas estrofes daquela “Décima” (afinal 24 quadras) João David Pinto Correia, num ensaio sobre “Voz e povo na poesia de Vitorino Nemésio”, identificou a dimensão lendária de uma Sereia Melusina com sinais de Dama Pé de Cabra, mas transformada em Bela Infanta.

Para além do que João David Pinto Correia salientou, e de tudo quando há de raiz e de sentimento açoriano, Amália - pude várias vezes confirmá-lo - revia-se e sentia na “Décima de Sílvio e Silvana” o seu retrato, ou o retrato que desejava ter na posteridade.

A escolha do poema por Amália testemunha a admiração que ela tinha por Nemésio (e que tambem envolveu Margarida Vitória). Perdurou, na íntegra, até à morte de ambos.

Nesta memória retrospetiva vale a pena transcrever a “Carta” que Amália dirigiu a Vitorino Nemésio, uma carta em versos muito coloquiais:

«Talvez que o anjo esquecido,
O anjo da poesia,
Se tenha de mim perdido
Sem reparar que o fazia...

Por isso me faltam asas
E me sobejam as penas
De um desejo inalcançado:
Que eu gostava de voar
Até ao anjo perdido
O anjo de mim esquecido,
Que por mim é tão lembrado.

Ai se eu tivesse voado
Aonde queria voar
Não estava agora a rimar
Versos de asas cortadas.

Voava junto de si
Assim fico aonde me vê
Mesmo pregadinha ao chão
Com asas de papelão
E sem entender porquê.

Pois a uns faltam-lhe asas
Mas por ter asas cortadas
Sofrem uns e outros não?
Eu tenho sofrido muito
Nos meus voos ensaiados
Que ao querer sair do chão
Ficam-me os pés agarrados,

...E por falar dos pés
Com versos de pés quebrados
Perdoe lá a quem os fez
Pelo mal dos meus pecados
Só os fiz por timidez
Que tenho em me dirigir
A quem tem por lucidez
Razão para distinguir
O bom e o mau Português.
Assim à minha maneira
Aqui venho responder
Desta forma tão ligeira
Que a sério não pode ser!»

A DESCOBERTA DOS POETAS

Ao recapitular mais de trinta anos de convívio, nas mais diversas situações, verificamos na Carta a Vitorino Nemésio que acabamos de transcrever o engenho poético de Amália. E numa segunda carta a Nemésio e em versos igualmente coloquiais, Amália também voltou a manifestar um sentimento afetuoso de modéstia: “Aí meu querido professor/eu nunca fui sua aluna, /não tenho instrução nenhuma/; como posso entender/ o que o senhor quis dizer/sem saber ler, nem escrever?»

Mas a intuição prodigiosa de Amália deu voz a grandes poetas tão diferentes e das mais diversas épocas da história da poesia portuguesa. Mencionamos, por exemplo, da lírica medieval, uma cantiga de Amigo da Ermida de São Simeão Mendinho; uma cantiga de João Ruiz de Castelo Branco, do Cancioneiro Geral ; poemas de Camões o expoente máximo do Renascimento; de António Feliciano de Castilho, um dos representantes dos românticos; de Guerra Junqueiro, da geração de 70; de Silva Tavares, que principiou na revista Exilio ,que se insere na sequencia do Orpheu e teve Fernando Pessoa, entre os principais colaboradores.

Mais próximo de nós, destacam – se as suas interpretações de José Régio, de António de Sousa e Vitorino Nemésio, do movimento da Presença e Pedro Homem de Melo, que é da mesma geração. A inventariação sumária que estamos a fazer com lacunas inevitáveis abrange Alexandre O Neil, fundador do grupo surrealista; David Mourão Ferreira, um dos principais colaboradores da Távola Redonda; e, ainda, de Manuel Alegre que antes e depois do 25 de Abril se evidencia na geração de protesto e de exaltação da liberdade e do que existe de mais profundo da génese de Portugal e nas singularidades do temperamento e do carácter dos portugueses.

Mas neste conjunto tão amplo e tão diversificado avulta a razão, o sentido e o mistério que sempre perseguiram Amália ao construir as suas alegorias e os seus símbolos, extraídos da realidade natural: o descer da noite espalhando sombras; o olhar para o céu a aguardar uma resposta; a claridade azulada da manhã para o confronto do dia-a-dia; o ir e vir nas espumas do mar, o soluçar nas rajadas do vento. Toda a angústia e toda a frustração da mulher, inexoravelmente, dividida entre o orgulho e a humildade, entre o esplendor da vida e o espectro da morte.

* Jornalista, titular da carteira profissional número 1; sócio efetivo da Classe de Letras da Academia das Ciências

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