A luta feminista não é contra os homens é pela igualdade

Discriminação de género e violência nas suas várias formas acontecem e afectam mais as mulheres do que os homens. No Dia Internacional da Mulher, O MIRANTE ouviu testemunhos e conversou com Jéssica e Filipa, duas feministas e representantes da Marcha Orgulho Santarém.
Alexandra Santos, assistente social, de 34 anos, perdeu a conta à quantidade de vezes em que foi assediada em contexto laboral. Houve um dia em que temeu “literalmente ser violada por um utente”. Elogiava-a pela sua beleza, convidava-a para jantar, até que um dia a encontrou na rua, agarrou-a com força, beijou-a no pescoço e perguntou-lhe: “Então e agora, já podemos ir jantar?” Teve medo e debateu-se. À sua volta pessoas passavam, mas ninguém fez ou disse nada.
Já Patrícia (nome fictício) recebeu o alerta dos amigos, mas ignorou-o. Viveu quatro anos em Santarém com o então namorado e demorou tempo de mais a perceber que vivia uma relação tóxica e abusiva. “Começou a mexer no meu telemóvel e redes sociais para ver todas as mensagens, a controlar o que eu vestia ou a forma como me comportava”. Já dormiam em quartos separados quando a tentou violar.
Para Pilar Monteiro, o reagir mal ao assédio por parte de um desconhecido valeu-lhe uma ameaça: “Saiu do carro, dirigiu-se a mim e disse-me que olhava para onde lhe apetecesse e dizia o que quisesse”.
Estes são apenas três casos que reflectem a realidade da violência e discriminação de género. E é por isso, mas também pela desigualdade salarial, justiça climática, pelas pessoas racializadas, pela violência doméstica e todas as formas de violência - que também afectam os homens, mas mais as mulheres - que “é preciso haver feminismos”, explica a psicóloga clínica de Alpiarça e membro da Marcha Orgulho Santarém (MOS), Filipa Filipe.
No dia 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, decorreu virtualmente, mas também nas ruas, a Greve Internacional Feminista à qual o movimento de Santarém aderiu. “Esta é uma luta diária e contínua até ser possível minimizar as desigualdades e desconstruir a ideia que existem comportamento estereotipados para uma mulher na sociedade”, diz a O MIRANTE Jéssica Vassalo, representante da MOS.
O contexto pandémico actual, com os seus impactos económicos e sociais veio, para a jovem escalabitana, reforçar a necessidade desta luta. Desde a pandemia que a “violência aumentou cerca de 30 por cento na maioria dos países europeus e até Novembro pelo menos 30 mulheres foram assassinadas em Portugal”. Se recuarmos até 2004, o número é ainda mais assustador: 564, segundo o Observatório de Mulheres Assassinadas.
Mas vamos devagar. “A violência contra as mulheres não existe só quando uma mulher é assassinada ou quando há agressão física. Veja-se o assédio no trabalho, na rua, o namorado que controla aquilo que a namorada veste ou as suas mensagens”, alerta Jéssica Vassalo. O problema, observa Filipa Filipe, está na “normalização, na banalização destes comportamentos”, mas todos “são formas de violência e deixam as suas marcas”.
Se também acontecem aos homens? Claro que sim, mas não podem ser comparados em termos históricos nem em proporção. “Não conheço mulher nenhuma que não tenha sido alvo de algum tipo de discriminação, por ser mulher”, diz Jéssica Vassalo, partilhando que no seu caso o mais comum é ser discriminada por ser uma mulher lésbica.
No caso de Filipa Filipe, a discriminação de que já foi alvo é contada através de um episódio de assédio, numa rua de Lisboa, “em plena luz do dia”. Foi perseguida por um homem que queria sexo a troco de dinheiro. Não adiantou dizer que “não” uma vez e pedir que a deixasse em paz. Tiveram que ser várias. Este exemplo vivido pela própria é outra causa da luta feminista: a objectificação da mulher, seja ela negra ou branca, hetero ou homossexual.
Voltando aos homens, importa esclarecer que também os há feministas - não necessariamente os que são homossexuais. E desengane-se quem pensa que esta é uma luta de mulheres contra os homens. “Não é. Os feminismos têm como objectivo mudar a sociedade e transformar o sistema desigual em igual - 50/50 -, ou seja, não estamos contra os homens estamos a reclamar aquilo que é nosso por direito”, esclarece Filipa Filipe.
Discriminação positiva é necessária, mas não resolve
A lei da paridade que estabelece um limiar mínimo de 40 por cento de mulheres e de homens nos cargos e órgãos de decisão política e administração pública veio, na opinião da psicóloga de Alpiarça, “aumentar a participação das mulheres”, mas o problema persiste.
“É totalmente errado dizer que homens e mulheres ganham o mesmo. Em empregos públicos as mulheres são a maioria (61 por cento), mas ganham menos e recebem menos prémios. Nos quadros de chefia 41 por cento são mulheres e 59 por cento são homens”. Factos como este são a prova que nem tudo se resolve com quotas, quando o problema está enraizado na sociedade. Por isso, defendem, a melhor solução só pode chegar pela via da educação.
O medo e a denúncia
Patrícia, de quem falámos no início deste artigo, nunca teve coragem para denunciar o ex-namorado. “Não consigo sequer processar. Foi uma pessoa em quem confiei e não consigo categorizar que me tentou violar”, conta. É por casos como este que a MOS e todos os movimentos feministas do país defendem que a violação tem de ser um crime público. “Porque há mulheres com vergonha de denunciar e nunca o vão fazer”, vinca Jéssica, salientando que “mesmo as que ganham coragem” podem, por medo de represálias, “vir a mudar o seu depoimento.
A MOS nasceu em 2019 pela vontade de pessoas homosexuais e heterosexuais para “romper com o conservadorismo de Santarém” e dar voz às pessoas LGBT. Pretende ser igualmente um porto seguro para todos os que precisarem de ajuda para denunciar situações ou simplesmente para terem apoio e perceberem que “ninguém está sozinho”. Foi também para dizer a mulheres que sofram ou tenham sofrido algum tipo de discriminação que não estão sozinhas, que Alexandra, Patrícia e Pilar quiseram dar o seu testemunho. Para todas elas, o Dia Internacional da Mulher não é dia para oferecer flores, mas para lembrar lutas passadas e continuar a batalhar nas do presente.