Sociedade | 21-11-2020 15:00

Legionella deixou marcas que ficam até à morte

Legionella deixou marcas que ficam até à morte

Seis anos depois do surto no concelho de Vila Franca de Xira, vítimas directas e indirectas ainda sentem mágoa e revolta.

A vida familiar de Maria Otília Pinto, residente na Póvoa de Santa Iria, desmoronou-se há seis anos, quando o marido, José Gabriel, morreu vítima do surto de legionella de Novembro de 2014. Para a viúva ficou a saudade e a revolta com a actuação de algumas entidades. José foi a segunda vítima de um surto que causou a morte a outras onze pessoas e infectou mais de 400.

Maria viu o marido ficar fora do nexo de causalidade estabelecido pelo Ministério Público (MP), tal como a maioria das vítimas, por culpa de uma investigação deficiente da Direcção-Geral de Saúde e de uma interpretação questionável da lei por parte dos magistrados que despacharam o assunto no Ministério Público. Pela primeira vez em seis anos Maria conta a sua história a O MIRANTE.

A funcionária pública, de 64 anos, vive com as fotos do marido, José Gabriel, que tinha 53 anos e era motorista de turismo. Não se sabe onde foi contaminado: se a meter gasolina no posto em frente à Adubos de Portugal (ADP) se ao chegar do supermercado. Começou com febre, foi medicado mas o estado de saúde agravou-se subitamente. Entrou no Hospital de Santa Maria já com dificuldades.

“Quando vimos as notícias é que percebemos que algo se passava. No hospital detectaram-lhe a legionella. Não reagiu aos medicamentos. Quando cheguei, no dia a seguir, deram-me a notícia que ele não ia conseguir sobreviver. Um pulmão já estava sem funcionar e o outro estava 65 por cento infectado”, lamenta a viúva. José faleceu no dia 8 de Novembro, dois dias depois do início do surto que se prolongou até dia 21.

O sentimento de impunidade fere a alma a Maria Otília, que nunca teve direito a justiça nem a um pedido de desculpas. “A minha revolta é imensa. Como podem pedir um nexo de causalidade numa situação destas quando toda a gente sabe que tudo saiu da mesma fábrica, no mesmo espaço temporal, no mesmo dia. Toda a gente apanhou a mesma legionella. Não aceito, é uma injustiça tremenda para nós e para os outros 300 que ficaram de fora”, condena.

Nunca recebeu uma palavra de conforto da ADP nem do Governo. A família foi abandonada à sua sorte. “Para a ADP até lhes deu jeito as pessoas estarem excluídas. Os interesses económicos sobrepuseram-se ao resto e o Governo nunca se dignou a falar connosco. Abandonaram-nos”, critica. A mágoa e revolta que sente vão acompanhá-la até ao resto da vida. Diz que é preciso encontrar o culpado, saber quem falhou e indemnizar quem viu as suas vidas alteradas para sempre.

Uma semana entubado e ventilado

Pedro Roque, motorista natural e residente no Forte da Casa, tinha 39 anos quando foi contaminado. Foi a segunda vítima mais nova do surto. O apartamento onde vive fica mesmo em frente da fábrica da ADP. Soube que estava infectado depois de chegar a casa com um cansaço e falta de ar “incríveis”, como nunca antes tinha sentido. Ficou uma semana internado e à mulher preparam-na para o pior. Foi entubado, ventilado e recebeu massagens respiratórias porque os pulmões falharam.

“Os antibióticos a entrar no corpo doíam imenso. Estive de tal forma anestesiado que nem me apercebia do que se passava. Só depois caí na realidade: estive no limite do coma”, conta Pedro a O MIRANTE. Depois de sair do hospital esteve de baixa e sem poder trabalhar durante cinco meses. Para a vida ganhou um cansaço permanente e a impossibilidade de fazer esforços.

Também ficou fora do nexo de causalidade do MP. Ainda se constituiu assistente no processo principal, mas a acção acabou arquivada. “Nunca tivemos nada, nem MP, nem DGS, nem ADP. Fomos abandonados à nossa sorte”, critica. Pedro, à semelhança das restantes vítimas, sente injustiça e revolta, todos os dias, quando vê a fábrica da sua janela. “Há pessoas que ainda hoje têm gastos elevados com medicação para as sequelas da doença e têm tido zero apoios. Estávamos sossegados nas nossas vidas e apanhámos uma bactéria do ar. Estive doente e ainda tenho de provar que a respirei. Alguém falhou, seja o MP, a DGS ou a ADP”, condena.

Para Pedro, nas primeiras 50 pessoas a serem diagnosticadas com a doença dos legionários, os técnicos da DGS “andavam à nora” nos hospitais, sem saber o que fazer. “Se a pessoa mora na zona, tem sintomas e o foco emissor é a fábrica, toda a gente apanhou dali, não pode ter apanhado de outro lado”, defende, notando que o surto de 2014 colocou a nu o facto do país não estar preparado para isto. “Não aprendemos com os erros e o nosso exemplo não serviu para nada. Continua a não haver fiscalização e as empresas continuam a fazer as coisas à sua maneira”, conclui.

“Tirando os jornalistas ninguém quer saber das vítimas”

O presidente da Associação de Apoio às Vítimas do Surto de Legionella de Vila Franca de Xira critica o arrastar do processo, condena o facto de nunca ter havido uma palavra de conforto da parte dos políticos nacionais e diz que as vítimas se sentem abandonadas, esquecidas e descartadas. Está ainda a correr nos tribunais a acção popular interposta pela associação contra o Estado e a associação promete ir até ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem para lutar por justiça. “Ninguém nos pergunta nada nem para saber como estamos. Tirando os jornalistas o Estado não nos liga nenhuma”, lamenta Nuno Silva a O MIRANTE.

O dirigente entende que o surgimento de um novo surto de legionella no norte do país prova que “não se aprendeu nada” com o caso de Vila Franca de Xira e lamenta que seja preciso um dia haver um problema no Parlamento que infecte deputados para finalmente alguma coisa ser feita no que toca à lei que impõe fiscalização às empresas. “A junta e a câmara, a nível local, são as únicas que se preocupam connosco. Até nos entregaram agora material de protecção para a Covid. De resto, estamos por nossa sorte”, lamenta.

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