Ser fotógrafo em tempos de fast-food da fotografia
Carlos Ferreira é fotógrafo profissional e Rita Valério estuda para sê-lo.
A propósito do Dia Mundial da Fotografia O MIRANTE viajou com os dois fotógrafos da região até ao icónico museu fotográfico oitocentista, Casa-Estúdio Carlos Relvas, na Golegã. Na conversa falaram do vício de imortalizar momentos e emoções através da lente, da paixão que partilham por casamentos e da nova crise da efemeridade das fotografias que só vivem 24 horas numa rede social.
Habituados a estar do lado contrário das lentes das máquinas raramente aparecem em fotografias ou gostam de posar para elas. Um padrão contrariado no dia em que decorreu a conversa dos dois fotógrafos com O MIRANTE, nos jardins da Casa-Estúdio Carlos Relvas, na Golegã, a propósito do Dia Mundial da Fotografia assinalado a 19 de Agosto.
De máquina ao pescoço Rita Valério vai posando timidamente ao lado de Carlos Ferreira, mais descontraído e confiante a olhar para a câmara. Pede-lhe que enfrente a lente sem medos. “Alguma vez temos de ser nós a fotografia e deixar que captem a nossa essência”, atira.
O fotógrafo nascido na Mealhada, distrito de Aveiro conta a história da sua família e das dos outros através das fotografias que dispara desde os 14 anos, idade com que comprou a primeira máquina com o dinheiro que juntou a trabalhar numa serralharia. Foi fotojornalista num jornal desportivo e fotógrafo do exército antes de abrir o seu estúdio de fotografia, em Torres Novas há 30 anos. Chegou a ocupar-se de muitos outros ofícios, desde a construção civil, à serralharia e padaria para conseguir ter dinheiro para comprar os rolos. “Ainda sou desse tempo dos rolos e que caro que era revelá-los”, recorda.
Explica porque escolheu licenciar-se em Multimédia e tornar-se fotógrafo profissional. “É especial poder captar a essência de alguém, num momento único que nunca mais se volta a repetir. Um fotógrafo é um contador de histórias que ajuda a construir o património de alguém”. Mas uma boa fotografia, acrescenta, “tem de ser sempre espontânea”.
A jovem de 19 anos, natural de Santarém, vai acenando afirmativamente com a cabeça, e sublinha que mesmo em sessões fotográficas é essencial um fotógrafo saber quebrar o gelo e deixar quem vai ser fotografado o mais à vontade possível. Rita está no segundo ano da licenciatura em Produção Multimédia em Educação a seguir o sonho que alimenta desde que o tio lhe ofereceu a primeira máquina. “Tinha 10 anos, vestia a minha sobrinha com as minhas roupas e pedia-lhe que fizesse poses para a fotografar”, conta.
São de gerações diferentes e nenhum conhece a obra de Carlos Relvas (1838-1894), o primeiro fotógrafo amador do país. “Nem fui pesquisar só para fazer boa figura na entrevista”, afirma entre risos Carlos Ferreira que se diz pouco entusiasta dos estudos do passado na sua área e critica, inclusive, que “ainda se ensine a fotografia a preto e branco nas escolas” e se menospreze a importância da comunicação e das relações humanas na profissão.
A crise da fotografia efémera nas redes sociais
As fotografias guardadas nos álbuns ou nas molduras alinhadas pelos móveis de casa também parecem ser coisa do passado. “Agora oiço avós a queixarem-se que não têm fotografias dos netos. As que tiram ficam exclusivamente nos telemóveis”, critica Carlos que diz ter as paredes de casa forradas com fotografias.
O que mais o incomoda, confessa, é fazer um trabalho e pedirem-lhe para o gravar numa pen. Uma nova tendência que veio para ficar, mas que tenta contrariar sugerindo os álbuns físicos. Aliada a esta surgiu uma outra tendência que critica: “Os telemóveis são o fast-food da fotografia” que vieram para as aumentar em número ao mesmo tempo que as banalizam e desvirtuam. “Tiram foto, postam nas redes sociais para ganhar o ‘like’ e morrem ali, 24 horas depois, com aqueles filtros torrados para serem supostamente apelativas”, diz.
Rita Valério partilha a mesma visão e embora reconheça que muitos telemóveis tiram boas fotografias, “nada substitui a qualidade de uma máquina fotográfica”. Por isso, diz, muitos amigos lhe pedem para fazer sessões fotográficas para actualizar as redes sociais. Se cobra por isso? “Não me sinto bem em cobrar aos que me são chegados”. “Mas devias”, diz-lhe Carlos que só trabalha pro bono por iniciativa própria.
A paixão pelos casamentos
Se a timidez de Rita e o à vontade de Carlos os afastam na interacção com aqueles que fotografam, há algo que os une: a paixão pelos casamentos. “Vivo momentos arrepiantes e emocionantes nos casamentos. Sinto-me um sortudo em poder registar o dia mais especial da vida de alguém”, diz Carlos que já perdeu a conta aos noivos que fotografou. Mas todos naquele dia são a sua família. “A minha que me perdoe, mas todos os noivos, grávidas e bebés recém-nascidos também são a minha família. E no dia em que os estou a fotografar vivo exclusivamente para eles”, diz.
Apesar de só ter fotografado um casamento, Rita Valério percebeu que essa é a sua praia. E do primeiro, garante, nunca se vai esquecer. Aconteceu este Verão, em tempos de pandemia, sem festa e com poucos convidados na conservatória. “A luz era fraca”, mas o clique não falhou no momento do “beijo de máscara”.
Foi para não beijar de máscara e sem festa que todos os noivos da agenda de Carlos Ferreira adiaram o casamento para 2021. “Não vou ter mãos a medir de Março a Novembro, com 40 casamentos”, diz.
Fazer estética da miséria não é para a lente do fotógrafo de Torres Novas
Passou 12 anos a trabalhar como fotógrafo para o exército português e em 2007 concretizou um dos seus sonhos: “fotografar num teatro de operações”. No Kosovo olhou e captou muita miséria, através da lente da máquina, que ainda hoje lhe dói recordar. “Custou-me fotografar essa miséria, não sou o fotógrafo indicado para esse tipo de trabalho. Fotografar crianças mal nutridas como muitos colegas meus fazem para depois as apresentarem em concursos, não é para mim”, diz Carlos Ferreira que tem conquistado prémios exclusivamente com fotografias de casamentos, tendo alcançado nos últimos três anos o primeiro lugar no ranking do Casamentos.pt.
Carlos Relvas e a casa que foi estúdio de fotografia
Carlos Augusto Mascarenhas Relvas de Campos (1838-1894) foi repórter fotográfico de primeira categoria, inventor de sucesso, músico, lavrador, cavaleiro tauromáquico e mestre de equitação. Nascido na Golegã foi na vila ribatejana que deixou o seu legado ao país: a Casa-Estúdio que funciona hoje como museu do seu património fotográfico, após obras de beneficiação, por iniciativa da Câmara da Golegã e com o apoio do Ministério da Cultura. Construída com o propósito de ser o seu estúdio e laboratório fotográfico, a casa permite uma autêntica viagem ao passado até à era da fotografia não industrial. Na sua construção, Carlos Relvas utilizou 33 toneladas de ferro fundido e cobriu as paredes de panos opacos e enormes vidraças para conseguir controlar a luz solar. Foi numa das suas salas que retratou milhares de personalidades da vila, da região e do país, entre outras, o rei Dom Carlos e a rainha Dona Amélia. A Casa está aberta ao público de segunda a sexta-feira, entre as 10h00 e as 16h00.